Sobre a terceira temporada de Ted Lasso #2
Segunda parte da minha análise à terceira temporada de Ted Lasso. Podem ler a primeira parte aqui. Spoilers para toda a série de Ted Lasso.
Queria agora regressar aos primeiros episódios para falar sobre Keeley – quiçá a maior desilusão da temporada. Sabíamos que Keeley, deixaria de trabalhar diretamente com o Richmond para fundar a sua própria empresa de Relações Públicas. O que não sabíamos era que este desenvolvimento praticamente isolaria Keeley do resto do elenco que conhecíamos. Foi como vermos um spin-off dentro da própria série – e nem se pode dizer que tenha sido um bom spin-off.
Teve os seus momentos, é certo. Gostei de Barbara, uma das funcionárias da empresa que tem uns conflitos interessantes com Keeley. Mas de resto pouco se aproveitou.
Começando por Shandy: uma personagem cujo fim adivinhei mal nos foi apresentada, infelizmente. Shandy é aquilo que todos pensávamos que Keeley era no início da série. A diferença é que Shandy nunca evoluiu além do estereótipo. A sua história não teve nenhuma surpresa, nenhum efeito senão irritar-me. Tal como Zava para Jamie, Shandy foi um mero plot device na história de Keeley. Neste caso, atirou-a para os braços de Jack, a sua investidora. Um efeito secundário de que os guionistas possivelmente não se lembraram, no entanto, é que, numa altura em que Keeley procurava afirmar-se com a sua própria empresa, contratar uma amiga para esta depois só fazer disparates não reflete muito bem nela.
E infelizmente deixar-se cair nos braços de Jack é outra má jogada de Keeley. Ted Lasso tem uma mania infeliz com relações questionáveis, em particular entre pessoas de níveis hierárquicos diferentes. Como escrevi antes, até gostei do romance entre Rebecca e Sam na temporada anterior pois, na minha opinião, tinham qualidades redentoras como casal.
Com Keeley e Jack, no entanto, isso não acontece. Vemo-las iniciando a relação, somos informados quando Jack leva Keeley numa escapadinha romântica. Quando as voltamos a ver com os nossos próprios olhos, já estão com uma dinâmica questionável: o love bombing, como a própria série assinala.
Se bem que a escrita deste último desenvolvimento seja algo estranha. Do pouco que percebo sobre o assunto, tipicamente o love bombing é uma de várias estratégias de manipulação empregadas por narcisistas para ganhar controlo sobre as suas vítimas. Segundo Rebecca, Rupert fê-lo com ela mesma no início da relação e pode-se argumentar que vemo-lo fazendo-o com Nate. Mas este romance foi escrito de forma tão inconsistente que eu não consigo dizer se é suposto acharmos que Jack está a tentar manipular Keeley. A ideia com que fico é que os guionistas queriam incluir um exemplo de love bombing na história, mas esqueceram-se de incluir o necessário contexto.
De qualquer forma, o namoro das duas descarrila quando um vídeo íntimo de Keeley aparece na Internet.
Muitos criticaram o tom moralista com que Ted Lasso abordou este desenvolvimento – sobretudo na reação do plantel do Richmond ao evento. Também não adorei. Por outro lado, mesmo no ano da graça de 2025, ainda há demasiada gente a culpar a vítima. Ensinamos os jovens, sobretudo elas, a não tirarem fotos íntimas, a não se deixarem filmar, a não partilharem – apesar de terem direito a isso, tal como qualquer adulto capaz de consentir tem direito a uma vida sexual com outros adultos capazes de consentir. Não vejo praticamente ninguém a ensinar os jovens a não pedir nudes uns aos outros, a não filmar ou fotografar sem autorização, a não partilhar tais conteúdos – recordando-lhes que esses atos constituem crime de devassa da vida privada, punível com pena de prisão até cinco anos.
Por isso, não posso levar a mal que Ted Lasso se tenha dado ao trabalho de passar essa mensagem. É dos poucos que o faz. Pode ser que isto envelheça muito mal e que, daqui a dez anos, já toda a gente tenha a lição mais do que aprendida.
Ou não. Pelo que ouço por aí, as mentalidades estão a regredir no que toca à igualdade de género.
