Segunda parte da minha análise a From Zero. Podem ler a primeira parte aqui.
Avancemos, então, para as músicas não-single e não-Casualty. Em continuidade com esta última, começo pelas mais agitadas. Só faltam duas na verdade: Cut the Bridge e IGYEIH.
A primeira tem uma energia alucinante, com aquela bateria, com o refrão com partes cantadas em coro. Gosto de vocais em coro nas músicas dos Linkin Park – acontece muito em A Thousand Suns, por exemplo. Agora que temos uma mulher, o coro tem outro carácter, outro impacto, também muito fixe.
Eu recomendo a versão instrumental, que tem muitos detalhes – como o piano e elementos eletrónicos – que ficaram um pouco enterrados na versão completa. A minha parte preferida é o final da terceira estância, quando Mike e Emily cantam “just to watch it buuuurn. just to watch it buuuurn…” em tom grandioso. Na preparação deste texto, encontrei um comentário de YouTube a dizer que Cut the Bridge é uma combinação de What I’ve Done e Bleed it Out. Sou capaz de concordar.
Em termos de letra, queria só referir a terceira parte. Gosto das metáforas que Mike usa para explicar que o narrador está a chegar ao limite: “I'm the gas from a burner left open, I'm a tightrope held up by a clothes pin”.
Também queria falar sobre os versos “wanna go to the light and not the shadow, but the branch isn’t (as) shiny as the arrow”. Consta que foi uma ideia de Dave, inspirado pelo selo dos Estados Unidos. A águia tem um ramo de oliveira numa pata e um punhado de flechas na outra. É suposto significar que, como nação, os Estados Unidos têm “um forte desejo de paz mas estarão sempre preparados para a guerra”. No contexto de Cut the Bridge, então, aqueles versos significam que o narrador se sente tentado pela violência, embora saiba que não é o caminho correto.
Mas tenho de dizê-lo: pesquisar sobre a essência dos Estados Unidos a propósito deste álbum, ser confrontada com um símbolo com a apetência dos americanos para a guerra, tendo em conta o que o país tem feito neste último ano, deixou-me com um grande amargo de boca. Não é por acaso que digo que os Linkin Park são, neste momento, das pouquíssimas coisas boas a vir dos Estados Unidos.
Regressando a Cut the Bridge, dizem que a música soa muito boa ao vivo. Não vou verificar, não vão eles tocá-la no Rock in Rio.
IGYEIH é a primeira música dos Linkin Park com uma sigla como título. Não são os primeiros músicos a fazê-lo, não serão os últimos, mas confesso que não sou fã. Diria que loml de Taylor Swift é o único exemplo de que gosto. Preferia que usassem um nome de trabalho, como Faint ou QWERTY. No caso de IGYEIH, consta que o nome de trabalho era Villain. Na minha opinião, funcionava bem como título, encaixava na letra. Deviam tê-lo mantido.
Enfim, são escolhas.
Em From Zero, IGYEIH é uma das com mais participação de Emily – Mike tem só dois versos antes do refrão. Tirando isso, confesso, não tenho muito mais a dizer sobre a música – apenas que só reparei que, na parte final, dois dos versos são “From now on got amnesia” em vez de “From now on I don’t need ya” na preparação deste texto. IGYEIH é capaz de ser a música de que menos gosto em From Zero. Não porque a ache má, apenas acho as outras mais interessantes e cativantes.
Passemos, então, às baladas. No cômputo geral, diria que gosto um bocadinho mais destas que das mais agitadas. Não necessariamente por serem baladas. Mais por terem, na minha opinião, as melhores letras de todo o álbum. Mais porque cada uma das três – perdão, das quatro, pois isto também se aplica a Over Each Other – é fantástica à sua maneira.
Comecemos por Overflow: uma das melhores em From Zero, uma das mais experimentais. Dave e Colin referem-na como uma das preferidas deles e consta que é uma das que Emily mais gosta de cantar ao vivo.
Alguns fãs dizem que Overflow faz lembrar A Thousand Suns. Em termos de letra, concordo, e falaremos sobre isso já a seguir. Por outro lado, a sonoridade recorda-me Post Traumatic – as tais influências que referi antes. O tom atmosférico faz-me lembrar Lift Off. A conclusão com a guitarra elétrica faz-me lembrar a conclusão de Watching As I Fall. Mike diz-me particularmente orgulhoso deste final de Overflow: ele terá tocado a guitarra, Colin terá tratado dos efeitos.
De facto, merecem orgulhar-se.
No primeiro refrão, temos a oportunidade – até agora única, pelo menos no seu trabalho com os Linkin Park, tirando a versão cinemática de Heavy is the Crown – de ouvir Emily num registo diferente. Será correto chamar-lhe a sua “voz de cabeça”? É certamente uma voz mais suave do que a que estamos habituados a ouvir. Espero que não seja a última vez.
Um pormenor de que gosto em Overflow são as notas iniciais – fazem lembrar um alarme de perigo, o que condiz com a letra. Overflow terá sido inspirada pelo chamado “doomscrolling”, por pessimismo, pelo acumular de tensões, tanto internas, psicológicas como tensões externas, da própria Humanidade. Que vão aumentando, acumulando, até um dia a bolha rebentar.
Agora que penso nisso, o tema de Overflow faz lembrar o conceito que inspirou o título Minutes to Midnight: o Relógio do Juízo Final, que conta o tempo que falta para, perdoem-me o dramatismo, o fim do mundo via guerra nuclear. Talvez explore melhor esta ideia quando escrever sobre esse álbum. Em todo o caso, essa sensação de que temos uma bolha prestes a rebentar (ou já terá rebentado?) é daqueles temas um tudo nada demasiado real por estes dias.
O único defeito de Overflow é, na minha opinião, ser demasiado curta, soar algo incompleta. Não digo que precisasse de mais letra, mas precisava de um refrão intermédio entre a suavidade do primeiro e a… digamos, rudeza do último e uma sequência instrumental na terceira parte.
Mas pronto. Não é uma falha assim tão grave.
Overflow tem sido um ponto alto nos concertos. A banda gosta de improvisar, brincar, tocar partes de outras músicas no início – por exemplo, Enjoy the Silence, dos Depeche Mode. Não sei exatamente como o fazem – não tenho visto muitos vídeos dos concertos para evitar spoilers.
Uma coisa que sei é que ao vivo, Mike altera o verso “I can hear the future callin’” para “I can hear the future, Colin”. Nota-se muito que ele é pai de adolescentes? Não é só ele: cheguei a ver um vídeo em que ele e Dave olham para Colin ao mesmo tempo aquando deste verso – pena não conseguir encontrá-lo agora.
À hora desta publicação, de acordo com o Linkinpedia, os Linkin Park ainda não disseram uma única palavra sobre Stained. Temos o episódio da LPTV, mais nada – é a única música em todo o From Zero, edição Deluxe incluída, em que isto acontece. É estranho.
Lembro-me que, na listening party, o refrão de Stained cativou-me logo. Mais tarde, passei por uma fase em que não gostava tanto. Stained é provavelmente o tema mais pop em todo o From Zero. Cheguei a pensar que o refrão recorria ao chamado Millennial Whoop. O episódio da LPTV dedicado a Stained fez-me ver que o refrão é bem mais complexo do que isso – as nuances, os backvocals, as diferentes tentativas de Emily e Mike.
Eu mesma fico com vontade de andar por aí a cantarolar, quer o refrão, quer aqueles vocais ecoados no início.
Não é só isso. Outro momento de que gosto muito é a segunda parte, em que Emily vai repetindo os versos de Mike. Um dos casos em que é o contraste entre as duas vozes, as duas interpretações, que fazem com que funcione,
A letra é das mais interessantes em todo o álbum. Sobre alguém que tem sangue nas mãos, um passado de pecados, crimes, que tenta desesperadamente esconder, tenta manter uma imagem imaculada. O/A narrador/a terá sido uma das vítimas (“Pretend you’re spotless but I don’t wash away”). A metáfora da nódoa que não sai não é particularmente original, mas foi bem executada. As manchas vão-se acumulando, crescendo, até que chegará o momento em que não será possível esconder mais – e a pessoa sofrerá as consequências dos seus atos.
É uma música muito fixe.
Por sua vez, Good Things Go é uma favorita entre os fãs, eu incluída.
A sua história de origem é engraçada. “Good things go” é uma expressão que já andava na mesa de trabalho de Mike desde, pelo menos, finais de 2020. Quase literalmente. Na altura, plena pandemia, como se devem recordar, Mike andava a fazer diretos no Twitch (um arrependimento que guardo é não ter pelo menos tentado acompanhá-los). Consta que, durante esses diretos, por vezes Mike tornava o desktop do seu computador visível. Os fãs, naturalmente, começaram a tomar nota dos nomes de ficheiros e pastas que conseguiam vislumbrar. Um deles era, precisamente, “good things go”. Num grupo de WhatsApp de fãs portugueses dos Linkin Park, consegui que me passassem este print screen, de um desses diretos. Aparece de facto uma pasta intitulada “Good Things Go Project”.
A partir de certa altura, no entanto, Mike terá reparado na bisbilhotice dos fãs. Assim, as pastas dele passaram a ter nomes como, numa tradução livre, “SIM EU SEI”, “VOCÊS CONSEGUEM VER AS MINHAS PASTAS”, “PÁREM DE CUSCAR!”.
Eu ri-me tanto quando li esta história pela primeira vez no Linkinpedia. Eu adoro este homem.
Já na era From Zero, Mike admitiu que “good things go” é uma expressão de que gosta. Terá tentado incluí-la em diferentes demos ao longo dos anos – o que explica os títulos de ficheiros e pastas durante a pandemia. Por outro lado, não se pode concluir que a ancestral da Good Things Go de From Zero venha dessa altura. Aqueles ficheiros poderão ser, precisamente, ideias que não chegaram a ser usadas até agora. Aliás, de acordo com o respetivo episódio da LPTV, a Good Things Go de From Zero será uma amálgama de ideias antigas, só tendo começado a ganhar forma em inícios de 2024.
Em Good Things Go temos de novo estâncias a duas vozes: Mike primeiro, Emily ecoando. Outra coisa de que gosto em From Zero é que há menos separação entre Mike a cantar e Mike a fazer rap – passa rapidamente de um estilo ao outro e há momentos em que parece fazer um híbrido de ambos. Como aqui e em Stained, por exemplo. É diferente, é interessante.
No episódio da LPTV, ouvimos Mike cantando o refrão. À semelhança do que acontecera com outras músicas, era apenas para servir de orientação para Emily, mas ele até se sai bem. Infelizmente para ele (ou felizmente? depende da perspetiva), Em é melhor como cantora. Tem as cordas vocais de Midas, pega em tudo o que Mike lhe dá e transforma-o em ouro. Good Things Go, então, tem uns quantos agudos impossíveis.
O rap na terceira parte é um dos meus momentos preferidos. Outro momento fazendo lembrar Post Traumatic – o que não surpreende tendo em conta que terá estado guardado na gaveta de Mike desde 2019. Traz uma dose saudável de drama, reforçado pelo acompanhamento em crescendo.
O/A narrador/a de Good Things Go parece ser uma pessoa profundamente deprimida, que se odeia a si mesmo/a. Tem uma pessoa na sua vida – uma vez mais, poderá ser um amante, um familiar, um amigo – que se preocupa, que quer ajudar. O/A narrador/a não quer ou não consegue aceitar ajuda, embora saiba que precisa. Tenta manter a outra pessoa à distância, talvez por instintos auto-destrutivos, talvez para tentar protegê-la. Mas a verdade é que acaba por magoá-la.
Um dos meus versos preferidos, não só nesta música mas em todo o From Zero, está nesse rap: “Fuck all your empathy, I want your fury”. Pode ser interpretado de várias maneiras. Talvez o/a narrador/a queira ser castigado/a. Talvez queira a raiva da outra pessoa para ter um pretexto para retribuir com hostilidade. Ou talvez queira que a outra pessoa seja sincera para com ele/a – às vezes, ao procurarem ser compreensivas, mostrar empatia, uma pessoa pode acabar por esconder os seus sentimentos. Porque quer agradar aos demais, não os quer magoar, porque saberá que tais sentimentos poderão não ser justos, poderão refletir os seus piores instintos. O/A narrador/a, no entanto, quererá ver esse lado.
Felizmente, Good Things Go termina numa nota de esperança: o/a narrador/a mostra-se disposto/a a assumir a responsabilidade pelos erros que tem cometido e agradece o apoio da outra pessoa.
É uma bela música, uma boa forma de encerrar a edição-padrão de From Zero. O que, de resto, vai em linha com o resto da discografia dos Linkin Park: todos os álbuns acabam com boas músicas.
Chegámos, assim, ao final da edição-padrão. É um álbum curtinho – só onze faixas (na prática, dez), trinta e um minutos de duração. É pouco, mas infelizmente é moda. As gravadoras usam a desculpa dos tique-toques desta vida, da redução do tempo de concentração. E tem sido caricato ouvir as desculpas que os músicos dão:
– Eu queria que fosse conciso e bom, para vocês quererem ouvi-lo várias vezes de seguida – disse Mike sobre a edição-padrão de From Zero.
– É um grande privilégio tomar trinta e cinco minutos do tempo de alguém. Não vou pedir-vos mais tempo, este é precioso – disse Lorde sobre o seu último álbum, Virgin.
– Podem ouvir duas vezes – disse Taylor Swift nos comentários de um Tik Tok de alguém queixando-se da curta duração das faixas de The Life of a Showgirl.
Meus senhores, ide enganar outra!
Em defesa de Taylor, o seu álbum mais recente é o sucessor de um autêntico testamento musical. Tem desculpa para, agora, lançar um trabalho mais conciso. Mesmo o Virgin, de Lorde, não soa demasiado curto, na minha opinião.
Ainda assim, regra geral, sempre preferi álbuns mais compridos do que curtos. Não digo que todos os álbuns tenham de ter a duração do The Tortured Poets Department: The Anthology ou, mais recentemente, do Ego Death at a Bachelorette Party. Mas sou antiquada: para mim um álbum deve ter entre doze e catorze faixas e, no mínimo, quarenta minutos de duração.
Dito isto, olhando para as músicas de From Zero em si, tirando os casos específicos da introdução e de Overflow, nenhuma das faixas soa curta demais. Por outro lado, agora que temos a versão Deluxe, esta soa mais completa, soa à versão definitiva do álbum. E, sejamos sinceros, não devia ser assim.
Ao mesmo tempo, tendo em conta que duas das músicas só ficaram concluídas após o lançamento da edição-padrão, também não sei o que podiam os Linkin Park ter feito de diferente.
Também me chateia (ainda) não haverem, à hora desta publicação, versões instrumentais, nem à capela, nem episódios da LPTV para estas três músicas.
Tecnicamente, a versão Deluxe foi editada em maio. Na prática, eles lançaram uma música de cada vez nas semanas anteriores: Up From the Bottom em finais de março, Unshatter em finais de abril e Let You Fade a 17 de maio, quando saiu o álbum todo. Nesse sentido sou menos antiquada: foi um lançamento interessante. Cada uma das músicas teve o seu momento.
Nas semanas anteriores ao lançamento de Up From the Bottom, a banda foi dizendo que esta era a melhor música que os Linkin Park alguma vez tinham criado. Não sei se eles estavam a falar a sério – com estes bacanos, não dá para ter certezas de nada. Dito isto, agora que já conheço a música… não digo que seja de facto a melhor dos Linkin Park, mas, vá lá, poderia figurar sem vergonha no alinhamento de Papercuts. É a minha preferida das três faixas extra da edição Deluxe e mesmo uma das minhas preferidas em From Zero, ponto.
Up From the Bottom terá sido composta há cerca de um ano, talvez um bocadinho mais. Foi já depois do regresso oficial, entre datas da mini digressão do ano passado. A banda ter-se-á inspirado precisamente na energia desses concertos.
Nota-se. É um dos meus aspetos preferidos da música: a sua energia incrível.
Não que tenha muito muito a dizer sobre ela. A letra, não sendo nada de extraordinário, é boa. Em termos de vocais, Emily desempenha o papel principal com competência. E gosto de ouvir Mike nos vocais de apoio na segunda estância.
A melhor parte é a terceira. Gosto do ritmo do rap de Mike. Este termina com “already off running”, temos uma pausa de cerca de meio segundo, antes de uma sequência absolutamente alucinante. Consta que mistura guitarra, teclado, discos giratórios, vocais de Emily. Mike explicou-o num tweet demasiado técnico para os meus humildes conhecimentos, de tal forma que nem consigo traduzi-lo.
Só sei que será, porventura, o melhor momento instrumental em todo o From Zero.
Up From the Bottom teve direito a videoclipe. Não sendo mau, não é nada da extraordinário. Casa bem com a música e adoro os visuais deles todos, sobretudo de Emily (tenho de comprar calçar tipo “cargo”). A minha cena preferida é aquela em que Mike passa a guitarra a Emily antes da fantástica terceira parte. É um momento discreto, talvez insignificante, mas a mim tocou-me. Já sou fã de música há muitos anos mas, tanto quanto me lembro, nunca vi membros de uma banda trocando instrumentos entre si num videoclipe.
É bonito.
Unshatter terá sido uma das primeiras músicas que os Linkin Park terão criado com Emily. Há uma história engraçada por detrás disso: quando Emily estava no gabinete a gravar a terceira parte da música, Colin terá entrado no estúdio. Ao ouvir o que estava a ser gravado, terá dito algo como:
– Olha! Parece a cantora dos Dead Sara!
Imagino que Mike tenha dito algo como:
– Tem piada dizeres isso…
Colin terá reagido com entusiasmo ao descobrir que era mesmo com Emily que estavam a colaborar. Tudo isto terá, então, decorrido antes de o alinhamento da nova versão dos Linkin Park estar definido.
