Joe é a personagem de que menos gosto nesta temporada. Mais porque acho que faltou um bocadinho de consistência na sua génese. No início da narrativa, ouvimo-lo dizer que, sendo o mais velho do grupo, se sentia responsável pelos outros. Chega mesmo a dar a entender que ele devia ser o líder. No entanto, por esta altura, as ações em pouco ou nada ajudam o grupo, muitas vezes fazem o oposto. Por exemplo, num episódio, ele tenta ser racional, pensar antes de agir, no outro, é o primeiro a correr para uma armadilha.
Costuma-se dizer que, se esta aventura se desenrolasse no Mundo Real, Joe assumiria naturalmente a liderança - num mundo tão fantasioso e imprevisível como o Digital, ele precisou de tempo para se adaptar. De qualquer forma, quando não está com uma das suas neuroses, Joe faz muito de "papá" do grupo, ajudando a cuidar das outras Crianças, frequentemente ignorando a sua própria segurança para protegê-los. A tradução da sua virtude é controversa - a que considero mais adequada é Lealdade, embora a ideal fosse um conceito que significasse "digno de confiança".
Até agora, não tenho falado muito sobre o Digimon de cada Criança pois, na maior parte dos casos, a sua personalidade é uma extensão da personalidade da Criança que protegem. Com Joe e Gomamon é diferente, pois é, em vários sentidos, o oposto do humano que protege: divertido, descontraído. É ele quem vai ensinando a Joe a não se levar tão a sério.
A verdade é que não considero Joe uma personagem muito interessante. Ele cumpre o seu papel, tem algum desenvolvimento, mas pouco mais. Voltamos à velha questão: se ele tivesse tido mais tempo de antena, talvez gostasse mais dele.
Nas próximas duas entradas, falaremos dos membros mais novos do grupo, que são um caso à parte, em vários aspetos. Continuem por aí...
Mimi nunca esteve entre as minhas personagens preferidas sobretudo por um motivo: a voz que lhe atribuíram na dobragem portuguesa da primeira temporada. Infelizmente, existem muitos exemplos de dobragens mal conseguidas em Portugal e Digimon nem sequer é o pior exemplo (sim, Navegantes da Lua, estou a falar de vocês e das vossas vozinhas infernais!), mas a voz da Mimi era pura e simplesmente atroz.
Mimi é a princesinha mimada do grupo. É a primeira a queixar-se de fome, de cansaço, de não poder tomar banho, etc. Não é difícil de imaginar o género. Não é o tipo de criança com que simpatizemos, mas, para sermos sinceros, todos nós já tivemos reações estilo Mimi quando éramos miúdos, às tantas por coisas bem menores que ir parar a um mundo desconhecido cheio de criaturas tentanto matar-nos. Todos gostaríamos de pensar que, no lugar e com a idade das Crianças Escolhidas, olharíamos o perigo de frente, como Tai, Matt ou Sora, mas provavelmente a maioria de nós reagiria como a Mimi.
Talvez seja por isso que nunca nos tenhamos tornado Crianças Escolhidas.
Apesar de mimada e, por vezes, egoísta, Mimi tem o coração no sítio certo e uma sensibilidade que falta à maioria das outras Crianças, destacando-se Tai. O seu momento redentor ocorre na quarta parte da narrativa, quando se sente farta de lutar, quer fazer o luto pelos Digimon amigos que haviam perdido e Tai não deixa. Mais tarde, na mesma altura em que Matt se separa do grupo, Mimi decide igualmente seguir o seu próprio caminho, procurar uma maneira de salvar o Mundo Digital que não implique o sacrifício de Digimon bons. Eventualmente descobre que a luta é inevitável e começa a reunir um exército a partir de antigos aliados das Crianças Escolhidas. Sempre dá uma ajudinha na derrota de Piedmon, mas contribui sobretudo para me fazer respeitar Mimi: no início da temporada, a jovem nunca se separaria volutariamente do grupo. E não é fácil questionar abertamente Tai, que para além de teimoso, no xadrez da luta contra a Escuridão, é uma das peças mais importantes.
As traduções da virtude de Mimi são contraditórias. Na minha opinião, a mais adequada é Inocência - ou Pureza - o que faz sentido por muito do seu desenvolvimento passar pelo conflito entre as suas tendências egoístas e mimadas o seu coração puro.
Mimi é uma das personagens menos populares, não sem motivo, mas, na minha opinião, merecia receber um bocadinho mais amor por ser uma das personagens com maior evolução na primeira temporada. É a única personagem feminina com uma evolução digna desse nome, na verdade... Podem ler mais reclamações feministas no que diz respeito a esta série aqui.