Queria agora falar da maneira como Roy e Jamie – ambos ex-namorados de Keeley – lidam com a divulgação do vídeo. Roy começa com a atitude certa, mostra solidariedade, mas acaba por meter a pata na poça ao perguntar para quem era o vídeo. Ele pede desculpa de imediato, em sua defesa, mas o mal já estava feito.
Em contraste, quando Jamie vai ter com Keeley, assume a sua parte da culpa. O vídeo fora para ele e não arranjara uma palavra-passe decente para a sua conta de email. Pode-se argumentar que Jamie não precisava de pedir desculpa. Não fora ele a divulgar o vídeo, até se dera ao trabalho de eliminar todo o conteúdo íntimo após o fim da relação (em parte por mesquinhez, o que o próprio Jamie admite). Mesmo que tenha sido descuidado, a sua conta de email foi invadida. O pirata informático terá tido acesso a muita informação privada. Jamie também foi uma vítima.
Ainda assim, esta foi uma das maiores provas da evolução de Jamie ao longo das três temporadas de Ted Lasso. É também de assinalar o contraste com Roy. Na temporada anterior, houve uma ocasião em que Ted assinalou que Jamie estava a ser mais maduro do que Roy. Uma realidade que se manteve até ao fim da temporada.
Mas estou a adiantar-me.
Regressando a Keeley, Jack é mesmo o interesse romântico que pior lida com o que aconteceu. Começa por redigir uma declaração para as redes sociais de Keeley em que esta pediria desculpa por ter filmado o vídeo. Keeley recusa. Durante o resto do dia, Jack vai arranjando desculpas para não ser vista em público com Keeley como namorada.
O conflito culmina no fim do episódio com uma discussão em que Jack censura Keeley por ter filmado e enviado o vídeo. A relação essencialmente termina ali mesmo. Um episódio ou dois mais tarde – sem grande surpresa – Jack corta o financiamento da empresa de Keeley, essencialmente destruindo-a. Esta última passa o resto do episódio mergulhada em autocomiseração. No fim, no entanto, Rebecca oferece-se como nova investidora, resgatando a empresa de Keeley.
Para que serviu esta história toda afinal? Ted Lasso separou Keeley do resto do elenco, apenas para a vermos tomando más decisões tanto na sua vida pessoal como profissional. Nem sequer vemos Keeley saindo por si mesma do buraco em que caíra, com todo o desenvolvimento de personagem que viria com isso. Rebecca fez de Deus Ex Machina.
É um bocadinho triste, mas o episódio em que mais gostei de ver Keeley nesta temporada foi aquele em que se envolveu na história de Roy e Jamie: dois homens, dois dos seus interesses românticos.
Mas recuemos um passo ou dois, regressando a Roy. Na altura em que Keeley perdeu a empresa, Roy passara o último par de episódios apercebendo-se que andava a boicotar-se a si mesmo com as suas inseguranças – ainda que mais no sentido de reconhecer o problema, não se pode dizer que tenha feito alguma coisa para resolver. Assim, faz uma visita a Keeley, quando esta se encontra numa posição vulnerável pela perda da empresa, e pede-lhe desculpa pela maneira como a relação terminou. Os dois acabam juntos na cama, mas a série apresenta o evento como um deslize de Keeley, não tanto como um passo apontando a uma reconciliação.
No episódio seguinte, o Richmond prepara-se para defrontar a sua besta negra Manchester City para o campeonato, em casa deles… e Jamie não está a lidar muito bem com isso. Em parte porque vai regressar à casa do antigo clube, com adeptos ainda desagradados por terem sido trocados por um reality show. Em parte porque poderia voltar a ver o pai pela primeira vez depois do desastroso encontro em Wembley, na temporada anterior.
Este foi um ponto alto da temporada de Ted Lasso, pela maneira como começam por explorar o lado cómico deste desenvolvimento, evoluindo depois, lentamente, para um tom mais sério. A definição de dramedy.
Como Roy não consegue fazer Jamie sair da sua crise existencial, pede ajuda a Keeley… que infelizmente também não consegue resolver o problema. Em todo o caso, ambos colocam tacitamente Jamie debaixo das suas asas. Seguem-no quando este se escapule do hotel onde a equipa está hospedada. Jamie acaba por apanhá-los, mas aceita trazê-los consigo para a sua casa de infância, onde ainda vive a mãe dele e o padrasto.