Colin não foi o único a ouvir a terceira parte de Unshatter e a pensar “Dead Sara”. Vários fãs tiveram a mesma reação quando a música saiu. Curiosamente… eu não o vejo. E até tenho dado muita rotação a Dead Sara neste ano civil. Para mim, aquela terceira parte é clássico screamo de Linkin Park. Podia ter sido criado para Chester interpretar.
Temos de novo Mike no rap, Em no refrão. Temos de novo uma bateria forte, semelhante a Cut the Bridge. Um pouco semelhante demais, penso eu – talvez tenha sido por isso que tenha sido deixada de fora da edição-padrão.
Na minha opinião, foi a decisão correta. Cut the Bridge é melhor. Unshatter não é má. Tem um refrão cativante. Tirando isso e o seu significado histórico, no entanto, não me diz muito. Gosto menos que do restante From Zero.
Só falta falar, então, sobre Let You Fade. Uma das mais… interessantes em todo o álbum.
Esta terá começado a ser composta ainda durante os trabalhos de From Zero edição-padrão, mas a banda só conseguiu concluí-la e gravá-la em finais do ano passado. Assim que foi lançada, toda a gente fez a mesma interpretação.
Vou um bocadinho mais longe – ou melhor, vou numa direção ligeiramente diferente. Para mim, a letra de Let You Fade (não o som) recorda-me Post Traumatic, de Mike. Faz a ponte entre esse álbum e From Zero – no sentido em que é menos sobre a perda de Chester em si e mais sobre as consequências dessa perda. Sobre a perda da banda.
A primeira parte fala sobre noites mal dormidas (um tema recorrente em Post Traumatic), lamenta esforços feitos por um projeto que colapsou de um dia para o outro (“breaking our backs for a pile of sand, just to have it all falling out of our hands”). A segunda parte parece ser sobre a reconstrução da banda, o receio de que tudo volte a falhar (“Tryin’ to get with the rhythm, I’m all over the place”), a noção de que nada poderá ser como dantes (“we don’t want to admit that we are never going back”).
O refrão, por sua vez, é todo ele uma promessa: recordar alguém, honrar a sua memória, mesmo com todas as voltas que a vida possa dar.
Let You Fade terá começado como uma música calminha, só piano e voz, antes de a banda perceber que a música precisava de mais intensidade. O resultado final é, digamos, barulhento. Nem sequer sei se pode ser considerado balada.
Eu gosto assim. Existem muitas músicas sobre luto mais calmas e eu gosto de várias: Hear You Me, dos Jimmy Eat World, por exemplo, Bigger than the Whole Sky, de Taylor Swift, a própria One More Light. Dito isto, há alturas que preciso de música sobre perda com algum barulho, com notas agudas, para a catarse. Who Knew, da P!nk, sobretudo a parte final; Brighter, dos Paramore. Mesmo regressando a One More Light, a minha parte preferida é o solo de guitarra muito suave e o grito de “I do” – na versão de estúdio soa apenas no fundo, ao vivo soa alto e bom som. Têm sido muitas as ocasiões em que grito essa parte em coro com o Ivo, nos concertos de Hybrid Theory – é de facto uma grande catarse.
Por outro lado, o refrão cantado num tom mais grave e calmo por Mike – provavelmente mais parecido com com a tal versão só com piano e voz – funcionaria bem como uma conclusão para One More Light ao vivo. Se alguém estiver interessado… fica a sugestão.
Ora, Mike disse que a letra de Let You Fade não é sobre a perda de Chester. Não quero acusá-lo de estar a mentir – até porque é possível q|ue não tenha havido uma única situação a inspirar a letra – maaaaaasssss… vá lá.
Dito isto, não os censuro. Eu compreendo – tal como compreendo que não queiram voltar a tocar One More Light, pelo menos para já. Isto não é fácil para ninguém. Já escrevi muito sobre a perda de Chester, sobre como a sua vida e morte estarão para sempre ligados aos Linkin Park, para o melhor e para o pior. Mike compôs uma música sobre isso – About You, do álbum Post Traumatic – em 2017/2018. Acredito que esse seja um dos motivos pelos quais demoraram tanto tempo a reconstruir a banda. Não é fácil para ninguém e, ao fim de mais de oito anos, de milhares ou mesmo de dezenas de milhar de palavras escritas, de todas as fases do luto, as convencionais e as inventadas para este caso em específico, continuo sem saber a maneira correta de lidar. Se é que existe uma maneira correta.
Penso que todos concordamos que, de uma maneira ou de outra, não existe Linkin Park sem Chester e nunca existirá. Tal como reza Let You Fade, Chester nunca será esquecido – os milhões de fãs que deixou para trás nunca o permitirão. Ao mesmo tempo, já lá vão oito anos (não oito dias, não oito meses, oito anos). As saudades não desaparecem, mas nenhuma pessoa mentalmente sã vive em luto para sempre. Eu então já chorei muito, demasiado, pelo Chester. Foi necessário nas diferentes alturas, mas agora prefiro recordá-lo com alegria, celebrar as coisas boas da minha vida que ganhei graças a ele, direta ou indiretamente.
Na mesma linha, compreendo que, nesta fase, os Linkin Park queiram contrabalançar o luto com alegria, que queiram fazer da banda um espaço seguro, um escape. Estão no seu direito. E tem resultado, entre palhaçadas, soutiens, gomas, fatiotas do Lidl, disfarces do Maradona, “gender reveals”. Não é por acaso que digo que o universo dos Linkin Park é uma das poucas coisas boas a acontecer no mundo neste momento.
Dito isto, é bom termos um momento com Let You Fade, onde os fãs possam projetar as suas emoções em volta de Chester. Na minha opinião, era a peça que faltava a From Zero. Agora o álbum está completo.
Como disse antes, From Zero é um típico álbum de Linkin Park. Quem for fã da banda e não tiver picuinhices em relação a Emily, vai gostar. Já tive oportunidade de ouvir as músicas de From Zero em aleatório à mistura com o resto da discografia dos Linkin Park e estas encaixam perfeitamente. Não tenho uma tabela classificativa com os álbuns da banda, pois estes estão em constante reavaliação. Mas neste momento diria que From Zero está confortavelmente na meio da tabela – a meio e a tender para cima.
Também vimos que From Zero não inova muito, o que é compreensível. Dito isto, é possível que o seu sucessor seja mais experimental – sobretudo tendo em conta que, desta feita, não estarão a reconstruir a banda ao mesmo tempo que criam o álbum. Pode ser que Emily e Colin tenham ainda mais influência no próximo trabalho. Eu gostava.
Para quando podemos esperá-lo? É uma boa pergunta. A digressão atual prolongar-se-á até meio do próximo ano – literalmente, a última data é 30 de junho – e passará por cá. São muitas datas e aqueles bacanos já não são assim tão novos: os mais jovens estão perto dos quarenta, os mais velhos estão perto dos cinquenta. Duvido que não precisem de pelo menos uns meses para descansarem depois desta.
Mike é Mike, é viciado. Mesmo que a digressão páre, aposto que ele se vai enfiar logo no estúdio. A questão é se será para criar música para os Linkin Park ou para projetos laterais. Mike tem dito que os Linkin Park são o seu verdadeiro amor, não será uma grande surpresa se quiser manter o comboio em andamento, para compensar pelo tempo perdido. Há de depender mais da vontade dos colegas.
Depois temos Emily com os Dead Sara. Acho que ela não quer desistir da sua banda original – algo que aplaudo. Até porque eu mesma, entretanto, me tornei fã da banda, ainda de forma muito superficial. Talvez queiram criar um álbum novo entretanto e/ou mesmo fazer uma digressão. Eu ficaria contente, mesmo que a possível digressão não passe por Portugal.
A minha única preocupação é que Emily – ou qualquer um dos outros, na verdade – se estique demasiado com todos estes projetos. Porque suspeito (atenção, isto sou só eu a especular, vale o que vale) que o burnout tenha sido uma das coisas a tramar Chester no fim. Até 2017, os Linkin Park andavam a lançar álbuns a cada dois, três anos. Não me importava se, nesta segunda vida, os ciclos vierem com mais anos de intervalo. Não deixa de ser uma melhoria em relação aos sete anos de pausa – desde que os seis (sete, se contarmos com Alex Feder, o guitarrista de apoio) estejam saudáveis e felizes.
Mesmo na pior das hipóteses, mesmo que tudo acabe, usando uma expressão muito usada por uma certa banda de tributo, os últimos catorze meses e tal já ninguém nos tira. Dito isto, espero que From Zero seja o primeiro de muitos álbuns desta versão da banda, que esta segunda vida dure até Mike, Emily e os outros terem noventa anos.
E era tudo o que tinha a dizer sobre From Zero. Não posso terminar sem deixar um agradecimento ao site Linkinpedia, que como o costume me facilitou imenso a pesquisa para esta análise. O próximo álbum sobre o qual escreverei será Virgin, de Lorde. Uma parte de mim quer desesperadamente saltar para Ego Death at a Bachelorette Party, de Hayley Williams: um álbum ainda mais sumarento do que o costume no que toca ao universo dos Paramore. Mas tenho de dar uma oportunidade a Virgin – é o mínimo, sobretudo tendo em conta que vou finalmente ver Lorde ao vivo, no próximo ano.
Além disso, já não é a primeira vez que digo que o universo dos Linkin Park e o dos Paramore têm tido mais tempo de antena aqui no estaminé do que quaisquer outros. Tenho de continuar a diversificar.
Como sempre, muito obrigada pela vossa visita. Até à próxima.
Hoje vamos finalmente falar sobre From Zero, o álbum de regresso dos Linkin Park após uma pausa de sete anos, devida à morte do vocalista Chester Bennington, em 2017. Faz hoje um ano do lançamento da edição-padrão do álbum, mas neste texto falaremos também sobre Up From the Bottom, Unshatter e Let You Fade. Ou seja, tecnicamente, esta é uma análise à edição Deluxe de From Zero, editada oficialmente a 17 de maio deste ano. Virá dividida em duas partes, a segunda parte será publicada logo à tarde.
Conforme já expliquei anteriormente, já gosto mais do título From Zero. Se quisermos ser cem por cento factuais, claro que os Linkin Park não começaram do zero: tinham sete álbuns e cerca de vinte e cinco anos de história a sustentá-los. Penso que, neste contexto, tirando a alusão à primeira versão dos Linkin Park, Xero, “Zero” representa os sete anos de pausa. A banda e os fãs têm usado a expressão “From Zero to [país ou cidade onde há concerto dos Linkin Park]”. Nós, por exemplo, temos dito “From Zero to Portugal”, a propósito do concerto deles no Rock in Rio do próximo ano. Há uma t-shirt e tudo!
Porque a sensação é mesmo essa: recuperámos a nossa banda do nada. Antes deste regresso, não me atrevia a sonhar com, por exemplo, um regresso deles cá.
Por outro lado, se me permitem que volte a falar outra vez sobre os Hybrid Theory, o tributo português aos Linkin Park, a expressão From Zero também se aplicaria a eles. Um dos nomes que terão usado, quando o plano ainda era criarem música original, era Zeroh. E nem sequer era uma referência a Xero, não tinha nada a ver com os Linkin Park. Segundo o Ivo, o vocalista, aludia ao facto de terem zero ideias para o nome da banda.
Não vou comentar.
Regressando a From Zero, o álbum, este é mais ou menos o que seria de esperar. Um típico álbum dos Linkin Park. Pode-se argumentar que a banda jogou pelo seguro em vez de explorar territórios novos – como fora a norma desde Minutes to Midnight, inclusive, para a frente. Como já escrevi antes, acho compreensível. No que toca a este álbum, estarem ativos depois de tanto tempo em latência, depois de reconstruírem a banda, já é território novo.
Além de que duas pessoas novas na banda, em particular uma nova voz, já constituem novidade suficiente. Suficiente até para a comunidade de fãs entrar em guerra civil – algo que também já era a norma.
Alguns fãs têm tratado as faixas de From Zero como se cada uma delas representasse um álbum anterior ou mesmo uma música anterior. Não concordo. Tirando dois casos específicos e muito óbvios de músicas que soam auto-plagiadas – e, fiquem descansados, falaremos sobre isso – mesmo sem grande experimentalismo, a larga maioria de From Zero tem carácter próprio que chegue. Aliás, sempre notei algumas influências de Post Traumatic, o álbum a solo de Mike Shinoda, compositor, produtor, multi-instrumentista e essencialmente cérebro dos Linkin Park. O próprio Mike confirmou-o em entrevista, no verão passado.
As faixas de From Zero têm muitos “samples” – um de Fuse, um tema do tempo dos Xero, juntamente com o som de uma cassete sendo virada, no final de Overflow; um sample de Step Up no início de IGYEIH – muita conversa de estúdio entre faixas. Faz lembrar o The Hunting Party por um lado, mas já reparei que, por exemplo, Heroes dos Dead Sara (a primeira banda de Emily Armstrong, a sucessora de Chester como vocalista dos Linkin Park) também incluiu conversa de estúdio no fim. Talvez seja uma maneira de comunicar que é suposto ouvir-se o álbum do princípio ao fim, pela ordem correta. Eu, no entanto, já ouvi o álbum em aleatório e as transições funcionam à mesma.
As exceções são o “get your screaming pants on” entre Over Each Other e Casualty e, claro, o final de Good Things Go e o início de Intro: From Zero. Eles fizeram algo que os Coldplay costumavam fazer (será que ainda fazem?) com os álbuns deles: transições entre as últimas faixas e as primeiras, criando um loop. Segundo Mike, a ideia era que o álbum formasse um círculo, um zero.
O que nos leva, então, a Intro: From Zero. Não é a primeira vez que os Linkin Park abrem álbuns com faixas que não são canções a sério, mas eu diria que esta é a menos necessária, a que menos acrescenta. Consiste no coro por detrás do refrão de The Emptiness Machine (com vozes de Emily e Mike) e uma voz essencialmente tentando descortinar o significado de “from zero” – eventualmente percebendo a referência a Xero.
Durante algum tempo pensou-se que seria a voz de Emily. Mike disse que não, terá sido um miúdo, provavelmente pré-adolescente. Já pensei que seria o filho mais velho de Mike – penso que o nome dele é Odis – mas suponho que ele já será demasiado velho para soar assim.
Tem a sua graça mas, como disse acima, na minha opinião, não acrescenta o suficiente ao álbum para justificar a sua existência. Mais valia terem feito o loop com o início de The Emptiness Machine. Ou então, se precisavam mesmo de uma introdução, que esta fosse um instrumental que fizesse a ponte entre essa e Good Things Go.
O que nos leva a The Emptiness Machine. Tecnicamente, já escrevi sobre ela no ano passado, pouco depois de a música ter saído, mas as minhas opiniões… não digo que tenham mudado radicalmente, mas foram evoluindo com o tempo.
The Emptiness Machine foi uma das primeiras faixas de From Zero a serem criadas. Mike tê-la-á composto algures em 2022. Na altura, ele andava a compôr músicas a solo – terá composto In My Head depois desta – mas sempre soube que The Emptiness Machine era música de Linkin Park, logo, guardou-a. Consta que a primeira versão de The Emptiness Machine tinha apenas a voz de Mike e que o feedback de quem a ouviu era apenas médio-bom. Entretanto, Emily juntou-se à festa, rearranjaram a música de modo a que ela entrasse após o primeiro refrão. Aí, a avaliação da música passou de “boa” a “estratosférica”.
E tinham razão.
Eu adoro The Emptiness Machine. Agora vejo que fui um pouco crítica demais no texto do ano passado. Talvez tenha internalizado um pouco das reações negativas à música e ao regresso da banda em geral. Talvez fosse o instinto, muito prevalente na comunidade de fãs desta banda, de inicialmente não reagir bem a um novo ciclo de álbum.
Não sei. Nem eu nem muitos outros fãs dos Linkin Park mostrámos a nossa melhor faceta em setembro de 2024. O que vale é que muitos de nós conseguimos evoluir além disso. Há quem (ainda) não o tenha feito.
Regressando a The Emptiness Machine, a minha parte preferida é mesmo a entrada de Emily. Vou dizê-lo já: um dos melhores aspetos de From Zero é o contraste entre as vozes de Mike e Em. Se fosse Chester a cantar, estas músicas não resultariam, o carácter não seria o mesmo – a voz dele cumpria um papel diferente. É por isso que depressa deixei de tentar imaginá-lo cantando as músicas novas.
O momento, então, em que Emily começa a cantar em The Emptiness Machine é marcante, só por si mesmo. Conhecendo o contexto histórico, torna-se ainda mais especial. Olhando para o resto do álbum, não existe mais nenhuma música com esta estrutura. Faz sentido que tenha sido escolhida como primeiro avanço – nenhuma outra funcionaria tão bem para assinalar o regresso.
Em relação à letra, não tenho nada a acrescentar. Aliás, aproveito para avisar que, em várias músicas de From Zero, não falarei sobre as letras. Temos muitos clichés de Linkin Park aqui – temas combativos, revolta contra pessoas e/ou situações tóxicas – e, embora não desgoste da maior parte dos casos, não tenho muito a dizer.
Claro que temos notáveis exceções à regra. Não passarão em branco.
Regressando a The Emptiness Machine, gosto imenso dela. Tanto pela música em si como pelo papel que desempenhou. As vozes de Mike e Emily soam fabulosas – recomendo a versão à capela. Uma das melhores dos Linkin Park – não digo ao nível de Numb ou de In the End mas, vá lá, Burn it Down ou What I’ve Done.