Voltando a pegar na comparação com Lost, Izzy é o equivalente a John Locke, no sentido em que é o primeiro a aperceber-se da natureza única do mundo onde vieram parar. Por outro lado, Izzy também pode ser considerado o oposto de Locke por ser um "homem de ciência" - de resto, se formos a ver, o Mundo Digimon é um mundo informático, "científico" (embora com elementos de fantasia e, mesmo, de religiosidade) enquanto a ilha de Lost é um lugar essencialmente espiritual (embora com elementos de bizarria científica). Como acontece muito entre crianças, de início, Izzy é levemente marginalizado do grupo pelos seus tiques de nerd. E, na verdade, o próprio Izzy revela-se um bocadinho antissocial, separando-se frequentemente das outras Crianças na sua ânsia por descobrir mais sobre o Mundo Digital - foi, por exemplo, hilariante meterem-no sozinho com a princesinha Mimi.
O Cartão atribuído a Izzy é, naturalmente, o do Conhecimento (Curiosidade na versão japonesa, embora não deixe de existir um pequeno paradoxo. Izzy deseja saber tudo e, de facto, sabe imenso, mas sabe pouco acerca de si mesmo. Poucos anos antes dos eventos desta temporada, Izzy descobrira acidentalmente que fora adotado. Não descobrira porquê e é insinuado que tinha medo de descobrir. Assim, foi-se distanciando das pessoas, encontrando abrigo no mundo dos computadores. A relação de Izzy com os país, quando este regressa temporariamente ao Mundo Real, é a mais interessante de todas as Crianças.
É dado a entender que, já antes de ser transportado para o Mundo Digimon, Izzy é uma criança invulgarmente bem educada. No entanto, a dinâmica que observamos entre Izzy e os pais é mais estranha do que isso. Não falta amor naquela família, ninguém duvida disso. Porém, tratam-se uns aos outros com um tudo nada de delicadeza a mais do que seria expectável entre pais e filhos. Imagino que Izzy sinta um misto de gratidão pelos pais, que o acolheram mesmo não sendo biologicamente seus, e de medo de ser "devolvido à precedência" - por isso, procura portar-se o melhor possível. Quando regressa brevemente do Mundo Digimon, sente-se também culpado por ter de ocultar o seu trabalho como Criança Escolhida aos pais. Nesse aspeto, acaba em pé de igualdade com os progenitores - estes também guardam um segredo e a culpa que sentem influencia a relação com Izzy. Em momentos em que, se calhar, outros pais fariam perguntas, estes retraem-se. Volto a frisar, no entanto, que ninguém duvida do amor entre eles.
De resto, quando Myotismon decide raptar todos os humanos em Odaiba para procurar a Oitava Criança, Izzy é o único entre os Escolhidos que consegue proteger ativamente os pais. Quando arranjam um momento de acalmia depois disso, os país contam, finalmente, a Izzy a verdade sobre a sua adoção, naquele que é um dos momentos mais comoventes de toda a temporada. Pouco após, os pais de Izzy até dão uma mãozinha quando o filho tenta decifrar a profecia que lhes indicará como derrotar VenomMyotismon.
Isso, bem como o respeito que fora conquistando entre as outras Crianças, graças aos seus conhecimentos sobre o Mundo Digital, faz com que Izzy perca os seus tiques mais antissociais. O rapazinho chega mesmo a servir de suporte emocional a Tai quando a irmã adoece. Em suma, apesar de não ter uma evolução tão marcante como Matt ou Tai, Izzy é uma personagem bem construída, uma das que mais gostei quando revi a temporada recentemente.
Da próxima vez, falaremos de uma personagem muito mal-amada, inclusive por mim, que se calhar não o merecia...
Sora era a minha personagem preferida quando eu era mais nova. Não me é difícil explicar porquê: uma rapariga, algo maria-rapaz, forte e corajosa - como penso já ter referido aqui no blogue, sempre gostei de personagens femininas assim. Também gostava do visual dela, apesar de as semelhanças com Misty serem gritantes (ao menos Sora tem uma imagem menos sexualizada). Quando não iguala Tai e Matt em termos de coragem, Sora funciona muito como mamã do grupo: carinhosa, geralmente a primeira a acorrer quando alguém começa a chorar, a discutir, ou a primeira a mudar de assunto quando a disposição geral do grupo é de tristeza.
O Cartão atribuído a Sora é o do Amor, o que faz sentido tendo em conta a personalidade dela, embora ela tenha sentido alguma dificuldade em aceitá-lo. O paradoxo em Sora é que ela não tem problemas em dar amor, mas não parece acreditar que merece receber amor. Isso explica que não tenha formado imediatamente uma ligação com Byomon, que estranhasse a ideia que este a adora e protegê-la-á a todo o custo. Também explica, em parte, o relacionamento difícil com a sua mãe, explorado no episódio em que Byomon atinge o nível Super Campeão. Há quem critique esse episódio, dizendo que Sora se deixou manipular demasiado facilmente por DemiDevimon, questionando logo o amor da sua mãe, mas eu não concordo. DemiDevimon poderia ter dito a praticamente qualquer uma das crianças que estas eram mal-amadas e elas acreditariam: Tai acharia que seria por quase ter causado a morte à irmã; Matt e T.K. pensariam no divórcio dos pais; Izzy acharia que seria por ser adotado e por aí adiante. Até comigo resultaria, já que eu, na idade dos miúdos ou, vá lá, mais nova, sempre que os meus pais me repreendiam, achava que eles não gostavam de mim.