Sou a única que, antes disto, pensava que a mãe do Jamie já tinha morrido?
De qualquer forma, adorei a senhora. Adorei a química que a atriz, Leanne Best, tem com Phil Dunster. A meu ver, os indicadores de saúde mental melhorariam todos se nós, adultos e sobretudo homens, nos deixássemos abraçar mais vezes pelas nossas mães.
Jamie finalmente explica que, depois de tanto tempo motivando-se por raiva ao pai, está numa fase em que o ódio passou a indiferença. Ou seja, perdeu a sua maior motivação e sente-se perdido. A mãe de Jamie faz o que melhor sabe fazer: recorda-lhe que ele é fantástico, mas que ela não o amaria menos se não fosse, e que Jamie não tem nada a provar ao seu pai.
Ainda assim, esta conversa não é suficiente para Jamie sair daquele buraco. Mas já aí voltamos.
Keeley e Roy, na verdade, não têm muito para fazer nesta parte, mas na minha opinião não precisam. Para mim bastou ver Roy fitando boquiaberto um Jamie quase literalmente ao colo da mãe. E também as reações de Keeley e Roy aos respectivos posters no quarto de infância de Jamie.
Por outro lado, pelo meio, Roy arranja um tempinho para dizer a Keeley que quer voltar a namorar. No entanto, Jamie interrompe-os antes que ela pudesse responder. A questão mantém-se em banho-maria até ao episódio seguinte.
Durante o jogo com o City, Jamie continua visivelmente em baixo, o que se reflete no seu desempenho em campo. As vaias dos adeptos do City não ajudam. A certa altura, Jamie lesiona-se, é tratado fora de campo, Ted conversa com ele. O jovem explica que está enervado por não ver o pai nas bancadas. Ted sugere a Jamie que perdoe o pai, não porque ele o mereça, e sim pela sua própria paz de espírito.
Esta não é uma ideia nova, nem sequer da parte de Ted. Mas confesso que tenho uma objeção semântica no que toca a este conceito. Devia haver uma palavra para perdoar no sentido de abdicarmos do rancor e outra, diferente, para perdoar no sentido de aceitar a outra pessoa de novo na nossa vida. Porque uma coisa não implica a outra.
Nos dias que correm, ainda há muito a ideia de que devemos sempre perdoar os nossos familiares, sobretudo os nossos pais. Só mesmo porque são os nossos pais, porque nos trouxeram ao mundo e/ou nos criaram. Não é bem assim.
Felizmente já há quem aponte que existe um desequilíbrio na relação entre pais e filhos. Os filhos não escolheram nascer, não escolheram ser criados por aquelas pessoas, mas dependem deles durante os primeiros dezoito anos das suas vidas – muitas vezes mais. Conflitos entre pais e filhos têm inúmeros motivos, mas sobretudo em casos de maus tratos ou negligência, não, os filhos não têm a obrigação de perdoar os pais. Há coisas que não se perdoam, sobretudo quando feitas a crianças.
No que toca à história de Jamie, a série não acerta por completo. Adiantando-me um pouco, descobrimos que o motivo pelo qual James Tartt não está nas bancadas do Estádio Cidade de Manchester é por estar numa clínica a ser tratado por alcoolismo. Jamie no entanto não o sabe. Depois do jogo, envia uma mensagem ao pai, reabrindo uma via de comunicação. Mais tarde, no epílogo da série (?), vemos que Jamie e James retomaram o contacto e poderão eventualmente reconciliar-se.
Não acho que James o mereça, pelo menos não ainda nesta fase, mas não me importo que queiram ir nessa direção. Isto é Ted Lasso, uma história sobre esperança e otimismo! Mas gostava que, no mínimo, tivesse sido James a enviar a primeira mensagem, a dar o primeiro passo.