Vou também falar de novo sobre Heavy is the Crown. Consta que esta nasceu de uma ideia com vários anos. Mike terá desenvolvido um tema para a banda sonora de Arcane – uma série animada que decorre no universo dos jogos League of Legends (é possível que esta última parte seja do conhecimento geral, mas eu só descobri há cerca de um ano). Mike esteve na estreia da primeira temporada em finais de 2021 – onde decorreu o momento delicioso mostrado neste vídeo – terá conhecido o compositor da banda sonora de Arcane, Alex Seaver. Pouco depois, convidou-o a sua casa onde lhe terá mostrado a demo de uma ideia para a banda sonora da segunda temporada – ideia essa que daria origem a esta versão.
Cheguei a pensar que o plano seria Mike gravá-la a solo – ou arranjar alguém para interpretá-la. Só que entretanto encontrei este artigo que dá a entender (é algo ambíguo) que, já em finais de 2021, princípios de 2022, Mike tinha planos para recuperar os Linkin Park, ainda que ainda não tivesse recrutado Emily.
De qualquer forma, a segunda temporada de Arcane estreou no ano passado, três anos depois. Deu tempo a Mike e os outros para reconstruírem a banda – e Emily acabou por cantar na versão usada na banda sonora.
Entretanto, os Linkin Park decidiram criar uma versão mais roqueira para From Zero. Essa versão reteve o carácter épico e cinemático – que se mantém o meu aspeto preferido da música. É o que lhe dá personalidade, o que a distingue de Faint, com que partilha muitos aspetos, conforme referimos antes. Pelo meio, a banda e Seaver lembraram-se de fazer dela o hino oficial da edição de 2024 Campeonato Mundial de League of Legends. Os Linkin Park tocaram-na ao vivo na final do campeonato, em Londres, a 2 de novembro do ano passado – na véspera do concerto deles em Paris.
Nesse dia, como podem ver no vídeo acima, Olivee May, a repórter que não reconhecera Mike em 2021, pôde reencontrá-lo (a cara dele mata-me) e redimir-se. Assim se fecharam dois ciclos no mesmo dia.
Dito isto, apesar de ainda gostar de Heavy is the Crown, devo confessar, esta foi ficando para trás nos meus interesses à medida que fomos conhecendo mais músicas de From Zero. Mais: em setembro do ano passado, juraria a pés juntos que gostava mais de Heavy is the Crown do que de The Emptiness Machine. Agora já não é verdade.
O single que se seguiu, por sua vez, é uma das minhas músicas preferidas neste álbum. Over Each Other, lançada em finais de outubro do ano passado, poucas semanas antes do álbum. Tem uma personalidade diferente das suas antecessoras: uma balada, ainda que sem deixar de ser rock. Lembra temas como Valentine’s Day ou Final Masquerade. Uma das minhas partes preferidas em termos de instrumental é a sequência que se segue ao segundo refrão: mesmo a puxar aos headbangs.
Até agora, da era de Emily, esta é a música com menos Mike nos vocais – só um backvocal aqui e além. É o mais próximo que temos de uma música de Linkin Park cantada a solo por Emily. Não acho muito justo. Nos álbuns anteriores, Chester tinha sempre direito a pelo menos a duas ou três músicas a solo nos vocais em cada álbum (em Minutes to Midnight e em One More Light chegou a ter sete). Porque é que Emily só tem uma até agora? Pode passar a ideia de que a banda (ainda) não confia nela para carregar uma música sem a “ajuda” de Mike.
Por outro lado, o co-vocalista tem vindo a ganhar traquejo com a sua voz nos últimos anos – como cantor mesmo, não apenas como rapper. Já vinha a fazê-lo ainda Chester era vivo. Pode-se argumentar que ele viria sempre a ganhar cada vez mais protagonismo nos vocais.
E de qualquer forma, como já dei a entender, tenho gostado de ouvir Emily e Mike cantando juntos.
Regressando a Over Each Other, Jon Green é um dos compositores, depois de já ter contribuído para One More Light, o álbum. Não diria que Over Each Other se encaixaria nesse disco, pelo menos não em termos de sonoridade. Por outro lado, para mim, a letra soa a uma continuação de Friendly Fire (lançada no mesmo ano, mas numa era completamente diferente): conflitos desnecessários entre entes queridos. No caso de Over Each Other, tais conflitos baseiam-se em problemas de comunicação. Penso que é suposto considerarmos que a letra fala sobre uma relação romântica mas, na minha opinião, é daquelas que se podem aplicar também a amizades ou relações familiares.
No respetivo episódio da LPTV, ouvimos parte de uma versão de Over Each Other cantada por Mike, grava algures em finais de 2022 – e até nem soa má. O vídeo salta para mais de um ano depois, já com Emily, mostrando Mike orientando-a enquanto esta criava a sua interpretação. E Em, tal como em The Emptiness Machine, elevou a música a todo um outro nível, sobretudo em termos de emoções.
A minha parte preferida é o último refrão: o verso “so say what’s underneath, I want to see your side” – o desespero e súplica tangíveis.
O videoclipe foi realizado pelo DJ da banda, Joe Hahn, e filmado em Seul, na Coreia do Sul. Ele e Emily ficaram para trás depois do concerto dos Linkin Park por lá, no ano passado. Joe ter-se-á inspirado em novelas coreanas (essa é a tradução correta para k-drama?) e nota-se um bocadinho.
Resumidamente, temos Emily e a sua namorada, têm uma discussão, a discussão prolonga-se até ao volante e têm um acidente. Melodramático e cliché – dos maiores clichés que existem – mas, a meu ver, funciona. Era o que a música pedia. E, de qualquer forma, sempre saca uma boa reviravolta, quando descobrimos que a Emily a cantar no local do acidente é um fantasma.
Over Each Other foi estreada ao vivo em Paris, precisamente no concerto a que fui. Emily toca guitarra nela – se a memória não me falha, foi a primeira vez enquanto vocalista dos Linkin Park. Foi agradável, mas na altura tinha alguma esperança de que estrearam uma inédita no meu concerto – tal como tinha acontecido no Rock in Rio de 2014, com Wastelands. Quem teve essa sorte foi Dallas, alguns dias mais tarde.
Nesta altura, vários de nós já sabiam que Casualty seria uma música pesada. Mike e Emily tinham-no referido neste podcast e, no final de Over Each Other, ouve-se Mike dizendo “OK, get your screaming pants on”. Já se conhecia o alinhamento do álbum, sabíamos que Casualty vinha depois de Over Each Other, noves fora…
Uma confissão: não gosto deste posicionamento. Sei que não é uma prática assim tão estranha transitar de uma música mais calma e sentida para uma música mais agitada e vice-versa. Nem sequer é a única vez que acontece em From Zero. Normalmente não me importo. Neste caso em específico, no entanto – talvez por Over Each Other mexer comigo como poucas mexem – é um contraste demasiado grande, na minha opinião.
Casualty terá nascido de uma ideia do guitarrista Brad Delson. Este juntou-se à festa com algum atraso. Quando já se sentia integrado no novo formato dos Linkin Park, sugeriu comporem algum bem pesado, algo que levasse Emily ao extremo (...agora que escrevo isto, pergunto-me se isto era a maneira de Brad de testar a miúda nova, de lhe fazer a praxe). Em correspondeu ao desafio, foi com tudo ao compôr o refrão, impressionando Mike.
Este por sua vez também se superou. Cantou em quase screamo, algo que, tanto quanto sei, nunca tinha feito. Muito fixe. E, uma vez mais, gosto do contraste entre a voz dele e a de Emily.
A letra, não sendo nada de extraordinário, tem os seus momentos. Só há poucos dias, quando ouvi a versão à capela da música, é que reparei no "Let's get out alive!" de Emily, no início da música. Estranhamente inspirador. Além disso, gosto de imaginar que o refrão é cantado por uma personificação do segredo do regresso dos Linkin Park – na Primavera do ano passado, quando andavam a escapar as primeiras pistas. “‘Cause something’s coming, it’s only a matter of time. Let me oooout! Set me free! I know all the secrets you keep!”.
E, inveja à parte, a estreia de Casualty ao vivo foi icónica. Mike invocando as “screaming pants” de Emily, a cara desta última, Em dizendo-se “muito tímida” antes de desatar aos gritos e aos headbangs. O que, por sinal, espelha bem a minha personalidade, as minhas duas facetas.
A última música que conhecemos antes do lançamento oficial de From Zero foi Two Faced – ainda que, no meu caso, não tenha sido bem assim. Se me permitirem o aparte, queria falar sobre a listening party oficial de From Zero – cujas recordações, para mim, estão associadas ao álbum em geral e a Two Faced. Na verdade, queria já ter falado sobre este evento neste texto, mas tive de cortar essa parte por motivos de extensão.
A listening party teve lugar dois dias antes do lançamento oficial do álbum, na sede da Warner Music Portugal. Inicialmente era um evento só para membros do LP Underground, mas acabaram por alargar a qualquer um que pedisse. Fui, naturalmente, com alguns amigos da família HT.
Foi uma noite muito gira. Na altura, nunca tinha ido a nenhuma listening party até à altura ou a outro evento do género. Foi a primeira vez que ouvi From Zero do princípio ao fim – tocaram-no duas vezes. Durante a primeira audição, ficámos só ali de pé, frente a uma grande tela onde fora projetada uma fotografia da banda – em que Mike e Emily pareciam estar a olhar diretamente para mim. Quando o álbum tocou segunda vez, dispersámo-nos pelo resto da sala, à volta das mesas onde estavam servidos canapés.
Já posso dizer que os Linkin Park me ofereceram jantar.
No fundo, foi mais uma noite para celebrar a banda e o seu regresso. Mais um exemplo de coisas que, poucos meses antes, julgava remotas.
Estou zangada em relação a uma coisa, no entanto. A Warner Portugal fez um reel do evento, mas retiraram-no das redes sociais. Eles entrevistaram-me durante o evento e passaram parte das minhas palavras na narração. Devia ter sacado o vídeo quando tive hipótese.
Regressando a Two Faced, durante a listening party, antes desta faixa, uma das pessoas com quem fui segredou-me que esta era muito Hybrid Theory (ele já tinha arranjado maneira de ouvir From Zero… não me perguntem como). Depois de ouvir pela primeira vez, a minha reação foi, de facto:
– Isto é quase um remix de One Step Closer!
Não fui a única. Nos dias que se seguiram apareceram logo montagens misturando as duas músicas. Uma das minhas preferidas é esta – parece que Chester e Emily estão aos gritos um com o outro.
– I can’t hear myself think…
– Shut up when I’m talking to you!
– Stop yelling at meeee!
– Shut up!
– I can’t hear myself think!
– Shut up!
Houve quem também apontasse semelhanças com Figure.09. Esta, já de si, é muito parecida com One Step Closer. As duas possuem um ancestral comum: a demo Plaster. Na preparação deste texto, apercebi-me que, na verdade, Two Faced parece-se ainda mais com Figure.09 que com One Step Closer. Ambas têm rap de Mike, os refrões têm melodias semelhantes, os gritos na terceira parte terminam ambos com “meeee”: “Get away from meeee! ”, “Stop yelling at meeee!“.
Uma vez mais, há misturas no YouTube, como a abaixo, em que incorporaram os vocais de Two Faced no instrumental de Figure.09. Encaixam quase na perfeição.
Ora, Mike recusa comparações entre Two Faced e músicas anteriores.
– Só quem não conhece bem a discografia dos Linkin Park – terá dito.
Assumindo que não nos está a tomar por parvos, há que recordar que este é o homem que garante a pés juntos que Meteora é um disco completamente diferente de Hybrid Theory. Eu adoro o Mike, mas nem tudo o que este senhor diz se escreve.
Também não acho que a intenção dele e do resto da banda com Two Faced fosse criar uma nova versão de One Step Closer. Mike afirmou ter-se inspirado nas suas influências durante os tempos de Xero, pré-Chester. Já vimos antes que, desta feita, os Linkin Park tiveram menos pudor em reutilizar elementos de trabalhos anteriores. Finalmente, como vemos no respetivo episódio da LPTV, a parte do “Stop yelling at me!” foi ideia de Emily, uma expressão que ela usa. Calhou ser algo que pertence ao mesmo território de “shut up when I’m talking to you!”.
Ainda assim, lamentavelmente, não consigo desassociar Two Faced de One Step Closer e de Figure.09. Não que não goste da música, atenção. Mal por mal, são elementos clássicos de Linkin Park e eu gosto de Linkin Park. Mas, infelizmente, Two Faced não consegue ter carácter próprio.
Queria assinalar um aspeto curioso. Como sabem, o refrão começa com “two faced, caught in the middle”. Esta última expressão é relativamente comum na língua inglesa – é inclusivamente o título de uma música dos Paramore. E aparentemente, segundo este Tik Tok, a expressão é cantada sempre com esta melodia – com muito poucas variações. Eles só dão quatro exemplos – incluindo Two Faced e Caught in the Middle dos Paramore. Poderão existir várias outras músicas usando a mesma expressão que não a cantem da mesma forma.
Mesmo assim, quatro músicas de bandas diferentes usando essencialmente a mesma melodia? É uma coincidência muito grande.
Ainda dentro do tema, logo nos primeiros dias após o lançamento da música, fãs começaram a brincar dizendo que o início do refrão soava a “toothpaste, bought in the Lidl” ou outras variantes. Não digo que não ache piada ao meme, mas sempre me pareceu um tudo nada forçado. Mais do que, por exemplo, “try the ketchup, motherfucker”.
Dito isto, os Linkin Park entraram na piada. A partir de certa altura – quando começou a digressão europeia deste ano, ou talvez antes – os fãs começaram a especular se Emily andava a cantar a letra erradamente de propósito. Tivemos a confirmação quando, no concerto de Dusseldorf, a mulher foi-me vestir uma daquelas fatiotas do Lidl para cantar Two Faced, como podem ver no vídeo acima.
Daquelas coisas que não estavam no meu cartão de bingo para os Linkin Park há um ano ou dois. “Já não bebes mais”, diria eu se mo contassem. Ao mesmo tempo, isto foi umas duas outras semanas depois de Emily ter rapado o cabelo a um fã a meio de um concerto. Soube a uma terça-feira normal no universo de Linkin Park.
Consta que, no concerto seguinte, ainda na Alemanha, andaram a distribuir fatos do Lidl entre os fãs na fila. Se fosse comigo, no entanto, bem diria aos Linkin Park para tirarem o cavalinho da chuva. Seria capaz de morrer por eles, mas não de vestir uma fatiota daquelas. Há limites.
Falta só falar sobre o videoclipe para Two Faced – o motivo pelo qual a música estará para sempre ligada à listening party. Saiu nessa mesma noite, poucas horas depois. Eu e os meus amigos vimo-lo pela primeira vez no telemóvel de um de nós, à porta de um bar na 24 de julho. Lembro-me de nos rirmos da cena final.
Aparentemente, um videoclipe para Two Faced não fazia parte dos planos, terá sido insistência da gravadora. Ninguém tinha nenhuma ideia. Mike em particular não andaria com grande vontade – e de facto, se pensarmos nisso, o vídeo foi filmado poucos dias antes do concerto de regresso. Eles deviam andar numa pilha de nervos nessa altura, não precisavam mais desta.
Joe lembrou-se de aproveitar o palco do concerto de regresso, vestir toda a gente de fato e gravata e pura e simplesmente tocarem a música. E a banda acabou por se divertir à grande. Com o playback, não precisava de se preocupar em cantar e/ou tocar como deve ser, tiveram permissão para se descontrolar, para abanarem o capacete, para andarem ao moche. Como eu e os meus amigos nos concertos. E isso refletiu-se no resultado final, no vídeo. Dá gosto ver.
Voltando à questão dos nervos pré-regresso, se eu estivesse no lugar dos Linkin Park, uma tarde de headbangs seria exatamente aquilo de que precisaria para lidar.
O episódio da LPTV que mostra os bastidores das filmagens é também delicioso. Emily chegando de skate, claro. Mike portando-se como se tivesse a idade dos próprios filhos nas brincadeiras entre takes. Emily acidentalmente empurrando o baixista Dave Farrell contra a bateria (esqueceu-se que tem de ter cuidado com os velhotes); com o joelho magoado; deitada de costas no chão, com Mike abanando-lhe a mão como se fosse um leque.
Não digam a ninguém, mas já tive vontade de fazer o mesmo depois de alguns concertos dos HT. Sobretudo depois do de Gondomar.
Acho que não é a primeira vez que refiro cá no blogue que nem sempre ligo aos videoclipes dos Linkin Park. Over Each Other e Two Faced são duas exceções. Estão entre os meus preferidos.
E para já ficamos por aqui. Não saiam desse lado, que a segunda parte vem já a seguir. Obrigada pela vossa visita.
Digimon Adventure 02: O Início estreou nos cinemas japoneses em outubro de 2023. Pouco mais de seis meses depois, no dia 16 de maio de 2024, chegou aos cinemas portugueses na sua versão original legendada. Fez parte de um ciclo de anime da Nos, que incluiu outros filmes do género: por exemplo, Spy x Family Código: Branco – um anime de que gosto muito, como penso já ter referido algures aqui no blogue.
O Início é protagonizado (bem… mais ou menos) pelo elenco de heróis de Digimon 02. Decorre pouco menos de dois anos após os eventos de Digimon Adventure Kizuna: A última evolução. Na minha opinião, Kizuna é uma das melhores coisas que Digimon alguma vez fez (só mesmo em termos de impacto emocional). Os temas que aborda – crescimento, perda, escolhas, lidar com o passado, encarar o futuro – são universais, daquelas lições que temos de aprender vezes e vezes sem conta. Vi o filme em três alturas diferentes da minha vida: em finais de 2020, quando me cansei de esperar pela estreia; em 2022, quando estreou a dobragem portuguesa nos cinemas; no encontro português do Odaiba Memorial Day (ajudou-me a lidar com algo sobre o qual escrevi aqui).
