Lorde – Solar Power (2021) #2
Segunda parte da análise a Solar Power. Podem ler a primeira parte aqui. Como poderão ler, a primeira parte desta análise terminou com uma canção de amor. Esta vai começar com outra canção de amor, ainda que menos convencional. Pelo menos no que toca ao seu destinatário: o seu cãozinho Pearl, entretanto falecido.
Tenho de confessar que gosto desta música mais do que devia, mais do que esta merece – por motivos óbvios. Musicalmente, tem problemas semelhantes a The Man with the Axe: a instrumentação é minimalista no mau sentido, sem presença. Os vocais são um bocadinho melhores em Big Star, mas não muito – o refrão sobretudo precisa desesperadamente de intensidade.
A sorte de Big Star é que o assunto da letra apela diretamente ao meu coração – e ao de muitas pessoas, aposto. Quando Lorde compôs a música, Pearl ainda estava vivo. Ela referiu inclusivamente ter o cãozinho aos seus pés enquanto ela estava ao piano.
A letra fala de muitas coisas que se aplicam a mim como dona da Jane: os nossos cães sendo melhores pessoas do que nós mesmos, dando-nos uma nova razão para apreciar o ar livre, ponderando os prós e contras na hora de viajar, ou mesmo de sair à noite. Pela parte prática de saber quanto tempo conseguem ficar sozinhos em casa e de arranjar quem tome conta deles, mas também porque teremos saudades deles. O refrão é basicamente o meu Instagram.
De notar que a letra usa uma linguagem simplista, inocente, o que faz sentido. É assim que falamos com os nossos cães, como se fossem crianças pequenas.
Não era suposto esta ser uma música triste. Passou a sê-lo depois de Pearl ter falecido. O verso “I’ve got so much to tell you and not enough time to do it” dói particularmente. Lorde diz que ainda hoje sente saudades de Pearl (se bem me recordo, estará a fazer dois anos desde a morte dele nesta altura). Eu compreendo. Aliás, nem posso pensar nisto demasiado a fundo sem que me venham lágrimas aos olhos.
*pausa para sessão de festinhas à Jane*
Olhemos agora para a outra faixa extra. Hold No Grudge, uma das minhas preferidas. Tem uma sonoridade algo diferente do resto do álbum: usa a tal guitarra Fender, alguma guitarra acústica mas, ao contrário do resto do álbum, a percussão é eletrónica. Não são as mesmas batidas fortes de Pure Heroine e algumas músicas de Melodrama. São mais discretas, mas são uma alternativa agradável às múltiplas faixas sem percussão no resto de Solar Power. Gosto muito dos vocais, sobretudo os backvocals no segundo refrão e no fim da música.
Em termos de letra, é uma música de separação – de uma relação que, aparentemente, terá terminado há alguns anos. Lorde invoca recordações felizes, contrastando com o presente: já não se recorda de como o amado cantava, já não se recorda do aniversário dele e ele agora namora com outra.
Lorde não leva nada disso a mal, no entanto – um contraste claro com Melodrama, sobretudo Hard Feelings. Pontos para o amadurecimento, até porque é possível que esta seja a mesma relação explorada no segundo álbum. Lorde não o odeia, perdoa-lhe e deseja que ele seja feliz. Ella soa particularmente terna no refrão e nos versos finais.
Hold No Grudge merecia fazer parte da edição padrão. Era assim que a maioria de Solar Power devia ser.
Falemos agora sobre músicas que fazem comentário social. Começando por Fallen Fruit. Esta é das melhores músicas da segunda categoria em termos de instrumental: não tem percussão, mas tem duas guitarras, a Fender e a acústica, com o tal tom psicadélico que referi antes. Em termos de vocais, é uma das melhores, um belo exemplo de Lorde harmonizando consigo mesma.
A única coisa de que não gosto é de uma espécie de apito que soa de vez em quando. Irrita um bocadinho.
A letra tem uma mensagem ambientalista, acusando as gerações anteriores à nossa de terem arruinado o planeta para os seus filhos e netos. A Terra é comparada a fruta caída – algo com um prazo de validade curto, obviamente.
Era inevitável este tema surgir num álbum (que se diz) inspirado pela natureza, sobretudo depois de Lorde ter estado na Antárctida. Ella admite que não é uma ativista climática, que não tem autoridade para andar por aí a pregar. No entanto, está a fazer um esforço para reduzir a sua pegada ecológica. Trocando o lançamento de CDs por “music boxes” de cartão com códigos para download, planeando uma digressão mais pequena e amiga do ambiente, entre outras coisas.
As próximas duas músicas de que vamos falar pertencem à segunda categoria, mas deixam muito a desejar em termos de qualidade. Uma delas é Dominoes.