Recuando de novo até ao jogo com o City, depois da conversa com Ted, Jamie regressa ao campo com outro vigor. Marca inclusivamente o golo que garante a vitória do Richmond. Jamie fica visivelmente feliz por ter marcado o golo mas, por respeito ao antigo clube – ao clube que o formou – não festeja. Ted substitui-o logo a seguir – em parte por precaução, pois Jamie estava lesionado. Mas também cria um momento para Jamie ser aplaudido, inclusivamente pelos adeptos do City, em contraste com os assobios de antes – das minhas coisas preferidas no futebol da vida real. O Richmond ganha o jogo e fica a um ponto de distância do City, que continua em primeiro. Mais tarde, já no Nelson Road, quando Jamie está na sala de tratamentos com a perna no gelo, Roy e Keeley vão ter com ele para festejarem os três – com Ted a ver.
Mesmo que Roy e Keeley não tenham feito muito na prática, adorei ver a dinâmica deles com Jamie neste episódio. Como disse antes, foi a melhor versão de Keeley em toda a temporada, na minha opinião, e das melhores de Roy e Jamie.
Infelizmente os guionistas estragaram (quase) tudo no episódio seguinte – o último da temporada.
Roy e Jamie vão beber um copo para celebrar o fim da época. A conversa desvia-se para Keeley e descarrila quando os dois se põem a discutir sobre quem deve namorar com ela. Ambos descem a um nível muito feio: Roy refere o recente encontro sexual que teve com ela, Jamie revela que o vídeo íntimo de episódios antes fora filmado para ele. Acabam por chegar a vias de facto, mas no fim decidem pedir a Keeley para escolher.
Keeley manda-os aos dois passear.
Pois é, detestei este desenvolvimento e não fui a única. O povo fartou-se de triângulos amorosos nos últimos anos – sobretudo quando fazem com que dois amigos se voltem um contra o outro. Como neste caso.
Numa sessão de perguntas-e-respostas no Reddit, Brendan Hutt, o ator que faz de Beard e um dos guionistas, admitiu que, por um lado, queriam subverter o estereótipo do triângulo amoroso ao fazerem com que Keeley rejeitasse os dois. O que, OK, faz sentido e, admito-o, o corte para Keeley fechando a porta na cara dos rapazes foi engraçado. Por outro lado, o outro motivo que ele deu foi, e cito-o, “men are dumb”.
*revira os olhos*
Corrijam-me se estiver enganada, mas ninguém, absolutamente ninguém, queria ver Roy e muito menos Jamie dando passos atrás na sua evolução, só por um momento cómico que nem teve assim tanta piada. É outro dos problemas basilares de Ted Lasso. Numas coisas é muito progressista, muito subversivo, noutras é frustrantemente básico. Outro exemplo foi a cena dos cordões à volta dos genitais dos jogadores, no sétimo episódio.
Talvez seja de passar demasiado tempo no Tumblr, mas acho que teria sido giro ver os três numa relação poliamorosa. Cada um dos vértices deste triângulo gosta dos outros dois, tem a sua própria dinâmica com cada um dos outros e, como vimos em Mom City, os três funcionam bem juntos. Mesmo que não quisessem que houvesse nada de sexual ou romântico entre Roy e Jamie… se o Dani Rojas pode ter duas namoradas ao mesmo tempo, porque é que Keeley não pode ter dois namorados?
Deixando essa hipótese de lado, talvez fizesse sentido emparelhar Jamie com Keeley. Afinal de contas, como comentámos antes, Jamie encontra-se numa fase mais saudável mentalmente, sobretudo quando comparado com Roy. Chega mesmo a existir um momento nesta temporada em que Keeley contempla a hipótese em voz alta.
No entanto, percebo porque é que os guionistas não foram por aí. Uma coisa seria se tivéssemos a certeza de que haveria mais Ted Lasso depois disto, oportunidades para ver Keeley e a versão mais madura de Jamie como casal. Este episódio, no entanto, foi escrito como o final da série. Emparelhar Keeley com Jamie nesta altura seria assumir que estes eram o final feliz um do outro – sem que a série tenha apresentado provas disso ainda.
Talvez deixar Keeley solteira tenha sido a decisão correta – a moça precisa de passar algum tempo sozinha, em auto-reflexão, antes de cair noutros braços.