Dito isto, os eventos no final de Kizuna – nomeadamente o desaparecimento dos companheiros Digimon – contrariam as promessas deixadas pelo epílogo de 02. A ideia que tem passado é de que este epílogo mantém-se válido. Até porque tanto Kizuna como O Início fazem questão de corraborá-lo noutros aspetos, nomeadamente no que toca à carreira dos Escolhidos.
Não sei quantos de nós estavam à espera de ver O Início “corrigindo” o final de Kizuna – ou seja, arranjando maneira de devolver os companheiros Digimon ao elenco de Adventure. Mas se, como eu, se sentaram na sala de cinema com essa expectativa, apanharam um balde de água fria.
Admito que essa desilusão afetou a minha opinião inicial sobre o filme. Ao vê-los pela segunda vez para este texto, mais de um ano mais tarde, já com as expetativas ajustadas, gostei mais. Mesmo assim, mesmo não sendo um mau filme, O Início é… estranho.
Passo a explicar.
Os primeiros minutos do filme – que, por sinal, foram divulgados no verão de 2022, quase dois anos antes da estreia em Portugal – parecem fazer a ponte entre Kizuna e O Início, mas acabam por ter pouco a ver com o resto do filme. Não sei se isso foi deliberado. Começamos, uma vez mais, ao som de Bolero, enquanto somos confrontados com um estranho fenómeno com impacto a nível global. Desta feita, temos a certeza de que envolve Digimon: trata-se de um DigiOvo gigante que aparece em cima da Torre de Tóquio e a mensagem “Que todos tenham amigos, que todos tenham um Digimon” aparece em tudo o que é ecrã por todo o planeta.
Segue-se a abertura ao som de Target, com cenas do dia-a-dia dos Escolhidos de 02, bem como uma ou outra pista sobre uma personagem nova – uma vez mais, semelhante a Kizuna. O tom é semelhante ao filme anterior, sim, mas eis duas diferenças. A primeira: o grupo de 02 consegue integrar os companheiros Digimon nas suas vidas – melhor que os seus homólogos de Adventure, nomeadamente Taichi, Yamato e Sora. A segunda: o grupo de 02 consegue passar tempo uns com os outros. Vemo-los reunidos no restaurante onde Daisuke trabalha, no início do filme.
Adoro o elenco de Adventure, já o deixei bem claro neste blogue, mas tenho de admitir: eles parecem menos unidos que o elenco de 02. Pelo menos não parecem esforçar-se tanto para passarem tempo juntos.
Claro que a questão terá as suas nuances. Pelo menos aquando dos eventos d’O Início, Taichi e Koushiro ocupam cargos importantes no governo. É natural terem menos disponibilidade que estudantes universitários com empregos em part-time (que, mesmo assim, já são vidas bastante ocupadas). Mas, aqui entre nós, parte-me um bocado o coração saber que Taichi nem sequer tem tempo para falar com a irmã ao telefone.
Quando o grupo está, então, reunido no restaurante de Daisuke, falando sobre o misterioso DigiOvo, a televisão mostra um homem trepando a Torre de Tóquio. O grupo corre para o local e, quando o homem – Lui, um jovem de quase vinte anos, com um olho claramente não humano tapado por uma pala, um dispositivo digital ao estilo de Adventure rachado – escorrega e cai, o Stingmon apanha-o. Quando este o leva para junto dos Escolhidos, Lui não lhes agradece por lhe terem salvo a vida. Mostra-se bastante emo e antipático antes de revelar, por fim, que foi a primeira Criança Escolhida e que matou o seu companheiro Digimon. Antes de tecer duras críticas às parcerias entre humanos e Digimon em geral.
Os miúdos de 02, abençoados sejam, não vão à bola com as tretas de Lui, obrigam-no a falar. Ele pensa que o DigiOvo poderá ser o seu antigo companheiro, Ukkomon – Daisuke e Ken oferecem-se para levar Lui até ele. A partir daqui, o filme centra-se largamente no passado trágico de Lui – revelado através de uma viagem no tempo, quando ele, Daisuke e Ken chegam ao Digiovo, e através de flashbacks.
Digimon sempre se caracterizou por personagens humanas vindas de ambientes familiares complicados, mas Lui bate todos os recordes. Agora que a audiência do universo de Adventure é quase universalmente adulta, os guionistas podem dar-se ao luxo de serem mais sombrios.
No dia do seu quarto aniversário, 29 de fevereiro de 1996, Lui vive com um pai em coma, precisando de oxigénio para sobreviver. O que me faz alguma confusão. É seguro manter uma pessoa com este grau de incapacidade em casa? Não devia estar num hospital ou numa clínica? Até porque claramente é demasiado para a esposa, a cuidadora principal, se não for a única, e que ainda tem o filho de quatro anos a seu cargo. O aspeto negligenciado da casa onde a família vive prova que lhe falta tempo, dinheiro, quase tudo.
Disto isto, não tenho compaixão praticamente nenhuma pela mãe de Lui, pela maneira como trata o filho. Quando este se descuida e urina no sofá, como castigo ela coloca-o fora de casa, na neve, de roupa interior – deixando várias nódoas negras à mostra, mesmo para não deixar margem para dúvidas – enquanto lida com os estragos.
A tal viagem no tempo em que Daisuke, Ken e o Lui mais velho embarcaram foi precisamente para este dia. Perante esta cena, Daisuke quer entrar na casa e dizer umas verdades à mãe de Lui, mas os outros chamam-no à razão. Toda a gente sabe que Daisuke é impulsivo, mas eu aqui não o teria impedido de intervir. Talvez até me juntasse a ele e que se lixasse a cronologia. Porque, se há coisa que não tolero, é maus tratos a seres indefesos: crianças, idosos, animais. Estamos a falar de um miúdo de quatro anos!
Nisto, aparece um DigiOvo que choca, dando à luz Ukkomon – um Digimon com a capacidade de realizar desejos. Uma das primeiras coisas que Lui deseja é, naturalmente, alguém que o trate bem. Deseja amigos, diz mesmo que, quando crescer, fará amigos um pouco por todo o mundo. Ukkomon compromete-se a proteger Lui, a ser seu amigo, a arranjar-lhe mais amigos, fazer-lhe as vontades todas. O seu primeiro presente é um dispositivo digital.
A vida de Lui vai de um extremo ao outro quase da noite para o dia. A mãe começa a tratá-lo melhor, o pai recupera milagrosamente do coma. Quando Lui vai para a escola, Ukkomon protege-o dos bullies e ajuda-o a fazer amigos.
No presente, Lui diz que ele foi a primeira Criança Escolhida e que é graças ao desejo dele que existem Crianças Escolhidas sequer, com Digimon criados de propósito para as protegerem. Isto obviamente vai contra o cânone do universo de Adventure… mas acho que existe margem para interpretação.
Apesar de ter desejado amigos, Lui nunca terá chegado a conhecer outra Criança Escolhida. Faz sentido que não tenha a informação toda. Faz sentido que não sabia que existira um primeiro grupo de Crianças Escolhidas, que incluiu Maki Himekawa e Daigo Nishijima. É possível que a Homeostase tenha desistido da ideia de Crianças Escolhidas depois de o primeiro grupo ter falhado na sua missão. Poderá ter mudado de ideias depois do incidente de Hikarigaoka e aproveitou-se do desejo de Lui. Aliás, como o jovem não chegou a conhecer outras Crianças Escolhidas até aos eventos deste filme, cheira-me que o desejo poderá ter sido apenas uma desculpa para a Homeostase executar o seu plano.
No filme, Lui diz que Ukkomon estava ligado a um grande ser, que Hikari associa logo à Homeostase. Acho que é mesmo para não termos dúvidas.
Os miúdos de 02 ficam ofendidos com a ideia de que os laços que formaram com os seus Digimon foram criados por terceiros, nomeadamente um miúdo de quatro anos e o seu Digimon. Por um lado, compreende-se, por outro… é uma surpresa assim tão grande? É assim tão diferente daquilo daquilo que tinha sido estabelecido antes: que a Homeostase e/ou o Mundo Digital estavam por detrás dos vínculos entre humano e Digimon? Está no próprio termo, Crianças Escolhidas – não foram elas a escolher. Oikawa queria desesperadamente ser Escolhido, sendo essa a sua história de origem vilanesca.
Na mesma linha, já tinha sido deixado bem claro no universo de Adventure que os companheiros Digimon são criados para serem compatíveis com os humanos com quem são emparelhados (Meicoomon é a única exceção de que me recordo neste momento). São programadas para terem o instinto de protegerem os parceiros. Eles sabiam disso: Taichi tentou manipular esse instinto para obrigar Greymon a digievoluir. Mais: esse mesmo instinto tanto salvou como condenou Hikari. Primeiro, impediu Tailmon de a matar. Mais tarde, confirmou perante Vamdemon que Hikari era a oitava Criança – quando DemiDevimon magoou a menina e Tailmon reagiu.
É daqueles aspetos que, enquanto crianças, não nos faz confusão mas que, depois de crescermos e de pensarmos um bocadinho, questionamos a ética. Antes deste filme, Adventure nunca tinha abordado os vínculos entre humanos e Digimon sob esta perspectiva, tirando vagas alusões em Tri. Nem mesmo com Ken e Wormon, tanto quanto me recordo – um exemplo óbvio de como estes vínculos podem levar a abusos.
É possível que, dentro do universo, esta seja a primeira vez que os miúdos de 02 estejam a ser confrontados com a componente artificial da relação com os seus Digimon. Naturalmente, o primeiro instinto deles é colocarem-se na defensiva – e não acho que estejam errados. Sim, os Digimon foram personalizados para os respectivos companheiros humanos e sim, foram programados para os protegerem. Mas isso é apenas um fator na união – não deixa de haver conflito, não deixa de ser necessário esforço para a manter, como qualquer outra relação. De novo, Hikari e Tailmon durante o arco do Vamdemon, na Adventure original, são um bom exemplo disso. Bem como Tri, em geral.
Conforme veremos já a seguir, Ukkomon é uma versão extrema do típico companheiro Digimon: extrema devoção ao seu parceiro humano, nenhuma noção do certo ou do errado, nenhuma consideração por si mesmo. Ukkomon faz as vontades todas a Lui, sem pedir nada em troca. Lui, como qualquer criança, não estranha nada disso, não questiona. Não lhe ocorre que Ukkomon poderá ter sentimentos próprios, vontade própria.
Só em 2003 – Lui terá cerca de onze anos – é que o jovem vê o reverso da medalha. Lui acompanha os eventos do filme Diaboromon Contra Ataca pela televisão – ou, quanto muito, vê uma reportagem sobre os mesmos. Ukkomon comenta que os Digimon estão a lutar no lugar dos companheiros humanos, dariam a vida por eles, tudo graças ao desejo de Lui.
O jovem fica horrorizado.
Nesse momento, os pais de Lui perdem os sentidos. Aparentemente não respiram, mas Lui logo os reanima, os tentáculos como cordas de marionetas. É aí que percebemos que os pais de Lui estão mortos, provavelmente há vários anos, provavelmente desde o quarto aniversário do jovem. Ukkomon tem-nos usado como fantoches para manter o seu companheiro humano feliz.
Naturalmente, Lui passa-se. Tenta estrangular Ukkomon – o Digimon nem sequer oferece resistência. Se matá-lo fizer Lui sentir-se melhor, tudo bem. O jovem, então, muda de ideias. Tenta destruir o seu dispositivo digital com um taco, um estilhaço salta e – se bem me recordo, no cinema, nesta cena tapei os olhos – atinge-o no olho. Ukkomon prontamente arranca o seu próprio olho e… bem, “encaixa-o” no rosto de Lui.
A cena explica que O Início tenha sido classificado como um filme para maiores de 12 anos. Mesmo quando Lui grita com Ukkomon, fazendo com que este desapareça, não é algo limpo, com partículas digitais: a carne dele literalmente desfaz-se à frente de Lui, fluidos corporais pingando no chão e salpicando para o rosto do jovem. Já tínhamos tido elementos de terror em Digimon graças a Ghost Game, mas isto é outro nível.
No fim da cena, Lui fica sem Ukkomon, só com os cadáveres dos pais como companhia. Depois disto, Lui passou o resto da infância e adolescência vivendo com familiares (onde andavam esses familiares nos primeiros anos de vida de Lui, quando a mãe dele tinha tantas dificuldades?). No presente, Lui vive sozinho e, ao que parece, não tem ninguém.
Hikari sente compaixão por Ukkomon, percebe que as intenções do Digimon eram puras. Percebo a lógica, mas… que diabo, morreram duas pessoas! (E tenho perguntas em relação aos amigos que Ukkomon lhe arranjou.) É certo que não tenho grande pena da mãe de Lui e que, mal por mal, Ukkomon salvou-o de uma vida de maus tratos e negligência. Não significa que tenha sido correto.
E, de qualquer forma, ponho mais culpas na Homeostase, por ter juntado uma criança humana e um Digimon que não estavam preparados para lidarem um com o outro.
Em todo o caso, não admira que Lui tenha uma visão tão cínica dos vínculos entre humanos e Digimon. Se só conhecesse a relação entre ele e Ukkomon, também eu pensaria assim. Os miúdos de 02 e a própria audiência têm um conhecimento bem mais amplo, sabem que, vá lá, nove em cada dez parcerias são bem mais saudáveis.
Entretanto, soa a meia-noite do dia 29 de fevereiro de 2012, o vigésimo aniversário de Lui. O gigantesco DigiOvo choca, nasce BigUkkomon, surgem inúmeros DigiOvos com o objetivo de realizar o desejo do pequeno Lui: dar um companheiro Digimon a todos os seres humanos.
Curiosamente, os miúdos de 02 reagem mal à possibilidade. À primeira vista parece hipócrita: eles têm mais direito a companheiros Digimon que o resto da Humanidade? Por outro lado, consta que o número de Escolhidos tem duplicado todos os anos. Aquando dos eventos deste filme, vai em sessenta mil. É um crescimento rápido, mas dá para gerir. Dará tempo aos recém-Escolhidos e às pessoas em redor de se adaptarem aos companheiros Digimon. E não esquecer que, partindo do princípio que as regras de Kizuna continuam válidas, as parcerias têm prazo de validade.
Em contrapartida, tomando em conta as intenções de Ukkomon, estamos a falar de milhares de milhões de Digimon nascendo ao mesmo tempo no Mundo dos Humanos. Claro que não ia correr bem.
Durante o debate do elenco sobre o que fazer, Takeru lembra que, se fora de facto Ukkomon a criar as parcerias entre humanos e Digimon, derrotarem-no poderia comprometê-las. Ninguém se surpreende que tenha sido Takeru a referir a possibilidade – ele que nunca recuperou por completo da perda do Angemon em Adventure. Não me admiraria se o jovem tivesse passado o último par de anos em angústia, depois de ter visto o irmão perdendo Gabumon, temendo que um dia chegasse a sua vez. E Takeru nem sequer está a pensar apenas em si mesmo neste momento – invoca também os outros sessenta mil Escolhidos. Não é justo meia dúzia de pessoas decidirem por dezenas de milhares.
Hikari argumenta que não podem colocar os seus próprios desejos acima do bem-estar do resto do mundo. As pessoas têm traçado paralelismos entre este debate e o que os respectivos onii-chans tiveram em Kizuna – quando decidiram arriscar o curto tempo de vida dos seus Digimon para salvarem os amigos da Terra do Nunca. Também aqui a família Yagami defende colocarem o coletivo acima do individual – ainda que Hikari o faça com mais idealismo e menos desespero. A jovem acredita que o seu vínculo com Tailmon é suficientemente forte, mais forte que uma suposta programação por forças externas. Será capaz de sobreviver a um confronto com o BigUkkomon.
Também ajuda o facto de existir uma terceira opção de que Taichi e Yamato não dispunham. Ken deduz que talvez Ukkomon não queria lutar – a viagem no tempo poderá ter sido uma tentativa de comunicar com Lui. Assim, acabam por tentar a via diplomática, deixar o último falar com Ukkomon – com a vantagem adicional de preservarem as parcerias entre humanos e Digimon. Claro que, se necessário, partirão para a luta.
Depois desta, O Início tem a oportunidade de exibir o seu orçamento – animação lindíssima nas cenas de combate entre os Digimon e os tentáculos do BigUkkomon e nas sequências de digievolução. À semelhança do que Kizuna fez com as últimas, não se puseram a inventar, limitaram-se a recriar as sequências da 02 original com uma animação moderna.
No entanto, é aqui que eu mais lamento a inexistência de uma dobragem em português de Portugal. Mais do que com qualquer outra temporada de Digimon, inclusive a Adventure original, estou afeiçoada à versão portuguesa das digievoluções. Não consigo ouvir Beat It! sem ouvir “X-Veemon… Stingmon… Digievolução ADN para… Paildramon!”. As legendas em português nem sequer usaram os termos corretos.
Além disso, não sei se alguma vez cheguei a referi-lo aqui no blogue mas, mesmo com as suas imperfeições, regra geral, prefiro as vozes portuguesas para Digimon como o Paildramon. Nas versões nipónicas, as vozes são, na minha opinião, demasiado jovens, demasiado adolescentes. Em português, deram-lhe vozes de homens adultos – a meu ver, mais poderosas e adequadas.
Se tivesse o software certo, faria uma montagem com o áudio da dobragem portuguesa de 02 e as sequências modernizadas d’O Início.