Na semana em que saiu o álbum, esta era uma das músicas em torno da qual se estava a criar algum hype. Na altura fiquei com a ideia de que iam lançar um videoclipe para Dominoes durante a madrugada de sexta-feira, 20 de agosto. De tal forma que dormi mal nessa noite, com a excitação. No entanto, de manhã vi que o vídeo era apenas uma apresentação com Jack Antonoff na guitarra. E quando a ouvi, tive a mesma reação que tive quando saiu a primeira versão de Find Me Here:
– ...só isto?
Dominoes é uma faixa curtinha, guiada apenas pela guitarra Fender. Tem um tom mais animado do que as outras músicas da segunda categoria, mas isso acaba por se virar contra si mesma. Mais ainda do que músicas como Big Star e The Man with the Axe, Dominoes pede um instrumental mais completo.
Um elemento nesta música de mau gosto, na minha opinião, são sirenes. Consta que esta música foi gravada no estúdio Electric Lady, em Nova Iorque, num verão em que houveram vários protestos – ou seja, é possível que tenha sido em 2020, embora ela não o tenha confirmado preto no branco. Se foi de facto no verão no ano passado, terá coincidido com os protestos do Black Lives Matter. Ella deixou a porta do estúdio aberta para que os microfones captassem “o som do verão”.
Sou a única que acha isto uma falta de noção gritante? Ainda se a música em si fosse inspirada, direta ou indiretamente, pelo que estava a acontecer… Mais do que as queixas sobre o peso da fama, isto é coisa mesmo à menina branca e privilegiada: tratando um movimento contra a violência policial, algo que mata seres humanos, como um pormenor engraçado para incluir numa música. Estou surpreendida por não ter havido mais polémica em torno disto.
Enfim, passemos à letra. Dominoes fala sobre um sujeito que não presta, mas que se vai esquivando às críticas embarcando em correntes, como por exemplo a dos hippies nos anos 60. Do género “eu já não sou a mesma pessoa que magoou a minha ex. Agora estou numa de “new age”, de “peace and love”, planto flores e tudo!”
Este é um tema recorrente em Solar Power – ou pelo menos é o que Lorde diz, que na prática não é bem assim. Ella revelou que tem encontrado paralelismos entre a cultura hippie dos anos 60 e 70, de fugir ao mundo moderno e abraçar a natureza e a paz, e alguns movimentos dos dias de hoje. O cottagecore (assumo eu) e a cultura de wellness, como veremos já de seguida.
O videoclipe de Solar Power parece explorar esse conceito: uma comunidade que vive na praia, aparentemente sem nenhuma das tecnologias do mundo moderno. Lorde tinha referido que o álbum decorre todo numa ilha, que inclui essa praia. Tenho andado desapontada por ainda não termos visto esses videoclipes, tirando Mood Ring – que decorre num cenário diferente, embora não seja difícil imaginar que fique nessa mesma ilha.
Ainda dentro deste assunto, temos Leader of A New Regime. A letra pinta um cenário pós-apocalíptico em que a narradora – que será uma avatar da própria Lorde – foge para uma comunidade onde estarão os últimos sobreviventes. Um pouco como aconteceu nos anos 60, a situação está caótica devido ao consumo de drogas e à falta de autoridade em geral. Procura-se, lá está, alguém que lidere esta nova sociedade.
Este até seria um conceito interessante se fosse explorado como deve ser. Voltamos a ter uma música demasiado curta – é a mais curta do álbum, só um minuto e meio, ridículo. Voltamos a ter instrumentação escassa – só guitarra e vocais. Para ser justa, é de novo Lorde harmonizando consigo mesma, criando um efeito psicadélico que condiz com o tema.
O facto de, nesta parte do álbum, ser a quarta música neste estilo, com os mesmos problemas, não ajuda. É um alívio quando, depois, ouvimos as primeiras notas de Mood Ring. Finalmente, alguma vida neste álbum!
Mood Ring é uma das minhas preferidas neste álbum. Começando pela sonoridade: um tema da primeira categoria, combinando elementos mais etéreos – os vocais de Lorde, sobretudo – com a bateria e as guitarras acústicas. Um pouco como uma colaboração entre Enya e Natalie Imbruglia.
No que toca a letra, Mood Ring é daquelas músicas que se pode aplicar a múltiplas situações. Segundo Lorde, é uma sátira. A narradora é uma personagem ficcional, diferente de Ella, mais velha, que pinta o cabelo de loiro, será um bocadinho Karen (“the whole world is letting me down”) e tem dinheiro para gastar. Lorde admite que partilha algumas características com esta personagem – e, de facto, pode-se discutir onde é que Ella acaba e a narradora começa. Ao mesmo tempo, apesar de ser uma sátira, Lorde diz sentir compaixão pela personagem que criou.