E numa coisa concordo com Brendan Hunt: Roy tem ainda muitas coisas a resolver consigo mesmo antes de poder voltar para Keeley. Foi a única coisa boa a surgir da briga entre Roy e Jamie – o primeiro percebendo que precisava de ajuda. Precisou de toda a temporada para admitir as próprias inseguranças e agora, finalmente, ia fazer alguma coisa em relação a isso. Talvez seja estranho o arco de Roy ter ficado assim, inacabado, mas não me importo. Na vida real, nem sempre temos todas as pessoas no mesmo grupo com as pontas todas atadas.
E mal por mal, o conflito no último episódio não chega a fazer mossa. Os três continuam amigos. E admito que possa sempre haver alguma rivalidade, algumas picardias entre Roy e Jamie. Admito inclusivamente que voltem a vias de facto por motivos parvos – sem que hajam consequências a longo prazo para a amizade deles.
Ainda assim, foi desnecessário. Teria preferido um final ligeiramente diferente para estes dois. E para Keeley.
Continuemos. Outra das minhas facetas preferidas nesta temporada foi Trent Crimm, que no início da época se junta informalmente à equipa técnica para escrever um livro sobre o Richmond.
Eu tinha dito antes que, se pudesse ser alguém do elenco de Ted Lasso, seria Keeley? Esqueçam, se pudesse ser alguém da série, seria Trent Crimm nesta temporada. Alguém fazendo oficiosamente parte da equipa, com acesso ao balneário, que assiste aos treinos e às palestras, disponível para aconselhar aqui e além e que escreve sobre tudo isso.
Também não me importava nada de ter o cabelo dele.
Não que Trent tenha um papel muito muito importante nesta temporada. Não se pode dizer que tenha, sequer, um arco de personagem. Está lá para observar, comentar, ajudar outros, pouco mais.
E chega. Nem todos precisam de ser personagens principais. E a Trent Crint basta-lhe ser Trent Crint.
A sua maior contribuição é para a história de Colin Hughes, um dos jogadores do Richmond. Falemos sobre ele então. Descobrimos no terceiro episódio da temporada que ele é homossexual. Isto sendo futebolista, isto fazendo parte de um mundo tão masculino como o do futebol. Não é por acaso que existem pouquíssimos futebolistas assumindo a sua homossexualidade em público – este é um dos poucos.
Colin tem, assim, passado toda a sua vida no “armário” até ao dia em que Trent o vê aos beijos ao namorado. Trent guarda segredo até ao episódio de Amesterdão. Colin inventa uma desculpa para não passar a noite com o resto da equipa, sai do hotel, Trent segue-o e apanha-o num bar gay. É aí que revela que sabe a verdade e que o próprio Trent também é homossexual.
Devo dizer: eles podiam ter escrito esta parte do diálogo de maneira diferente. Preferia que não tivessem dado a entender que Trent só não deu com a língua nos dentes porque estava no mesmo barco que Colin. Qualquer pessoa decente e com dois dedos de testa, queer ou não, respeitaria o segredo.
Trent e Colin partilham histórias sentados juntos ao homonumento – um marco de homenagem às vítimas LGBTA+ do Holocausto. Colin diz que não quer a responsabilidade nem a pressão de ser um dos primeiros jogadores de futebol assumindo publicamente a sua homossexualidade. Apenas quer poder ser ele mesmo tanto na sua vida pessoal como na sua vida profissional.
Eu mesma não faço parte da comunidade queer, a minha opinião vale o que vale. Mas penso que é uma posição legítima.
Colin ganha, assim, um confidente e ambos, depois, desfrutam de uma noite de anonimato em Amesterdão. A história de Colin continua uns episódios mais tarde, quando o vídeo íntimo de Keeley aparece na Internet. O Capitão Isaac McAdoo ordena ao plantel que apague todo o conteúdo íntimo dos respetivos telemóveis. Quando Colin, um dos melhores amigos de Isaac, parece hesitar, Isaac arranca-lhe o telemóvel das mãos. Presumivelmente, vê fotos ou vídeos íntimos de homens.
Depois desta é até meio do episódio seguinte, Isaac mostra-se distante, mesmo hostil para com Colin. Descobrimos mais à frente que Isaac ficou magoado por Colin não ter confiado nele. Suponho que tais sentimentos se tenham manifestado sob a forma de agressividade.