Os Escolhidos conseguem levar Lui até ao BigUkkomon. Este torna a comunicar via regresso ao passado – ao mesmo dia. Desta feita, o Lui adulto aborda a sua própria mãe (sem se identificar). Essencialmente, pede-lhe que seja mais atenta e compreensiva para com o filho, pois este ama-a. Nesta versão dos acontecimentos – que eu assumo que seja idealizada por Lui e/ou Ukkomon – este curto diálogo é suficiente para a mãe começar a tratá-lo melhor.
Na realidade – mesmo dentro do universo – a situação não se resolveria assim tão facilmente. Não reduziria os fardos que a mãe de Lui tem de carregar sozinha, não lhe daria magicamente uma maneira mais saudável de lidar com o cansaço e a frustração.
Mas compreende-se. Lui pode ser adulto mas ainda é muito novo. Pode ainda não entender a complexidade da situação – é natural que tenha ainda esta fantasia. Deem-lhe uns anos.
A cena avança uma hora ou duas, com o Lui de quatro anos já em casa com a mãe – desta feita numa cena bem mais harmoniosa. Ukkomon aparece perante o Lui adulto, disposto a conversar abertamente. Ukkomon admite que pensava que coisas que faziam Lui feliz em criança eram sinónimo de coisas corretas. Por sua vez, Lui admite que a relação entre ambos sempre foi unilateral, que no fundo não sabe nada sobre o seu companheiro Digimon. Ukkomon sempre dando, Lui sempre recebendo.
Não que se possa censurar o jovem por tal: ele tinha quatro anos, era uma criança pequena, maltratada, carente de quase tudo. Mesmo em circunstâncias menos extremas, quantos anos é que demora uma criança a aprender que os pais e outras pessoas da sua vida são seres com desejos e necessidades próprias? Sobretudo se esses seres lhes dão tudo sem nunca pedir nada em troca, sem nunca dizer “não”.
Ambos acabam por decidir começar do zero e fazerem um esforço por comunicarem melhor desta vez. Lui faz questão de dizer que, apesar de fazer anos, não quer presentes, não deseja nada. Para que isso seja possível, no entanto, Lui precisa de regressar a 2012 e derrotar o Big Ukkomon – claro que precisa, o filme tem de ter um clímax. Ao menos a animação é bonita, como referi acima.
O BigUkkomon é, assim, derrotado e desintegra-se, tal como os inúmeros DigiOvos. Por seu lado, Lui recebe um DigiOvo de onde, podemos assumir, nascerá Ukkomon. Ao mesmo tempo, os dispositivos digitais de todos os Escolhidos por todo o Mundo desfazem-se em partículas luminosas – mas os Digimon não desaparecem.
Aliás, não sabemos as consequências do fenómeno: se os Digimon serão capazes de digievoluir, se deixam de estar programados para proteger os seus companheiros humanos, mesmo contra vontade. Se isto permitirá ao elenco de Adventure recuperar os seus Digimon ou se, depois desta, eles estão perdidos para sempre.
Sejamos sinceros: se eles continuarem a fazer filmes para este universo, é possível que se esqueçam convenientemente deste desenvolvimento. Dito isto, no que toca a este filme e só a este filme, creio que o objetivo era provar que os vínculos entre humanos e Digimon não dependiam, nem nunca dependeram, dos dispositivos digitais, de forças externas. Não a longo prazo, pelo menos.
O Início termina com o elenco envolvido numa batalha de bolas de neve. Sinceramente, é um bom final, é um final descontraído, bem-vindo no final de um filme que teve momentos pesados. Há uma cena pós-créditos que mostra os instantes finais antes de Ukkomon renascer.
E é isto O Início. Quando vi o filme pela primeira vez, estava demasiado irritada por este não ter “corrigido” o final de Kizuna para lhe dar mérito. Agora que já se passou mais de um ano e tive oportunidade de revê-lo, no seu todo ou em partes, de analisá-lo, não detesto O Início. Até gosto.
Uma das minhas críticas iniciais era de que o filme não se encaixa muito bem em Adventure. Hoje concordo apenas em parte. Sim, por vezes parece que estamos a ver um episódio de Ghost Game – e nem sequer me refiro apenas aos elementos de terror. O episódio 50, por exemplo, também se foca numa relação pouco saudável entre um humano e um Digimon – fica bem claro que cada uma das duas espécies pensam de maneira diferente.
Por outro lado, O Início explora um dos aspetos centrais do universo de Adventure: a natureza das parcerias entre os Escolhidos e os seus Digimon. Como referi acima, sempre houve um certo grau de imposição, nunca foi algo em que os participantes embarcaram de vontade cem por cento livre. Faz sentido que os guionistas tenham querido explorar um dos lados mais sombrios desse tipo de vínculos – e, ao mesmo tempo, provar que não é só a Homeostase que mantém os Digimon ao lado dos Escolhidos. E Lui é uma personagem bem construída.
Dito isto, temos de falar sobre o que correu menos bem. Para começar, a história é demasiado simplista para um filme de Digimon. Eles esticaram o que podiam esticar, embelezaram o que podiam embelezar – viagens no tempo, cenas de combate vistosas. Mas, se olharmos para o esqueleto da coisa, o enredo é apenas: DigiOvo aparece, Lui aparece, longa backstory de Lui, nasce BugUkkomon, Lui vai falar com ele, fazem as pazes, derrotam-no, fim. Mudando um pozinho ou outro, podia, lá está, ser um episódio de Ghost Game. Daí achar o filme esquisito.
No entanto, a maior crítica a O Início é outra: os miúdos de 02, supostos protagonistas do filme, não fazem quase nada, mal contribuem para o enredo.
Não é a primeira vez que as sequelas de Adventure e 02 trazem personagens de fora. Meiko teve muito tempo de antena em Tri, o que irritou muitos fãs, mas ao menos o velho elenco foi sendo desenvolvido em paralelo com ela, ainda que em graus diferentes. Não deixa de ser a história dos oito de Adventure. Em Kizuna, Menoa foi a antagonista – a história não é dela, é de Taichi e de Yamato.
N’O Início, em contrapartida, os miúdos de 02 são secundários naquele que devia ser o filme deles. A história é de Lui. Durante uma boa parte do filme, os miúdos de 02 são quase avatares da audiência: estão lá para ouvir sobre o passado de Lui, deixam opiniões, dão conselhos. No último terço do filme, fazem de guarda-costas/motoristas para que Lui chegue a Ukkomon. No lugar deles podia estar o elenco de Adventure ou de Tamers (ainda que fosse mais difícil juntá-los no mesmo lugar) e o enredo seria praticamente o mesmo.
Ainda assim, mesmo que o elenco de 02 não influencie o enredo, definitivamente influenciam… à falta de melhor palavra, o sabor do filme. Mesmo que não tenha havido desenvolvimento, pudemos ver os miúdos de 02 sendo eles mesmos. Daisuke e Miyako implicando um com o outro, a calma e sensatez de Ken contrastando com a exuberância de Daisuke. Takeru e Hikari sendo unha com carne, como sempre. Iori é que aparece pouco – mas também ele sempre foi um dos mais discretos.
E, à boa maneira das várias sequelas de Adventure e 02, há alimento para shipping: Miyako e Ken, um casal confirmado no epílogo de 02, mostrando alguma proximidade. Ao mesmo tempo, a certa altura, Miyako mete-se com Daisuke e Ken, acusando-os de estarem a “namoriscar”.
Consta que os próprios guionistas argumentaram que o grupo de 02 é demasiado harmonioso, demasiado bem com a vida, livre de conflito. Não será possível escrever histórias interessantes protagonizadas só por eles. Admito que possa ser verdade até certo ponto… mas cheira-me a desculpa esfarrapada.
Eles não percebem que o povo está aqui para ver o elenco com quem cresceu? O de Adventure será mais popular mas, depois de Tri os ter negligenciado, todos concordam que 02 merece mais amor. Ainda há pouco tempo, graças às funcionalidades de memórias das redes sociais, recordei-me de encontros anteriores do Odaiba Memorial Day. Nós quase literalmente fizemos uma festa no de 2019 só porque tinham anunciado nesse dia que os miúdos de 02 iam entrar em Kizuna!
Não sou contra arranjarem personagens humanas novas. Mas o mínimo que os guionistas deviam fazer com os velhos Escolhidos é deixá-los ser parte ativa das suas próprias histórias.
Por fim, ainda que isso não seja cem por cento culpa d'O Início, as pontas de Kizuna continuam por atar. Continuamos sem saber como é que os Escolhidos mais velhos recuperarão os Digimon. Ou como é que todos os seres humanos ganharão um companheiro Digimon. Pergunto-me se os guionistas, ou a Toei, ou quem quer que esteja a tomar estas decisões, se preocupa sequer em manter o cânone intacto.
O que me leva a Digimon Adventure Beyond. Eu sei que isto não tem diretamente a ver com O Início, mas também é o universo de Adventure, merece uma palavrinha. Estreado em março deste ano, é essencialmente um AMV ao som de uma versão muito gira de Brave Heart. Mostra os Escolhidos em adultos, com os seus companheiros Digimon.
Na altura em que o vídeo saiu, muito boa gente nas internetes virou-se do avesso para tentar perceber se e como Beyond se encaixa no cânone oficial. Segundo o que pesquisei na preparação deste texto, parece que a teoria aceite é de que estas são cenas soltas de diferentes alturas da cronologia entre Tri e, vá lá, algum tempo depois d'O Início.
Para ser sincera, não me preocupo muito. Vale pelas vibes.
E, de qualquer forma, o vídeo está muito giro. Animação excelente e, claro, é sempre um prazer ver este elenco. As minhas partes preferidas são as com uma Sora de novo maria-rapaz. Aliás, nunca o estilo dela foi tão parecido com o meu: veja-se o boné, as calças de ganga, a camisola atada à cintura.
Por outro lado, chega a ser cruel. O vídeo podia ser o trailer de um novo filme, mesmo de uma nova temporada. Tanto potencial nas cenas que mostraram…
Uma parte de mim deseja que eles parem de ordenhar sempre da mesma vaca – que deixem Adventure tal como está e que explorem outras coisas. Outra parte de mim, no entanto, nunca se fartará e quer muito – mesmo muito – ver os Escolhidos mais velhos recuperando os seus Digimon. E no fim de contas já não falta muito tempo para 2027, o ano em que decorre o epílogo de 02. É possível que o assinalem de alguma forma.
A curto prazo, vão estrear uma temporada nova, inédita: Digimon Beatbreak. Não sei se vou acompanhá-la. O reboot de Adventure e Ghost Game tiveram os seus momentos, a segunda tinha um conceito interessante, conforme expliquei noutra ocasião. No entanto, ambas se tornaram um frete ao fim de algum tempo – de tal forma que não deverei escrever sobre elas aqui no blogue. Receio que o mesmo aconteça a Beatbreak.
Dito isto, eles deram mais detalhes sobre a temporada no início do mês, a propósito do Odaiba Memorial Day. Houve um pormenor que me chamou a atenção: as idades do elenco principal. Temos um rapaz e uma rapariga de dezasseis anos, um rapaz de dez e… um jovem de vinte e dois anos. Tanto quanto sei, tal amplitude de idades não é habitual. Isso dá-me alguma curiosidade.
Acho que vou esperar que saiam os primeiros episódios e ver o que as pessoas dizem sobre eles. Depois decido com base nisso.
Entretanto, talvez veja Savers pela primeira vez no próximo ano, com o intuito de, mais tarde, escrever sobre essa temporada. Iria coincidir com o seu vigésimo aniversário.
Talvez. Não vou prometer nada, que anda tudo muito imprevisível.
Em todo o caso, soube bem escrever este texto. É sempre um gosto escrever sobre Digimon, sobretudo durante o verão. Ainda por cima, fez agora uma década desde o meu primeiro texto sobre a franquia. Não tenciono ficar por aqui.
Falando de um futuro mais imediato, os próximos textos do blogue serão sobre música. Conforme já referi no texto anterior, o primeiro será sobre From Zero, dos Linkin Park; o seguinte será sobre Virgin, de Lorde. Depois disso, escreverei sobre música a solo de Hayley Williams. No início deste mês, a vocalista dos Paramore lançou dezassete singles soltos, de surpresa. Entretanto, já confirmou que vai lançá-los sob o formato de um álbum intitulado Ego Death at a Bachelorette Party (ou pura e simplesmente Ego, como nós, os fãs, temos vindo a chamar).
Esse será, então, a terceira análise. E, à boa maneira do universo Paramore, vai ser… interessante.
Como sempre, obrigada pela vossa visita. Até à próxima!
Terceira e última parte da análise à terceira temporada de Ted Lasso. Podem ler as partes anteriores aqui e aqui. Spoilerspara toda a série de Ted Lasso.
Temos, agora, de falar sobre outra das desilusões da temporada: Nate. Não que ache que não tenha havido nada que se aproveitasse da história dele mas, mesmo assim, as expectativas eram altas e, infelizmente, os guionistas não cumpriram.
Da maneira como vejo, sempre existiram dois Nates. Já que Ted Lasso gosta de fazer paralelismos nada subtis com Star Wars, peguemos no tema e chamemos-lhe o lado bom/luminoso e o lado negro. O lado bom é o lado mais genuíno, mais vulnerável, mais gentil, mas que Nate considera uma fraqueza. O lado negro é o lado mais cruel e arrogante.
A terceira temporada de Ted Lasso dá a entender que esta faceta terá sido provocada pela relação difícil de Nate com o pai. É possível que sim: Nate terá encontrado em Ted uma figura paterna e, quando se sentiu abandonado por ele, Nate trocou-o por Rupert.
Não acho, no entanto, que tenha sido só esse o problema. Acredito que Nate tenha sido influenciado pelo bullying que sofreu ao longo dos anos. Bullying esse que veio, em parte, de futebolistas, pessoas com estatuto que provavelmente Nate cresceu idolatrando. Daí ter internalizado que o lado negro – o lado mesquinho, o lado misógino, a masculinidade tóxica – era o lado desejável.
E esse lado esteve lá desde o início: veja-se a primeira reação dele a Ted e Beard, no piloto. Quando essas personagens, bem como Rebecca ou Keeley,. procuraram encorajá-lo, Nate deixa sair o lado errado, confunde agressividade com assertividade. Daí, por exemplo, na primeira temporada, apimentar os seus conselhos para os jogadores com insultos. E as ocasiões em que cospe no seu próprio reflexo.
A questão é precisamente essa. Pelo lado da luz, é-se gentil para toda a gente, começando-se por si mesmo. E pelo lado negro é-se cruel para toda a gente, começando-se por si mesmo.
À semelhança de muitos, não adorei Jade quando apareceu pela primeira vez, na segunda temporada. Mesmo agora, após a terceira temporada, apesar de não a detestar, sabemos muito pouco sobre ela. Mas, justiça seja feita, Jade nunca foi à bola com o lado negro de Nate. Só começou a interessar-se por ele quando viu o seu lado genuíno. Mais especificamente, quando o ouviu tentando explicar o motivo pelo qual escolhera aquele restaurante em específico à companhia que Rupert lhe arranjara.
É por isso que até gostei desta linha narrativa. A relação de Nate com Jade serviu de reforço positivo ao lado da luz. Conforme comentaram aqui, é difícil explicar a quem não veja Ted Lasso o quão emocionante é ver um homem olhando-se ao espelho e não cuspindo no próprio reflexo.
Dito isto, gostava de ter visto esta jornada de (mais ou menos) redenção de Nate como treinador do West Ham. Gostava de ter visto Nate como treinador do West Ham, ponto – quase não vimos – e acho que teria sido possível fazê-lo sem roubar tempo de antena à vida amorosa dele. As duas linhas narrativas podiam ter decorrido em paralelo, influenciando-se uma à outra.
Porque eu acredito que a redenção (mais ou menos) de Nate também se refletiu no seu trabalho no West Ham. No início da temporada, vemo-lo sendo uma besta para com os seus jogadores, bem como para os colegas do clube. Ainda assim, o West Ham sai-se bem no campeonato, rivalizando com o Richmond – ou seja, alguma coisa Nate estaria a fazer bem. Em episódios posteriores, vemo-lo tendo uma relação cordial, mesmo amigável com os colegas da equipa técnica. Podemos assumir que terá desenvolvido uma relação semelhante com os jogadores do West Ham.
Uma das grandes falhas da temporada.
Em contraste com Jade, Rupert é uma clara força negativa na vida de Nate. Aqui sim, vemos uma representação razoável de love bombing, de alternância entre distância e proximidade, como forma de mantê-lo sob controlo, de isolá-lo dos demais – tal como já tinha feito com Rebecca na verdade. Mais: Rupert atua como o diabo no ombro de Nate, estimula o seu lado negro.
Veja-se, por exemplo, o quarto episódio. Nate faz múltiplas tentativas de falar com Ted – e cada uma delas é bloqueada por Rupert, de uma forma ou de outra. Vários episódios mais tarde, quando Nate está já numa relação com Jade, alguém que estimula o seu lado gentil e que não vai na conversa de Rupert, este último tenta levar Nate a traí-la. Ao que parece, este último evento é o que faz com que Nate finalmente perceba quem Rupert realmente é, pois quando voltamos a vê-lo já tinha apresentado a demissão como técnico do West Ham.
Esta será talvez a decisão mais incompreensível em toda a terceira temporada, talvez mesmo em toda a série: não mostrarem a demissão de Nate.
Estivemos a temporada toda… Não, ainda mais. Desde o final da segunda temporada que esperávamos o momento em que Nate se aperceberia do erro que cometeu e faria frente a Rupert. Não sabemos se Nate foi sincero com Rupert ou se inventou alguma desculpa para sair. Perdeu-se uma oportunidade para desenvolver tanto Rupert como Nate.