No entanto, numa coisa estou de acordo com a opinião geral: os supostos problemas entre Sora e a sua mãe nunca são explicados devidamente e basta um episódio (da digievolução para Super Campeão) e pedaços de outros, no Mundo Real, para se resolverem e Sora regressar a cem por cento ao papel de cuidadora. Comparem isto com a história familiar de Izzy e, sobretudo, de Matt, que demora uma temporada inteira a resolver o ressentimento que tem aos pais.
É uma das maiores críticas que tenho a fazer a Digimon: a maneira como lida com as personagens femininas. Mimi é a única que tem direito a um desenvolvimento decente. Kari existe quase só em função de Tai. Sora existe para ser a mamã, o coração do grupo, papel estereotipicamente feminino. Podem dizer o que quiserem da série animada do Pokémon, mas nesse aspeto Pokémon revelou-se bem mais progressista: logo nos primeiros episódios e durante muitos anos, o papel de cuidador foi atribuído a Brock. Ele cozinha para o grupo, muitas vezes apazigua discussões e, mais do que combater, a sua paixão é precisamente cuidar de Pokémon. E nem sequer se pode questionar a sua sexualidade pois ele atira-se, indiscriminadamente, a qualquer personagem feminina pós-puberdade.
Apesar disto tudo, continuo a gostar imenso de Sora - ela merecia mais. Além disso, a linha evolutiva de Byomon sempre foi, e continua a ser, a minha preferida.
Depois de termos falado do coração do grupo nesta entrada, na próxima falaremos do cérebro. Claro que teria de ser um rapaz...
Matt é, em vários aspectos, o oposto de Tai: sério, introvertido, cuidadoso, sensível para com os companheiros, ainda que tenha dificuldades em confiar nos demais. Na altura de tomar decisões, ele escolhe sempre a opção mais segura - entrando, naturalmente, em conflito com Tai.
Uma parte significativa da personalidade de Matt é definida pelo divórcio dos pais, que fazem com que este só veja a mãe o irmão mais novo, T.K. - também uma Criança Escolhida - muito raramente antes do início da história. Matt é, aliás, um feroz protector de T.K., quase um pai-galinha - já que fizemos um paralelismo com Lost, faz lembrar um pouco a relação entre Michael e o filho Walt. Em praticamente tudo o que acontece com Matt nesta temporada, T.K. está envolvido de uma forma ou de outra.
Não é de surpreender que, quando T.K. revela coragem e engenho próprios, quando se descobre que o rapazinho mais novo do grupo até sabe tomar conta de si mesmo e, até, ajudar o grupo, Matt se sinta perdido. É o que acontece na quarta parte da narrativa: Matt faz lembrar um pai que percebe que o filho já não é uma criança pequena, tem personalidade própria, toma conta de si, já não precisa dele. Sente mesmo que já não conhece o seu filho. Em oposição, Tai sempre lidou com T.K. como um pai fixe, que trata o rapazinho mais novo como alguém que pode ajudar o grupo, em vez de alguém a manter agarrado às sai... bem, às calças. Ou calções. É esse um dos motivos pelos quais Matt acaba por se virar contra Tai.
A Matt é atribuído o Cartão da Amizade, o que é paradoxal. Se por um lado ele coloca a segurança dos companheiros em primeiro lugar (ao contrário de Tai), por outro lado, ele tem dificuldades em confiar nos outros. Por duas vezes os vilões conseguem virá-lo contra os amigos: primeiro Joe, depois Tai, na situação que descrevi acima. Por sinal, é quando Matt descobre que se enganou em relação a Joe, quando descobre que devia ter confiado nele, que o Cartão da Amizade é activado pela primeira vez.
Da mesma maneira, quando, em cima do final da temporada, Matt é obrigado a enfrentar os seus próprios demónios (muitos fãs torceram o nariz à caverna onde os miúdos vão parar quando se deixam abater por pensamentos negativos, mas eu acho que funciona bem como metáfora), percebe que o divórcio dos pais o fez desconfiar das pessoas, despoletando as fricções com os amigos, Tai e T.K. sobretudo. É nesse momento (mais ou menos na mesma altura em que Tai se torna verdadeiramente um líder) que Matt abraça completamente a virtude que lhe foi atribuída. Quando regressa para junto de Tai, o Cartão da Amizade reanima WarGreymon e a luta contra Piedmon é relançada.
Aquando deste recente revisionamento da primeira temporada de Digimon, Matt foi uma da minhas personagens preferidas. Ele é, de longe, um das personagens melhor construídas da temporada, com um lado sombrio mais evidente que qualquer outra Criança Escolhida. De resto, ele e Tai são claramente beneficiados em relação ao resto do elenco - são melhor caracterizados e são os únicos cujos Digimons atingem o nível Mega Campeão. Isto incomoda-me um bocadinho, para ser sincera, dá ideia de hierarquia entre as Crianças Escolhidas, quando deveria haver uma certa igualdade. É outra das consequências de ter um elenco tão grande, suponho eu...