A ideia com que fico, no entanto – eu e outros nas internetes – é que guionistas queriam que nós pensássemos que Isaac era homofóbico para depois fazerem um plot twist. Mau gosto, na minha opinião. E nem me parece realista: como disse acima, qualquer pessoa não homofóbica e com dois dedos de testa compreenderia que Colin quisesse guardar segredo, mesmo com as pessoas mais próximas.
Suponho que, se pedisse explicações aos guionistas, eles atirariam de novo com o “men are dumb”.
No nono episódio, então, no intervalo de um jogo que não estava a correr bem para o Richmond, um adepto dirige um insulto homofóbico aos jogadores do próprio clube. Isaac reage que nem um touro enraivecido: salta para as bancadas e quase chega a vias de facto com o adepto na berlinda. É Roy, de todas as pessoas, quem o chama à razão. Isaac, naturalmente, leva cartão vermelho, mas o adepto hostil também é expulso do estádio.
No balneário, os colegas tentam perceber o que aconteceu. Chegam a especular se Isaac é homossexual. Outra série provavelmente manteria o engano, tentaria extrair humor dele (e provavelmente falharia). Felizmente Ted Lasso não foi por aí. Colin decide assumir a sexualidade perante o resto da equipa.
Têm havido críticas por, uma vez mais, terem cortado no momento exato em que Colin iria dizer “I am [gay]”. Eu no entanto acho que é um dos casos em que funciona.
O plantel declara apoio incondicional a Colin. Ted vai mais longe, com uma analogia desastrada em que compara orientação sexual a preferências clubísticas. Um bocadinho falta de noção, sim, mas a meu ver realista. Este tipo de coisas acontece na vida real, eu mesma já meti a pata na poça dessa forma, e Ted é o tipo de pessoa que faria isso, ainda que com a melhor das intenções. E a narrativa não ignora o momento menos bom de Ted: Colin chama-lhe a atenção e o treinador pede desculpa. De resto, fica bem claro que Ted lamenta que Colin tenha sofrido sozinho e garante que, a partir de agora, nem ele nem o resto da equipa deixarão que isso aconteça de novo.
É uma cena bonita, em particular quando Sam, como novo Capitão, faz o grito de guerra. As palavras de Sam, “I love you guys so very much” já tinham aparecido no trailer da terceira temporada – fora do contexto, como é evidente. Eu já tinha gostado. Depois de conhecer o contexto, gostei mais ainda.
A equipa regressa mais forte e unida para a segunda parte. Mesmo jogando com menos um, o Richmond dá a volta ao resultado. Colin assiste em ambos os golos – é eleito Homem do Jogo. Mesmo à Ted Lasso: ao dar um passo para se tornar uma melhor versão de si mesmo fora de campo, Colin tornou-se uma melhor versão de si mesmo dentro dele.
Recuando um pouco e regressando a Isaac, no rescaldo da expulsão, os colegas dizem-lhe que não é a primeira vez, nem será a última, que lidam com insultos daquele género. Ele tinha de ignorar. Conselhos muito comuns quando se fala de bullying e de outras situações do género. O próprio Ted dissera o mesmo no início da época, a propósito da má imprensa que o clube andava a receber.
Esta mentalidade tem o seu valor, não me interpretem mal, mas tem as suas limitações. Como nesta situação específica. Isaac faz-lhes ver que há limites para tudo, há coisas que ninguém tem de tolerar. A narrativa dá a entender que a fúria de Isaac tem mais a ver com o seu conflito com Colin do que propriamente com o desentendimento com o tal adepto.
Não significa que Isaac não tenha razão. E Roy expande essa ideia mais tarde, na Conferência de Imprensa pós-jogo. Este é outro momento alto da temporada, um dos melhores de Roy, um daqueles discursos que deviam ser ouvidos por toda a gente na vida real. Sobretudo no mundo do futebol, sobretudo no futebol português. Essencialmente pedindo às pessoas para não serem bestas, muito menos para quem deviam apoiar. No fim do dia, isto é apenas futebol, é apenas um jogo, mas os protagonistas – jogadores, treinadores, árbitros, mesmo dirigentes – mesmo nem sempre tendo os comportamentos adequados, são pessoas de carne e osso, com emoções, problemas, entes queridos, tal como qualquer ser humano.