Depois desta, o Wonder Kid passa algumas noites na casa dos pais. Chega a ter uma inveja aberta com o pai, censurando-o por sempre ter exigido demasiado dele.
É um momento importante, não me interpretem mal. Resolve uma bia parte das inseguranças de Nate. Mas para mim não é suficiente pois, como expliquei antes, os chamados “daddy issues” não explicam tudo.
Em todo o caso, resolvidas as coisas com o seu pai, Nate enfia-se à socapa no Richmond, faz o trabalho de Will e deixa um bilhete pedindo perdão – assinando como Wonder Kid.
Ainda assim, Nate não regressa logo ao Richmond. Opta antes por trabalhar no mesmo restaurante que Jade. Seria de esperar que, depois de ter tido um bom desempenho ao comando do West Ham, houvessem clubes interessados em contratar Nate. É possível que ele tenha recebido propostas e que as tenha recusado – mantendo-se afastado do futebol para se castigar a si mesmo.
É uma pena a série não o ter abordado.
No início do penúltimo episódio da temporada, Will, Isaac e Colin aparecem no restaurante e pedem a Nate que regresse ao Richmond – um desejo unânime de todo o plantel.
Uma vez mais, os guionistas fizeram batota. Na última vez que Nate e a equipa do Richmond estiveram no mesmo contexto, Roy e Beard tinham exibido imagens de Nate rasgando o cartaz com “Believe” – um talismã para a equipa, já um símbolo do clube – como forma de motivar a equipa. Saiu-lhes o tiro pela culatra: os jogadores reagiram como touros enraivecidos e recriaram a Batalha de Nuremberga do Mundial 2006. Para ir disto a um desejo unânime de que Nate regresse são precisos vários passos que a série não mostrou.
E devia ter mostrado. Nem era preciso muito. Bastava vermos a conversa do plantel que resultou na decisão. Seria uma oportunidade de ouro para desenvolver a equipa em geral e os jogadores em particular. Sam obrigando Colin e Isaac a admitir que maltrataram Nate no passado – e que isso terá contribuído para a deserção. Jamie fazendo também o seu mea culpa: também ele, a certa altura, se voltou contra o Richmond, mas teve direito a uma segunda oportunidade.
Aliás, nesta parte da história, o problema não é Nate. Na minha opinião, este age com a contrição adequada. O resto do elenco é que o perdoa com demasiada facilidade.
Uma vez mais, da última vez que o assunto “Nate” viera à baila (tirando quando Nate e Beard levaram Henry a um jogo do West Ham), andava toda a gente em cima de Ted por este estar em negação no que toca ao que acontecera com Nate. Ted dizia que não estava magoado e ninguém acreditava nele – nem sequer Roy, de todas as pessoas.
Ted nunca chega a refletir sobre os danos que Nate lhe provocou, nem chega a falar com ninguém sobre o assunto. Se isso aconteceu, não o mostraram. Logo, não faz sentido que toda a gente esteja a favor do regresso de Nate, quando a hipótese é levantada. Roy diz mesmo “I don’t give a fuck”, o que, na minha opinião, soou mais desprendido do que, se calhar, os guionistas queriam.
Beard é o único a objetar – e na minha opinião o momento é mais cómico que dramático. Em compensação, mais tarde ele mesmo vai ter com Nate e oferece-lhe o emprego de volta. É outro ponto alto da temporada. Descobrimos finalmente o passado de Beard, que entre outras coisas também ele traiu a confiança de Ted no passado – e, na minha opinião, o que Beard fez foi pior.
Aliás, é um bocadinho caricata a forma como Beard tem um passado tão retorcido e esta foi a primeira e a única vez que ouvimos falar dele. De qualquer forma, sim, se Beard teve direito a uma segunda oportunidade, Nate também tem.
Ainda assim, ficou a faltar uma conversa aberta entre Ted e Nate, uma conversa de “thank you/fuck you” semelhante àquela que teria com a mãe. Sim, Nate pede desculpas a Ted, mas sabe a pouco. Outro aspeto que me incomodou foi a maneira como todos os crimes de Nate foram aglomerados num conjunto vago ou mesmo esquecidos. Nate foi uma besta para com Will, para com Colin, beijou Keeley sem o seu consentimento, deu com a língua nos dentes em relação aos ataques de pânico de Ted. Ainda agora, na preparação para este texto, revi a conversa entre os dois no último episódio da temporada e fiquei chocada – não me recordava de tanta crueldade.
E no entanto a terceira temporada age como se o maior crime de Nate tenha sido rasgar um cartaz.
Adicionalmente, Nate nem sequer volta a falar de Rupert nem do tempo que passou a orientar o West Ham. O último jogo da temporada é precisamente perante eles. Ted Lasso tenta pintá-lo como o grande clímax da temporada, talvez mesmo de toda a série, mas não funciona. Nesta fase, os arcos narrativos de quase todo o elenco já tinham sido resolvidos – nomeadamente os de Rebecca e de Nate, as personagens mais antagonizadas por Rupert. Até trazem de volta George Cartrick, o antecessor de Ted no comando do Richmond, agora substituto de Nate. Calculo que a intenção da série era que o víssemos como um némesis de Ted e/ou do Richmond em geral. Concordo que Cartrick é a antítese de Ted em quase todos os aspetos. No entanto, na minha opinião, nunca foi um antagonista, apenas uma personagem secundária irritante.
Em suma, o último jogo da temporada não tem tensão praticamente nenhuma.
E o jogo em si foi muito mais ou menos. A cena do penálti que passa pela rede furada foi um bocado parva – daquelas coisas que, se acontecesse na vida real, sobretudo no futebol português, toda a gente se atiraria ao ar. Por outro lado, o golo da vitória, com alusões à primeira temporada, foi bem sacado.
A certa altura Rupert desce ao banco do West Ham e ordena a Cartrick que diga aos jogadores para lesionar Jamie – ele que estava a ser o mais perigoso do Richmond. Quando Cartrick recusa, Rupert agride-o – deixando bem claro para toda a gente que perdeu a cabeça há muito. O público até se vira contra ele, recuperando o “Wanker!” que antes dirigia a Ted.
Não gostei muito da cena. Para começar, foram longe demais com Rupert, transformando-o num vilão de desenhos animados – não ao nível de Afuko, mas não assim tão longe. Depois, não dá para perceber se a narrativa quer que simpatizemos ou não com Cartrick. Por um lado, fica com os genitais à mostra perante as câmaras depois de ser empurrado por Rupert. Por outro, por muitos defeitos que tenha, não desce ao ponto de intencionalmente lesionar um adversário.
A cena teria tido outro impacto se nesta altura, Nate ainda estivesse a orientar o West Ham. Podia já ter feito as pazes com os antigos colegas do Richmond, podia estar já de pés atrás em relação a Rupert, mas cumpriria o seu contrato no West Ham. Assumindo que, como disse acima, nesta altura já teria uma relação amigável com os colegas, talvez Nate continuasse por lealdade para com eles. O jogo sujo de Rupert e a agressão seriam a gota de água para Nate – sobretudo quando os jogadores e restante equipa técnica do West Ham se voltassem contra Rupert, à semelhança do público.
Esta seria a minha versão da história, se fizesse parte da equipa de guionistas. Vale o que vale.
É dado a entender que Nate regressa à equipa técnica do Richmond no final da série. Roy, no entanto, toma o lugar de treinador principal. Alguns se calhar esperavam que fosse Nate a suceder a Ted. Eu aceito este desfecho – é possível que Nate ainda não se considere merecedor do lugar. Mas ele tem talento para ser mais do que adjunto de Roy. A longo prazo, não me custa imaginá-lo de novo orientando um clube. Se não o Richmond, outro qualquer após uma rescisão amigável.
Em todo o caso, penso que todos concordamos que a redenção de Nate deixou muito a desejar. Perderam-se várias boas oportunidades aqui.
Falta só falar sobre o nosso protagonista: Ted.
Num dos vídeos que o canal de YouTube Cinema Therapy fez sobre Ted Lasso, Jon e Alan comentaram que a terceira temporada parece tão errática porque o próprio protagonista está a passar por uma fase mais deambulante da sua vida. A temporada começa com Ted vendo Henry, o seu filho, embarcando de volta a casa, no Kansas, depois de ter passado o verão em Londres, com o pai.
Nesse mesmo episódio, Ted interroga-se algumas vezes sobre o que ainda está a fazer em Londres. Viera para o Richmond para tentar salvar o seu casamento – casamento esse que estava morto e enterrado. Agora Henry estava a crescer a um oceano de distância dele.
Na minha opinião, perderam-se mais oportunidades aqui. Por exemplo, para fazer a ponte com a última conversa com Nate. Ted duvidando de si mesmo, das suas capacidades como treinador – talvez uma das motivações para a contratação de Zava, como referido antes. Ou então, colocando em prática a lição que passara aos jogadores nesse mesmo episódio, de ignorar insultos dos demais.
Temos agora de falar sobre uma das piores partes da temporada: a linha narrativa de Ted com Michelle e o seu novo parceiro, Jake. Na primeira temporada, um dos pontos altos foi a maneira como o divórcio de Ted e Michelle foi abordado. Uma separação civilizada, sem diabolizar nenhuma das partes, mesmo que o rescaldo tenha sido doloroso – sabemos que o foi para Ted, é possível que também o tenha sido para Michelle.
Pois bem, estragaram tudo.
Na altura em que a terceira temporada estava a ser exibida, li um artigo ou outro sobre Jason Sudeikis (o ator que dá a vida a Ted e que é um dos principais guionistas) e a sua turbulenta separação da atriz Olivia Wilde. Estes artigos alegavam que o divórcio dele se estava a refletir nesta linha narrativa. Não concordo com tudo o que escreveram, sobretudo aqui. No entanto, pela maneira como o protagonista de Ted Lasso ocupa uma larga fatia do tempo de antena com um casamento terminado cerca de dois anos antes e pelas coisas de que falaremos a seguir, pergunto-me se não haverá alguma verdade nas acusações.
No terceiro episódio descobrimos, então, que Michelle está a namorar o antigo terapeuta de casais dela e de Ted e… meu Deus!
Parece que os guionistas pesquisaram e, tecnicamente, como já teria passado um ano e meio, dois anos, desde o fim das consultas, não estavam a cometer nenhuma ilegalidade. Mesmo assim… isto é super retorcido. Uma pessoa olha para trás – para quando Ted se sentiu atacado na terapia de casais, para a decisão de “dar espaço” a Michelle – e é legítimo pensar se Jake não sabotou intencionalmente o casamento dos seus clientes enquanto exercia a sua profissão.
Esta linha narrativa tem uma consequência boa que é fazer Ted admitir abertamente a Michelle que não está contente com a situação, o que é um passo importante para ele. E nem é por Michelle namorar o antigo terapeuta: é por ter inserido um homem na vida de Henry sem falar primeiro com Ted. Legítimo.
Por outro lado, tivemos um episódio em que Ted vai muito além do aceitável: quando Michelle e Jack vão de viagem a Paris e Ted fica obcecado com a possibilidade de ficarem noivos. Chega a colocar a hipótese de contratar um investigador privado para descobrir. Felizmente Rebecca chama-o à razão, mas Ted não deixa de ficar muito mal na fotografia aqui.
Saltando para o último episódio da temporada, vemos Michelle sem grande paciência para Jake. No fim, Ted regressa ao Kansas, para a casa dele – não se vê Jake em lado nenhum. Não é claro se Ted e Michelle pretendem reatar ou se o primeiro vai apenas ficar com ela e Henry até arranjar casa própria. Eu preferia a segunda hipótese.
Voltando atrás e deixando a vida pessoal de Ted de lado para já, uma coisa boa desta temporada foi finalmente ver o nosso protagonista mais envolvido na parte técnica do seu trabalho.
Já não é a primeira vez que o escrevo: durante duas temporadas e meia Ted funcionou mais como um mental coach do que como um treinador principal. Um papel importante, sim, mas não o suficiente. Nate, Roy, mesmo Beard iam fazendo a maior parte do trabalho técnico. Ted deve-lhes muito do seu sucesso. E apesar de o nosso protagonista lhes dar o devido mérito, sempre achei que era uma dinâmica… questionável. Sobretudo sabendo o que sei do futebol na vida real. Sempre achei que foi um dos motivos para a deserção de Nate.
No episódio de Amesterdão, no entanto, Ted tem uma epifania inspirada por uma transmissão de um jogo antigo de basquetebol dos Chicago Bulls. Toma o seu próprio caminho para chegar ao Futebol Total, ao tiki taka. Uma filosofia futebolística que, como o próprio texto assinala, é um reflexo da cultura que Ted implementou no Richmond – e, acrescento eu, é o oposto do Zava-mais-dez dos primeiros episódios da temporada.
E, após um começo em falso, a filosofia dá resultados. Adiantando-me de novo, o Richmond termina o campeonato em segundo lugar. Teria sido mais bonito, mais épico, se o Richmond tivesse ganho o título, admito, mas talvez fosse um bocadinho para lá do realista.
Terminar em segundo na Premier League não deixa de ser um grande feito para uma equipa como o Richmond: modesta, vinda da segunda divisão, que, mesmo nos seus melhores momentos, andara apenas pela metade inferior da tabela classificativa. Isto para não falar do seu treinador principal que, dois anos antes, não conhecia as regras mais básicas do desporto.
Com o segundo lugar, o Richmond ganha acesso aos milhões da Champions League. Se conseguirem arranjar bons reforços, segurar jogadores como Jamie ou Sam, bem como a equipa técnica atual, o Richmond tem todas as possibilidades de continuar a lutar pelo título nas épocas seguintes e, eventualmente, ganhá-lo.
Ainda assim, o sucesso do Richmond não é suficiente para contrariar a infelicidade de Ted na sua vida pessoal.
No penúltimo episódio da temporada, Ted recebe a visita inesperada da mãe. Vemos logo que o nosso protagonista tem muitas semelhanças com ela – uma pessoa calorosa, que cuida de toda a gente, que usa a sua atitude positiva como um mecanismo de defesa. Ainda mais do que Ted.
Já escrevi aqui no blogue sobre o “thank you/fuck you”, sobre o “both/and”, noutros contextos mas inspirada precisamente pela conversa que Ted tem com a mãe no final do episódio. O mesmo que se foca na relação de Jamie com o seu pai. James Tartt foi uma besta para com o filho mas Dottie, na minha opinião, é muito mais parecida com a maior parte dos pais na vida real. Fez o melhor que pôde pelo filho, mas é humana, a vida é difícil, cometer erros como todos os pais cometem. E não esquecer que o fez enquanto lidava com uma situação impossível: a morte do marido por suicídio.
O que não muda o efeito que tais erros tiveram no filho.
Em defesa de Dottie, esta aceita as críticas como uma mulher adulta, sem se colocar na defensiva, sem criticar de volta. Melhor do que muitos pais, mesmo dos bons. E a conversa serve para Ted tomar a decisão que queria tomar toda a temporada: regressar ao Kansas, para junto de Henry, no fim da época.
Não vou fingir que isto foi uma surpresa. Pelo contrário, sempre soube que a série terminaria assim: o Manic Pixie Dream Coach retirando-se depois de ver o seu trabalho concluído. Deu para ver ao longo desta temporada que o Richmond tem uma atmosfera completamente diferente da que tinha no início da série – e existem ocasiões em que Ted nem sequer precisa de intervir.
Um dos exemplos ocorre logo no primeiro episódio: os jogadores indignando-se com os insultos de Nate numa conferência de imprensa, Beard impedindo Ted de se meter ao barulho, indicando Jamie que repete a lição que o próprio Ted ensinara antes. Outros casos foram quando a equipa tem a iniciativa de ir arranjar o restaurante de Sam e, mais tarde, de convidar Nate a regressar ao Richmond (mesmo com todos os asteriscos que assinalei acima).
É por isso que concordo com o título do livro de Trent Crint: “The Richmond Way” em vez de “The Lasso Way”. Porque nesta altura já não é só Ted, o espírito estendeu-se ao clube inteiro.
Além disso, ficou claro ao longo de toda a temporada que Ted nunca seria feliz com o filho crescendo noutro continente.
Dito isto tudo… tirando Henry, Dottie ou, quanto muito, Michelle (mesmo não reatando, acredito que se mantenham amigos), para que é que Ted vai voltar no Kansas? Para quem? A família que ele arranjou ficou toda em Londres: Rebecca, Nate, Roy, Higgins, Trent, os jogadores… mesmo Beard, o amigo mais antigo que lhe conhecemos, escolhe ficar em Londres para casar com Jane. É possível que Ted tenha outros amigos no Kansas, mas não os conhecemos.
Quando a série ainda estava a decorrer, ainda pensei que Ted pudesse encontrar um clube em Kansas – quer de futebol americano, quer de futebol “a sério”. A série podia dar a entender que Ted iria começar de novo noutro clube em dificuldades, transformá-lo também numa família – mas desta feita com Henry por perto. Um cenário destes far-me-ia aceitar melhor um final em que Ted deixa quase todos os seus amigos noutro continente.
Os guionistas, no entanto, tinham outras ideias. Ted fica a orientar uma equipa infantil de futebol, na qual Henry joga. Pode-se argumentar que é onde a personalidade calorosa e otimista de Ted melhor se encaixa: entre crianças. E talvez estar perto do filho seja suficiente para Ted.
Mas não sei se, a médio/longo prazo, não começará a faltar algo.
E pronto, era isto que tinha a dizer sobre Ted Lasso. Esta última temporada deixou muito a desejar, mas continuo a achar que o balanço final é positivo. Sempre fui fã de histórias sobre esperança, redenção, crescimento, famílias de escolha. Temas que Ted Lasso aborda, com algum idealismo e fantasia, mas sem deixar o realismo completamente de lado. A série começou em 2020, numa altura em que as suas mensagens nunca tinham feito mais falta. Eu não apanhei logo esse comboio. Só vi as duas primeiras temporadas em 2022. Mas posso dizer, sem exageros, que (como já aludi noutro texto deste blogue) uma das suas mensagens – pior que estar infeliz é estar sozinho e infeliz – mudou a minha vida.
A cereja no topo do bolo é o facto de ser sobre futebol – sobre o romance do futebol, sobre a humanidade do futebol. Como referi antes, é uma das minhas partes preferidas em Ted Lasso, mesmo que nem todos concordem comigo. Farto-me de citá-la em ambos os meus blogues – blogues esses que não costumam ter muitos denominadores comuns.
Quando a terceira temporada terminou, em 2023, todos assumimos que seria o fim de Ted Lasso. Os próprios criadores tinham deixado bem claro que a história tinha sido pensada para três temporadas – algo que fica evidente olhando para a série em geral. Não existiam planos para ir além disso.
Desde o verão passado, no entanto, têm surgido rumores apontando para uma continuação da história. De início até fiquei entusiasmada. No entanto, fui pensando melhor no assunto e tenho as minhas reservas. Afinal de contas, a qualidade caiu na terceira temporada. Quem me garante que não irá continuar a diminuir? Sobretudo quando não havia planos para mais temporadas. Por exemplo, como vão tirar Ted do Kansas?
Um spin-off até poderia resultar, se fosse bem feito – um grande "se". Um reboot, como já vi sugerido, no entanto, é que não quero de todo.
A ver o que o tempo dirá. O que quer que seja ainda estará numa fase muito embrionária. Se sempre houver mais Ted Lasso, em princípio vejo. Nem que seja só por causa deste elenco. Uma das coisas boas de ter escrito esta análise foi ter passado mais tempo com estas personagens, ter enganado as saudades.
E passei muto tempo mesmo. Quase um ano, contando com a preparação. Com pausas pelo meio, sim, mas não deixa de ser um recorde. Foi um texto difícil de escrever: conforme previ, eram músculos que não exercitava há muito tempo. Precisei de várias tentativas para acertar com a estrutura. As inúmeras vezes que deixei o texto em banho-maria, bem como o pouco tempo que tenho tido para escrever, não ajudaram. Não escrevi nenhum texto de fim de ano até agora precisamente porque não queria adiar esta análise de novo – sobretudo quando esta estava finalmente a encarreirar.
E de uma maneira muito típica pela parte que me toca, ficou mais comprida do que estava à espera.
Mas finalmente está terminada e estou satisfeita com ela. O meu próximo texto será um apanhado dos concertos a que fui em 2024 (alerta spoiler: foram muitos. Mesmo muitos). Espero não me demorar muito – quero publicá-lo antes do concerto dos Hybrid Theory com os Grey Daze no próximo mês – mas nesta fase as minhas promessas valem o que valem.
Também já sei quais serão os dois textos que se seguirão a esse. Só espero conseguir concluí-los este ano.
Segunda parte da minha análise à terceira temporada de Ted Lasso. Podem ler a primeira parte aqui. Spoilers para toda a série de Ted Lasso.
Queria agora regressar aos primeiros episódios para falar sobre Keeley – quiçá a maior desilusão da temporada. Sabíamos que Keeley, deixaria de trabalhar diretamente com o Richmond para fundar a sua própria empresa de Relações Públicas. O que não sabíamos era que este desenvolvimento praticamente isolaria Keeley do resto do elenco que conhecíamos. Foi como vermos um spin-off dentro da própria série – e nem se pode dizer que tenha sido um bom spin-off.
Teve os seus momentos, é certo. Gostei de Barbara, uma das funcionárias da empresa que tem uns conflitos interessantes com Keeley. Mas de resto pouco se aproveitou.
Começando por Shandy: uma personagem cujo fim adivinhei mal nos foi apresentada, infelizmente. Shandy é aquilo que todos pensávamos que Keeley era no início da série. A diferença é que Shandy nunca evoluiu além do estereótipo. A sua história não teve nenhuma surpresa, nenhum efeito senão irritar-me. Tal como Zava para Jamie, Shandy foi um mero plot device na história de Keeley. Neste caso, atirou-a para os braços de Jack, a sua investidora. Um efeito secundário de que os guionistas possivelmente não se lembraram, no entanto, é que, numa altura em que Keeley procurava afirmar-se com a sua própria empresa, contratar uma amiga para esta depois só fazer disparates não reflete muito bem nela.
E infelizmente deixar-se cair nos braços de Jack é outra má jogada de Keeley. Ted Lasso tem uma mania infeliz com relações questionáveis, em particular entre pessoas de níveis hierárquicos diferentes. Como escrevi antes, até gostei do romance entre Rebecca e Sam na temporada anterior pois, na minha opinião, tinham qualidades redentoras como casal.
Com Keeley e Jack, no entanto, isso não acontece. Vemo-las iniciando a relação, somos informados quando Jack leva Keeley numa escapadinha romântica. Quando as voltamos a ver com os nossos próprios olhos, já estão com uma dinâmica questionável: o love bombing, como a própria série assinala.
Se bem que a escrita deste último desenvolvimento seja algo estranha. Do pouco que percebo sobre o assunto, tipicamente o love bombing é uma de várias estratégias de manipulação empregadas por narcisistas para ganhar controlo sobre as suas vítimas. Segundo Rebecca, Rupert fê-lo com ela mesma no início da relação e pode-se argumentar que vemo-lo fazendo-o com Nate. Mas este romance foi escrito de forma tão inconsistente que eu não consigo dizer se é suposto acharmos que Jack está a tentar manipular Keeley. A ideia com que fico é que os guionistas queriam incluir um exemplo de love bombing na história, mas esqueceram-se de incluir o necessário contexto.
De qualquer forma, o namoro das duas descarrila quando um vídeo íntimo de Keeley aparece na Internet.
Muitos criticaram o tom moralista com que Ted Lasso abordou este desenvolvimento – sobretudo na reação do plantel do Richmond ao evento. Também não adorei. Por outro lado, mesmo no ano da graça de 2025, ainda há demasiada gente a culpar a vítima. Ensinamos os jovens, sobretudo elas, a não tirarem fotos íntimas, a não se deixarem filmar, a não partilharem – apesar de terem direito a isso, tal como qualquer adulto capaz de consentir tem direito a uma vida sexual com outros adultos capazes de consentir. Não vejo praticamente ninguém a ensinar os jovens a não pedir nudes uns aos outros, a não filmar ou fotografar sem autorização, a não partilhar tais conteúdos – recordando-lhes que esses atos constituem crime de devassa da vida privada, punível com pena de prisão até cinco anos.
Por isso, não posso levar a mal que Ted Lasso se tenha dado ao trabalho de passar essa mensagem. É dos poucos que o faz. Pode ser que isto envelheça muito mal e que, daqui a dez anos, já toda a gente tenha a lição mais do que aprendida.
Ou não. Pelo que ouço por aí, as mentalidades estão a regredir no que toca à igualdade de género.
Queria agora falar da maneira como Roy e Jamie – ambos ex-namorados de Keeley – lidam com a divulgação do vídeo. Roy começa com a atitude certa, mostra solidariedade, mas acaba por meter a pata na poça ao perguntar para quem era o vídeo. Ele pede desculpa de imediato, em sua defesa, mas o mal já estava feito.
Em contraste, quando Jamie vai ter com Keeley, assume a sua parte da culpa. O vídeo fora para ele e não arranjara uma palavra-passe decente para a sua conta de email. Pode-se argumentar que Jamie não precisava de pedir desculpa. Não fora ele a divulgar o vídeo, até se dera ao trabalho de eliminar todo o conteúdo íntimo após o fim da relação (em parte por mesquinhez, o que o próprio Jamie admite). Mesmo que tenha sido descuidado, a sua conta de email foi invadida. O pirata informático terá tido acesso a muita informação privada. Jamie também foi uma vítima.
Ainda assim, esta foi uma das maiores provas da evolução de Jamie ao longo das três temporadas de Ted Lasso. É também de assinalar o contraste com Roy. Na temporada anterior, houve uma ocasião em que Ted assinalou que Jamie estava a ser mais maduro do que Roy. Uma realidade que se manteve até ao fim da temporada.
Mas estou a adiantar-me.
Regressando a Keeley, Jack é mesmo o interesse romântico que pior lida com o que aconteceu. Começa por redigir uma declaração para as redes sociais de Keeley em que esta pediria desculpa por ter filmado o vídeo. Keeley recusa. Durante o resto do dia, Jack vai arranjando desculpas para não ser vista em público com Keeley como namorada.
O conflito culmina no fim do episódio com uma discussão em que Jack censura Keeley por ter filmado e enviado o vídeo. A relação essencialmente termina ali mesmo. Um episódio ou dois mais tarde – sem grande surpresa – Jack corta o financiamento da empresa de Keeley, essencialmente destruindo-a. Esta última passa o resto do episódio mergulhada em autocomiseração. No fim, no entanto, Rebecca oferece-se como nova investidora, resgatando a empresa de Keeley.
Para que serviu esta história toda afinal? Ted Lasso separou Keeley do resto do elenco, apenas para a vermos tomando más decisões tanto na sua vida pessoal como profissional. Nem sequer vemos Keeley saindo por si mesma do buraco em que caíra, com todo o desenvolvimento de personagem que viria com isso. Rebecca fez de Deus Ex Machina.
É um bocadinho triste, mas o episódio em que mais gostei de ver Keeley nesta temporada foi aquele em que se envolveu na história de Roy e Jamie: dois homens, dois dos seus interesses românticos.
Mas recuemos um passo ou dois, regressando a Roy. Na altura em que Keeley perdeu a empresa, Roy passara o último par de episódios apercebendo-se que andava a boicotar-se a si mesmo com as suas inseguranças – ainda que mais no sentido de reconhecer o problema, não se pode dizer que tenha feito alguma coisa para resolver. Assim, faz uma visita a Keeley, quando esta se encontra numa posição vulnerável pela perda da empresa, e pede-lhe desculpa pela maneira como a relação terminou. Os dois acabam juntos na cama, mas a série apresenta o evento como um deslize de Keeley, não tanto como um passo apontando a uma reconciliação.
No episódio seguinte, o Richmond prepara-se para defrontar a sua besta negra Manchester City para o campeonato, em casa deles… e Jamie não está a lidar muito bem com isso. Em parte porque vai regressar à casa do antigo clube, com adeptos ainda desagradados por terem sido trocados por um reality show. Em parte porque poderia voltar a ver o pai pela primeira vez depois do desastroso encontro em Wembley, na temporada anterior.
Este foi um ponto alto da temporada de Ted Lasso, pela maneira como começam por explorar o lado cómico deste desenvolvimento, evoluindo depois, lentamente, para um tom mais sério. A definição de dramedy.
Como Roy não consegue fazer Jamie sair da sua crise existencial, pede ajuda a Keeley… que infelizmente também não consegue resolver o problema. Em todo o caso, ambos colocam tacitamente Jamie debaixo das suas asas. Seguem-no quando este se escapule do hotel onde a equipa está hospedada. Jamie acaba por apanhá-los, mas aceita trazê-los consigo para a sua casa de infância, onde ainda vive a mãe dele e o padrasto.
Sou a única que, antes disto, pensava que a mãe do Jamie já tinha morrido?
De qualquer forma, adorei a senhora. Adorei a química que a atriz, Leanne Best, tem com Phil Dunster. A meu ver, os indicadores de saúde mental melhorariam todos se nós, adultos e sobretudo homens, nos deixássemos abraçar mais vezes pelas nossas mães.
Jamie finalmente explica que, depois de tanto tempo motivando-se por raiva ao pai, está numa fase em que o ódio passou a indiferença. Ou seja, perdeu a sua maior motivação e sente-se perdido. A mãe de Jamie faz o que melhor sabe fazer: recorda-lhe que ele é fantástico, mas que ela não o amaria menos se não fosse, e que Jamie não tem nada a provar ao seu pai.
Ainda assim, esta conversa não é suficiente para Jamie sair daquele buraco. Mas já aí voltamos.
Keeley e Roy, na verdade, não têm muito para fazer nesta parte, mas na minha opinião não precisam. Para mim bastou ver Roy fitando boquiaberto um Jamie quase literalmente ao colo da mãe. E também as reações de Keeley e Roy aos respectivos posters no quarto de infância de Jamie.
Por outro lado, pelo meio, Roy arranja um tempinho para dizer a Keeley que quer voltar a namorar. No entanto, Jamie interrompe-os antes que ela pudesse responder. A questão mantém-se em banho-maria até ao episódio seguinte.
Durante o jogo com o City, Jamie continua visivelmente em baixo, o que se reflete no seu desempenho em campo. As vaias dos adeptos do City não ajudam. A certa altura, Jamie lesiona-se, é tratado fora de campo, Ted conversa com ele. O jovem explica que está enervado por não ver o pai nas bancadas. Ted sugere a Jamie que perdoe o pai, não porque ele o mereça, e sim pela sua própria paz de espírito.
Esta não é uma ideia nova, nem sequer da parte de Ted. Mas confesso que tenho uma objeção semântica no que toca a este conceito. Devia haver uma palavra para perdoar no sentido de abdicarmos do rancor e outra, diferente, para perdoar no sentido de aceitar a outra pessoa de novo na nossa vida. Porque uma coisa não implica a outra.
Nos dias que correm, ainda há muito a ideia de que devemos sempre perdoar os nossos familiares, sobretudo os nossos pais. Só mesmo porque são os nossos pais, porque nos trouxeram ao mundo e/ou nos criaram. Não é bem assim.
Felizmente já há quem aponte que existe um desequilíbrio na relação entre pais e filhos. Os filhos não escolheram nascer, não escolheram ser criados por aquelas pessoas, mas dependem deles durante os primeiros dezoito anos das suas vidas – muitas vezes mais. Conflitos entre pais e filhos têm inúmeros motivos, mas sobretudo em casos de maus tratos ou negligência, não, os filhos não têm a obrigação de perdoar os pais. Há coisas que não se perdoam, sobretudo quando feitas a crianças.
No que toca à história de Jamie, a série não acerta por completo. Adiantando-me um pouco, descobrimos que o motivo pelo qual James Tartt não está nas bancadas do Estádio Cidade de Manchester é por estar numa clínica a ser tratado por alcoolismo. Jamie no entanto não o sabe. Depois do jogo, envia uma mensagem ao pai, reabrindo uma via de comunicação. Mais tarde, no epílogo da série (?), vemos que Jamie e James retomaram o contacto e poderão eventualmente reconciliar-se.
Não acho que James o mereça, pelo menos não ainda nesta fase, mas não me importo que queiram ir nessa direção. Isto é Ted Lasso, uma história sobre esperança e otimismo! Mas gostava que, no mínimo, tivesse sido James a enviar a primeira mensagem, a dar o primeiro passo.
Recuando de novo até ao jogo com o City, depois da conversa com Ted, Jamie regressa ao campo com outro vigor. Marca inclusivamente o golo que garante a vitória do Richmond. Jamie fica visivelmente feliz por ter marcado o golo mas, por respeito ao antigo clube – ao clube que o formou – não festeja. Ted substitui-o logo a seguir – em parte por precaução, pois Jamie estava lesionado. Mas também cria um momento para Jamie ser aplaudido, inclusivamente pelos adeptos do City, em contraste com os assobios de antes – das minhas coisas preferidas no futebol da vida real. O Richmond ganha o jogo e fica a um ponto de distância do City, que continua em primeiro. Mais tarde, já no Nelson Road, quando Jamie está na sala de tratamentos com a perna no gelo, Roy e Keeley vão ter com ele para festejarem os três – com Ted a ver.
Mesmo que Roy e Keeley não tenham feito muito na prática, adorei ver a dinâmica deles com Jamie neste episódio. Como disse antes, foi a melhor versão de Keeley em toda a temporada, na minha opinião, e das melhores de Roy e Jamie.
Infelizmente os guionistas estragaram (quase) tudo no episódio seguinte – o último da temporada.
Roy e Jamie vão beber um copo para celebrar o fim da época. A conversa desvia-se para Keeley e descarrila quando os dois se põem a discutir sobre quem deve namorar com ela. Ambos descem a um nível muito feio: Roy refere o recente encontro sexual que teve com ela, Jamie revela que o vídeo íntimo de episódios antes fora filmado para ele. Acabam por chegar a vias de facto, mas no fim decidem pedir a Keeley para escolher.
Keeley manda-os aos dois passear.
Pois é, detestei este desenvolvimento e não fui a única. O povo fartou-se de triângulos amorosos nos últimos anos – sobretudo quando fazem com que dois amigos se voltem um contra o outro. Como neste caso.
Numa sessão de perguntas-e-respostas no Reddit, Brendan Hutt, o ator que faz de Beard e um dos guionistas, admitiu que, por um lado, queriam subverter o estereótipo do triângulo amoroso ao fazerem com que Keeley rejeitasse os dois. O que, OK, faz sentido e, admito-o, o corte para Keeley fechando a porta na cara dos rapazes foi engraçado. Por outro lado, o outro motivo que ele deu foi, e cito-o, “men are dumb”.
*revira os olhos*
Corrijam-me se estiver enganada, mas ninguém, absolutamente ninguém, queria ver Roy e muito menos Jamie dando passos atrás na sua evolução, só por um momento cómico que nem teve assim tanta piada. É outro dos problemas basilares de Ted Lasso. Numas coisas é muito progressista, muito subversivo, noutras é frustrantemente básico. Outro exemplo foi a cena dos cordões à volta dos genitais dos jogadores, no sétimo episódio.