Aliás, agora que penso nisso, o discurso de Roy é essencialmente uma das teses de Ted Lasso. É possível que nem sequer tenha sido intencional, mas a série explora, mais do que o romance do futebol, a humanidade do futebol. Pode-se argumentar que Ted Lasso é sobre as pessoas por detrás dos jogadores, dos treinadores, da dirigente. A história de Colin é um exemplo entre vários.
Algo que é importante, pois temos muito a tendência para desumanizar os seus protagonistas.
E os exemplos abundam. Começando pelo Mercado de Transferências, que sempre detestei por fazer-nos tratar jogadores, treinadores, seres humanos, como bens para serem comercializados.
Ainda piores são situações de violência, tanto verbal como física. Tivemos dois exemplos recentes no futebol português, um deles muito parecido com o de Isaac (sobre o outro falaremos mais à frente). Mais graves são casos como, por exemplo, quando o carro onde seguia a família de Sérgio Conceição, incluindo uma criança, foi apedrejado. E, claro, a infame invasão à academia de Alcochete em 2018.
Sim, os protagonistas do futebol ao mais alto nível – jogadores, técnicos, árbitros – ganham muito mais do que nós. Não significa que seja aceitável levarem com abusos como estes. E a verdade é que isto também acontece em ligas mais pequenas e menos abonadas – chega a ser pior – em que nem sequer se pode argumentar que os protagonistas são pagos para serem maltratados. Bolas, isto acontece no futebol infantil, com crianças e adolescentes.
Por isso, sim. Há muita gente na vida real que devia ouvir o discurso de Roy.
Avançando na história, depois disto, Colin e Isaac fazem as pazes. Colin decide que não vai revelar a sua orientação sexual a mais ninguém.
O que me parece bem. Uma vez mais, não faço parte da comunidade LGBT+, não tenho autoridade para dizer quando e como é que uma pessoa deve sair do armário. E quando a mera existência de alguém tal como é pode ser considerada um ato político, compreendo que Colin queira manter o segredo como figura pública. Acredito que já seja uma grande vitória para ele fazer do seio do Richmond um lugar seguro.
Dito isto, saltando para o episódio final, aquando da vitória há invasão de campo durante os festejos. Michael, o namorado de Colin, vai ter com ele e Colin beija-o. Não sei se foi deliberado da parte do jogador ou se foi o calor do momento. Também é possível que, no meio da confusão, tenha passado despercebido.
Talvez este momento tenha consequências se a série eventualmente continuar. Terminando assim a história, no entanto, mesmo que alguns aspetos não tenham sido perfeitos, foi uma das melhores partes da temporada.
Jamie e Colin foram os únicos jogadores com uma linha narrativa com princípio (bem… a de Jamie começou muito antes), meio e fim nesta temporada. Sam teve uma história algo estranha. Mostram-no a abrir o seu próprio restaurante, tal como já tinha sido anunciado no fim da temporada anterior. O que, de início, não me aqueceu nem me arrefeceu. A única coisa semi-interessante que Ted Lasso fez com isso nos primeiros episódios foi usar o restaurante como cenário para um par de cenas importantes e darem indícios de que Sam se voltaria a cruzar romanticamente com Rebecca.
Indícios esses que não dão em nada.
O restaurante só se torna relevante no sétimo episódio. Na semana em que Ola Obisanya, o pai de Sam, vem de visita, Sam troca tweets com uma governante com um discurso anti-refugiados – inspirada por Suella Braverman, uma política da vida real com um discurso semelhante (desprezo por gente que pensa com ela). Em resposta, o restaurante de Sam é vandalizado – no dia em que o pai chega a Londres, por sinal.
Em termos de meta, diz que este desenvolvimento terá sido uma resposta a algumas críticas feitas a um episódio da segunda temporada. Sam fizera frente à Dubai Air, um dos maiores patrocinadores do Richmond, pelos danos ambientais que a empresa andava a fazer na Nigéria, o seu país natal. No entanto, este ato não teve consequências: o Richmond arranjou outro patrocinador e mais ninguém voltou a falar do assunto.
Nesse aspeto, neste episódio o ativismo de Sam teve um desfecho mais realista. O desabafo de Sam (a palavra “rant” infelizmente não tem uma tradução literal em português) no balneário alude inclusivamente a algo que aconteceu em Julho de 2021: o spam de racismo que Bukayo Saka, Jadon Sancho e Marcus Rashford receberam nas redes sociais por terem falhado penáltis na final do Euro 2020.
É outra vez a questão da desumanização. Eles eram miúdos novinhos na altura! O mais velho tinha vinte e três anos!
E nós, portugueses, não somos muito melhores. Veja-se o que aconteceu há bem pouco tempo com Galeno e Gabriel Batista.
Regressando a Ted Lasso e a Sam, este desenvolvimento sempre proporcionou alguns momentos bonitos. Conhecemos finalmente o pai de Sam, a sua gentileza e sabedoria – aconselhando o filho a reabrir o restaurante, em parte por si mesmo, em parte como resposta aos vândalos – as suas interações com Ted. No fim do episódio, toda a equipa aparece no restaurante para reparar os danos.
Foi bonito, mas foi uma história de um único episódio. Sam só volta a ter protagonismo um par de episódios mais tarde, quando falha a Convocatória para a seleção nigeriana. Descobrimos no mesmo episódio que foi Afuko quem subornou o governo (a federação?) para que Sam não fosse Convocado. Ao mesmo tempo, planeia sabotar o restaurante de Sam.
Tudo isto como vingança por Sam ter recusado a sua proposta no final da segunda temporada. Tal como a história da Super Liga, ou talvez ainda mais, tudo muito infantil e irritante.
E o pior é que esta história nem sequer tem resolução em tempo útil. No último episódio, existe uma sequência com cenas do futuro a médio/longo prazo do elenco – incluindo Sam envergando o equipamento da seleção nigeriana. Durante algum tempo colocou-se a hipótese de aquilo ser apenas um sonho ou uma fantasia de Ted. Na tal sessão de perguntas-e-respostas, Brendan Hunt confirmou que a sequência é real, uma espécie de epílogo – semelhante ao de Digimon Tamers. No que toca a Sam, este terá finalmente sido Convocado por pressão do público.
Para começar, como alguém que acompanha a Seleção Portuguesa há muitos anos, tenho algumas dúvidas em relação ao realismo desse cenário. Tantos jogadores portugueses que não teriam falhado Europeus ou Mundiais se o povo mandasse. Claro que, tanto quanto sei, a FPF nunca terá sido diretamente subornada para manter um jogador fora da Seleção. É possível que a federação nigeriana estivesse só à espera de uma desculpa para voltar atrás no acordo.
Ainda assim prefiro a hipótese colocada pelo autor da pergunta em questão: as câmaras de segurança do restaurante captando as palavras de Afuko e o vídeo indo misteriosamente parar à Internet. Matavam-se dois coelhos com uma cajadada: Sam finalmente Convocado e Afuko tendo de responder por corrupção.
Em todo o caso, e mais grave ainda… isto é batota! Isto é escrever o fim da história sem escrever o meio: uma regra básica de escrita! Se queriam que a história de Sam terminasse com ele na seleção nigeriana, a maneira como isso aconteceu devia ter sido incluída na própria série! Não apenas mostrarem o desfecho e deixarem a explicação para o Reddit. Até porque, diria eu, a maior parte da audiência não saberá da existência da entrevista de Brendan Hunt.
E, ainda assim, Sam é dos poucos jogadores que teve direito a uma linha narrativa. Tirando ele, Jamie, Colin e, até certo ponto, Isaac, os outros jogadores não tiveram grande desenvolvimento. Dani Rojas é hilariante, mas tem a profundidade de uma personagem dos Looney Tunes.
Não que seja grave. Este é um elenco muito grande. Nem todos podem ser personagens principais. E de resto, como referi antes, gostei muito da dinâmica da equipa como um todo.
E ficamos por aqui hoje. Amanhã virá a última parte, em que iremos falar sobre, diria eu, as duas personagens mais importantes da série. Obrigada pela vossa visita. Continuem por aí.