Talvez seja de passar demasiado tempo no Tumblr, mas acho que teria sido giro ver os três numa relação poliamorosa. Cada um dos vértices deste triângulo gosta dos outros dois, tem a sua própria dinâmica com cada um dos outros e, como vimos em Mom City, os três funcionam bem juntos. Mesmo que não quisessem que houvesse nada de sexual ou romântico entre Roy e Jamie… se o Dani Rojas pode ter duas namoradas ao mesmo tempo, porque é que Keeley não pode ter dois namorados?
Deixando essa hipótese de lado, talvez fizesse sentido emparelhar Jamie com Keeley. Afinal de contas, como comentámos antes, Jamie encontra-se numa fase mais saudável mentalmente, sobretudo quando comparado com Roy. Chega mesmo a existir um momento nesta temporada em que Keeley contempla a hipótese em voz alta.
No entanto, percebo porque é que os guionistas não foram por aí. Uma coisa seria se tivéssemos a certeza de que haveria mais Ted Lasso depois disto, oportunidades para ver Keeley e a versão mais madura de Jamie como casal. Este episódio, no entanto, foi escrito como o final da série. Emparelhar Keeley com Jamie nesta altura seria assumir que estes eram o final feliz um do outro – sem que a série tenha apresentado provas disso ainda.
Talvez deixar Keeley solteira tenha sido a decisão correta – a moça precisa de passar algum tempo sozinha, em auto-reflexão, antes de cair noutros braços.
E numa coisa concordo com Brendan Hunt: Roy tem ainda muitas coisas a resolver consigo mesmo antes de poder voltar para Keeley. Foi a única coisa boa a surgir da briga entre Roy e Jamie – o primeiro percebendo que precisava de ajuda. Precisou de toda a temporada para admitir as próprias inseguranças e agora, finalmente, ia fazer alguma coisa em relação a isso. Talvez seja estranho o arco de Roy ter ficado assim, inacabado, mas não me importo. Na vida real, nem sempre temos todas as pessoas no mesmo grupo com as pontas todas atadas.
E mal por mal, o conflito no último episódio não chega a fazer mossa. Os três continuam amigos. E admito que possa sempre haver alguma rivalidade, algumas picardias entre Roy e Jamie. Admito inclusivamente que voltem a vias de facto por motivos parvos – sem que hajam consequências a longo prazo para a amizade deles.
Ainda assim, foi desnecessário. Teria preferido um final ligeiramente diferente para estes dois. E para Keeley.
Continuemos. Outra das minhas facetas preferidas nesta temporada foi Trent Crimm, que no início da época se junta informalmente à equipa técnica para escrever um livro sobre o Richmond.
Eu tinha dito antes que, se pudesse ser alguém do elenco de Ted Lasso, seria Keeley? Esqueçam, se pudesse ser alguém da série, seria Trent Crimm nesta temporada. Alguém fazendo oficiosamente parte da equipa, com acesso ao balneário, que assiste aos treinos e às palestras, disponível para aconselhar aqui e além e que escreve sobre tudo isso.
Também não me importava nada de ter o cabelo dele.
Não que Trent tenha um papel muito muito importante nesta temporada. Não se pode dizer que tenha, sequer, um arco de personagem. Está lá para observar, comentar, ajudar outros, pouco mais.
E chega. Nem todos precisam de ser personagens principais. E a Trent Crint basta-lhe ser Trent Crint.
A sua maior contribuição é para a história de Colin Hughes, um dos jogadores do Richmond. Falemos sobre ele então. Descobrimos no terceiro episódio da temporada que ele é homossexual. Isto sendo futebolista, isto fazendo parte de um mundo tão masculino como o do futebol. Não é por acaso que existem pouquíssimos futebolistas assumindo a sua homossexualidade em público – este é um dos poucos.
Colin tem, assim, passado toda a sua vida no “armário” até ao dia em que Trent o vê aos beijos ao namorado. Trent guarda segredo até ao episódio de Amesterdão. Colin inventa uma desculpa para não passar a noite com o resto da equipa, sai do hotel, Trent segue-o e apanha-o num bar gay. É aí que revela que sabe a verdade e que o próprio Trent também é homossexual.
Devo dizer: eles podiam ter escrito esta parte do diálogo de maneira diferente. Preferia que não tivessem dado a entender que Trent só não deu com a língua nos dentes porque estava no mesmo barco que Colin. Qualquer pessoa decente e com dois dedos de testa, queer ou não, respeitaria o segredo.
Trent e Colin partilham histórias sentados juntos ao homonumento – um marco de homenagem às vítimas LGBTA+ do Holocausto. Colin diz que não quer a responsabilidade nem a pressão de ser um dos primeiros jogadores de futebol assumindo publicamente a sua homossexualidade. Apenas quer poder ser ele mesmo tanto na sua vida pessoal como na sua vida profissional.
Eu mesma não faço parte da comunidade queer, a minha opinião vale o que vale. Mas penso que é uma posição legítima.
Colin ganha, assim, um confidente e ambos, depois, desfrutam de uma noite de anonimato em Amesterdão. A história de Colin continua uns episódios mais tarde, quando o vídeo íntimo de Keeley aparece na Internet. O Capitão Isaac McAdoo ordena ao plantel que apague todo o conteúdo íntimo dos respetivos telemóveis. Quando Colin, um dos melhores amigos de Isaac, parece hesitar, Isaac arranca-lhe o telemóvel das mãos. Presumivelmente, vê fotos ou vídeos íntimos de homens.
Depois desta é até meio do episódio seguinte, Isaac mostra-se distante, mesmo hostil para com Colin. Descobrimos mais à frente que Isaac ficou magoado por Colin não ter confiado nele. Suponho que tais sentimentos se tenham manifestado sob a forma de agressividade.
A ideia com que fico, no entanto – eu e outros nas internetes – é que guionistas queriam que nós pensássemos que Isaac era homofóbico para depois fazerem um plot twist. Mau gosto, na minha opinião. E nem me parece realista: como disse acima, qualquer pessoa não homofóbica e com dois dedos de testa compreenderia que Colin quisesse guardar segredo, mesmo com as pessoas mais próximas.
Suponho que, se pedisse explicações aos guionistas, eles atirariam de novo com o “men are dumb”.
No nono episódio, então, no intervalo de um jogo que não estava a correr bem para o Richmond, um adepto dirige um insulto homofóbico aos jogadores do próprio clube. Isaac reage que nem um touro enraivecido: salta para as bancadas e quase chega a vias de facto com o adepto na berlinda. É Roy, de todas as pessoas, quem o chama à razão. Isaac, naturalmente, leva cartão vermelho, mas o adepto hostil também é expulso do estádio.
No balneário, os colegas tentam perceber o que aconteceu. Chegam a especular se Isaac é homossexual. Outra série provavelmente manteria o engano, tentaria extrair humor dele (e provavelmente falharia). Felizmente Ted Lasso não foi por aí. Colin decide assumir a sexualidade perante o resto da equipa.
Têm havido críticas por, uma vez mais, terem cortado no momento exato em que Colin iria dizer “I am [gay]”. Eu no entanto acho que é um dos casos em que funciona.
O plantel declara apoio incondicional a Colin. Ted vai mais longe, com uma analogia desastrada em que compara orientação sexual a preferências clubísticas. Um bocadinho falta de noção, sim, mas a meu ver realista. Este tipo de coisas acontece na vida real, eu mesma já meti a pata na poça dessa forma, e Ted é o tipo de pessoa que faria isso, ainda que com a melhor das intenções. E a narrativa não ignora o momento menos bom de Ted: Colin chama-lhe a atenção e o treinador pede desculpa. De resto, fica bem claro que Ted lamenta que Colin tenha sofrido sozinho e garante que, a partir de agora, nem ele nem o resto da equipa deixarão que isso aconteça de novo.
É uma cena bonita, em particular quando Sam, como novo Capitão, faz o grito de guerra. As palavras de Sam, “I love you guys so very much” já tinham aparecido no trailer da terceira temporada – fora do contexto, como é evidente. Eu já tinha gostado. Depois de conhecer o contexto, gostei mais ainda.
A equipa regressa mais forte e unida para a segunda parte. Mesmo jogando com menos um, o Richmond dá a volta ao resultado. Colin assiste em ambos os golos – é eleito Homem do Jogo. Mesmo à Ted Lasso: ao dar um passo para se tornar uma melhor versão de si mesmo fora de campo, Colin tornou-se uma melhor versão de si mesmo dentro dele.
Recuando um pouco e regressando a Isaac, no rescaldo da expulsão, os colegas dizem-lhe que não é a primeira vez, nem será a última, que lidam com insultos daquele género. Ele tinha de ignorar. Conselhos muito comuns quando se fala de bullying e de outras situações do género. O próprio Ted dissera o mesmo no início da época, a propósito da má imprensa que o clube andava a receber.
Esta mentalidade tem o seu valor, não me interpretem mal, mas tem as suas limitações. Como nesta situação específica. Isaac faz-lhes ver que há limites para tudo, há coisas que ninguém tem de tolerar. A narrativa dá a entender que a fúria de Isaac tem mais a ver com o seu conflito com Colin do que propriamente com o desentendimento com o tal adepto.
Não significa que Isaac não tenha razão. E Roy expande essa ideia mais tarde, na Conferência de Imprensa pós-jogo. Este é outro momento alto da temporada, um dos melhores de Roy, um daqueles discursos que deviam ser ouvidos por toda a gente na vida real. Sobretudo no mundo do futebol, sobretudo no futebol português. Essencialmente pedindo às pessoas para não serem bestas, muito menos para quem deviam apoiar. No fim do dia, isto é apenas futebol, é apenas um jogo, mas os protagonistas – jogadores, treinadores, árbitros, mesmo dirigentes – mesmo nem sempre tendo os comportamentos adequados, são pessoas de carne e osso, com emoções, problemas, entes queridos, tal como qualquer ser humano.
Aliás, agora que penso nisso, o discurso de Roy é essencialmente uma das teses de Ted Lasso. É possível que nem sequer tenha sido intencional, mas a série explora, mais do que o romance do futebol, a humanidade do futebol. Pode-se argumentar que Ted Lasso é sobre as pessoas por detrás dos jogadores, dos treinadores, da dirigente. A história de Colin é um exemplo entre vários.
Algo que é importante, pois temos muito a tendência para desumanizar os seus protagonistas.
E os exemplos abundam. Começando pelo Mercado de Transferências, que sempre detestei por fazer-nos tratar jogadores, treinadores, seres humanos, como bens para serem comercializados.
Ainda piores são situações de violência, tanto verbal como física. Tivemos dois exemplos recentes no futebol português, um deles muito parecido com o de Isaac (sobre o outro falaremos mais à frente). Mais graves são casos como, por exemplo, quando o carro onde seguia a família de Sérgio Conceição, incluindo uma criança, foi apedrejado. E, claro, a infame invasão à academia de Alcochete em 2018.
Sim, os protagonistas do futebol ao mais alto nível – jogadores, técnicos, árbitros – ganham muito mais do que nós. Não significa que seja aceitável levarem com abusos como estes. E a verdade é que isto também acontece em ligas mais pequenas e menos abonadas – chega a ser pior – em que nem sequer se pode argumentar que os protagonistas são pagos para serem maltratados. Bolas, isto acontece no futebol infantil, com crianças e adolescentes.
Por isso, sim. Há muita gente na vida real que devia ouvir o discurso de Roy.
Avançando na história, depois disto, Colin e Isaac fazem as pazes. Colin decide que não vai revelar a sua orientação sexual a mais ninguém.
O que me parece bem. Uma vez mais, não faço parte da comunidade LGBT+, não tenho autoridade para dizer quando e como é que uma pessoa deve sair do armário. E quando a mera existência de alguém tal como é pode ser considerada um ato político, compreendo que Colin queira manter o segredo como figura pública. Acredito que já seja uma grande vitória para ele fazer do seio do Richmond um lugar seguro.
Dito isto, saltando para o episódio final, aquando da vitória há invasão de campo durante os festejos. Michael, o namorado de Colin, vai ter com ele e Colin beija-o. Não sei se foi deliberado da parte do jogador ou se foi o calor do momento. Também é possível que, no meio da confusão, tenha passado despercebido.
Talvez este momento tenha consequências se a série eventualmente continuar. Terminando assim a história, no entanto, mesmo que alguns aspetos não tenham sido perfeitos, foi uma das melhores partes da temporada.
Jamie e Colin foram os únicos jogadores com uma linha narrativa com princípio (bem… a de Jamie começou muito antes), meio e fim nesta temporada. Sam teve uma história algo estranha. Mostram-no a abrir o seu próprio restaurante, tal como já tinha sido anunciado no fim da temporada anterior. O que, de início, não me aqueceu nem me arrefeceu. A única coisa semi-interessante que Ted Lasso fez com isso nos primeiros episódios foi usar o restaurante como cenário para um par de cenas importantes e darem indícios de que Sam se voltaria a cruzar romanticamente com Rebecca.
Indícios esses que não dão em nada.
O restaurante só se torna relevante no sétimo episódio. Na semana em que Ola Obisanya, o pai de Sam, vem de visita, Sam troca tweets com uma governante com um discurso anti-refugiados – inspirada por Suella Braverman, uma política da vida real com um discurso semelhante (desprezo por gente que pensa com ela). Em resposta, o restaurante de Sam é vandalizado – no dia em que o pai chega a Londres, por sinal.
Em termos de meta, diz que este desenvolvimento terá sido uma resposta a algumas críticas feitas a um episódio da segunda temporada. Sam fizera frente à Dubai Air, um dos maiores patrocinadores do Richmond, pelos danos ambientais que a empresa andava a fazer na Nigéria, o seu país natal. No entanto, este ato não teve consequências: o Richmond arranjou outro patrocinador e mais ninguém voltou a falar do assunto.
Nesse aspeto, neste episódio o ativismo de Sam teve um desfecho mais realista. O desabafo de Sam (a palavra “rant” infelizmente não tem uma tradução literal em português) no balneário alude inclusivamente a algo que aconteceu em Julho de 2021: o spam de racismo que Bukayo Saka, Jadon Sancho e Marcus Rashford receberam nas redes sociais por terem falhado penáltis na final do Euro 2020.
É outra vez a questão da desumanização. Eles eram miúdos novinhos na altura! O mais velho tinha vinte e três anos!
E nós, portugueses, não somos muito melhores. Veja-se o que aconteceu há bem pouco tempo com Galeno e Gabriel Batista.
Regressando a Ted Lasso e a Sam, este desenvolvimento sempre proporcionou alguns momentos bonitos. Conhecemos finalmente o pai de Sam, a sua gentileza e sabedoria – aconselhando o filho a reabrir o restaurante, em parte por si mesmo, em parte como resposta aos vândalos – as suas interações com Ted. No fim do episódio, toda a equipa aparece no restaurante para reparar os danos.
Foi bonito, mas foi uma história de um único episódio. Sam só volta a ter protagonismo um par de episódios mais tarde, quando falha a Convocatória para a seleção nigeriana. Descobrimos no mesmo episódio que foi Afuko quem subornou o governo (a federação?) para que Sam não fosse Convocado. Ao mesmo tempo, planeia sabotar o restaurante de Sam.
Tudo isto como vingança por Sam ter recusado a sua proposta no final da segunda temporada. Tal como a história da Super Liga, ou talvez ainda mais, tudo muito infantil e irritante.
E o pior é que esta história nem sequer tem resolução em tempo útil. No último episódio, existe uma sequência com cenas do futuro a médio/longo prazo do elenco – incluindo Sam envergando o equipamento da seleção nigeriana. Durante algum tempo colocou-se a hipótese de aquilo ser apenas um sonho ou uma fantasia de Ted. Na tal sessão de perguntas-e-respostas, Brendan Hunt confirmou que a sequência é real, uma espécie de epílogo – semelhante ao de Digimon Tamers. No que toca a Sam, este terá finalmente sido Convocado por pressão do público.
Para começar, como alguém que acompanha a Seleção Portuguesa há muitos anos, tenho algumas dúvidas em relação ao realismo desse cenário. Tantos jogadores portugueses que não teriam falhado Europeus ou Mundiais se o povo mandasse. Claro que, tanto quanto sei, a FPF nunca terá sido diretamente subornada para manter um jogador fora da Seleção. É possível que a federação nigeriana estivesse só à espera de uma desculpa para voltar atrás no acordo.
Ainda assim prefiro a hipótese colocada pelo autor da pergunta em questão: as câmaras de segurança do restaurante captando as palavras de Afuko e o vídeo indo misteriosamente parar à Internet. Matavam-se dois coelhos com uma cajadada: Sam finalmente Convocado e Afuko tendo de responder por corrupção.
Em todo o caso, e mais grave ainda… isto é batota! Isto é escrever o fim da história sem escrever o meio: uma regra básica de escrita! Se queriam que a história de Sam terminasse com ele na seleção nigeriana, a maneira como isso aconteceu devia ter sido incluída na própria série! Não apenas mostrarem o desfecho e deixarem a explicação para o Reddit. Até porque, diria eu, a maior parte da audiência não saberá da existência da entrevista de Brendan Hunt.
E, ainda assim, Sam é dos poucos jogadores que teve direito a uma linha narrativa. Tirando ele, Jamie, Colin e, até certo ponto, Isaac, os outros jogadores não tiveram grande desenvolvimento. Dani Rojas é hilariante, mas tem a profundidade de uma personagem dos Looney Tunes.
Não que seja grave. Este é um elenco muito grande. Nem todos podem ser personagens principais. E de resto, como referi antes, gostei muito da dinâmica da equipa como um todo.
E ficamos por aqui hoje. Amanhã virá a última parte, em que iremos falar sobre, diria eu, as duas personagens mais importantes da série. Obrigada pela vossa visita. Continuem por aí.