No fundo, isto é algo que Lorde sempre fez, sobretudo com Melodrama: comentário a uma determinada tendência enquanto participa na mesma.
Mood Ring pode aplicar-se, assim, a vários movimentos dos dias de hoje. Desde a ditadura do pensamento positivo (já abordada em Fake Happy e Rose Colored Boy), astrologia, certas medicinas alternativas, a cultura de wellness em geral, as Gwyneth Paltrow e Gustavos Santos desta vida, a filosofia do livro “Comer, Orar e Amar”, que estava na moda há coisa de uma década, mesmo o culto do sol e da natureza praticado por Lorde em Solar Power.
Por acaso – ou não – desde que a música saiu, tenho encontrado uns quantos artigos e vídeos sobre estes assuntos – alguns dos quais tenho partilhado na página de Facebook deste blogue. Temos este excelente vídeo do The Take, que desmonta Goop, de Gwyneth Paltrow – embora se tenham esquecido de referir que muitas destas práticas foram apropriadas de culturas asiáticas, africanas e sul-americanas.
Por outro lado, este artigo do The Guardian fala sobre negacionistas e/ou anti-vacinas nestas comunidades de wellness. Inclui a história chocante de uma mulher com cancro da mama terminal, a quem convenceram que a sua doença era culpa dela, porque supostamente reprimiu a sua sexualidade ou uma treta qualquer do género.
Não vou dizer que não compreendo o apelo destas práticas. Pelo menos as coisas mais soft. Acredito que coisas como ioga e meditação possam trazer benefícios. Também compreendo o apelo do tarot, por exemplo, mais pelos simbolismos e referências culturais – afinal de contas, as cartas de tarot terão sido no século XV como cartas de jogo. Só a partir do século XVIII é que começaram a ser usadas como futurologia. Mesmo essa parte, eu encará-lo-ia mais como um exercício de auto-reflexão do que realmente uma leitura do futuro.
Por outro lado, sou uma mulher de ciências e estou numa carreira científica, mas tenho colegas que levam os signos mais a sério do que esperava. Admito que já me tenha influenciado um pouco mas, para mim, acaba por ser o equivalente àqueles testes do Buzzfeed que determinam que personagem de Friends vocês seriam ou assim: algo para entreter ou, quanto muito, para auto-reflexão, mas não para levar demasiado a sério.
Em todo o caso, o denominador comum a praticamente todas estas práticas é o desejo dos participantes de encontrarem um propósito para as suas vidas, controlo sobre aspetos que, muitas vezes, são incontroláveis. É aqui que Lorde se identifica com a narradora de Mood Ring.
A narradora, no fundo, sabe que nada daquilo funciona, mas quer desesperadamente que funcione. Quer desesperadamente ver as roupas do rei que vai nu. O anel do humor, que dá o título à música, é um símbolo dessa mentalidade: algo que toda a gente com dois dedos de testa sabe que não funciona, mas toda a gente finge que funciona. Acaba por me lembrar, um pouco, Perfect Places, sobretudo nos versos “Take me to some kind of place”, já que também fala em procurar respostas nos sítios errados.
Em suma, Mood Ring é a música mais interessante em Solar Power.
Chegamos, finalmente, a Oceanic Feeling, que encerra a edição padrão do álbum. Lorde diz que é a sua preferida, mas apenas porque foi a última a ser composta.
De uma maneira estranha, vejo Oceanic Feeling menos como uma canção normal, por si só, mais como banda sonora, música de fundo no bem sentido. Uma “vibe”, como se diz hoje em dia. É pouco provável que a oiça fora do contexto deste álbum ou de uma playlist de verão, como a minha.
Musicalmente, começa minimalista, quase só com vocais de Lorde. Sobretudo nas primeiras vezes que a ouvi, lembrava-me de músicas como Bravado e a reprise de Liability e ficava à espera de batidas à Pure Heroine (o mesmo acontecia com The Path). Aqui, no entanto, ouvem-se cigarras (que Lorde quis incluir no álbum por fazerem parte da banda sonora do verão neozelandês. Também fazem parte do nosso) e, mais tarde, bateria ao vivo.
Faz-me lembrar Edge of the Ocean, de Ivy, que acaba por ter um tema semelhante.
Oceanic Feeling é uma das poucas músicas neste álbum que se encaixa no conceito de “ode ao sol e à natureza”, que Lorde insiste que é o tema principal. Funciona como uma continuação temática de Solar Power, a música: Lorde fala sobre passar o dia à beira-mar com a sua família, pescando ou mergulhando do Bulli Point (um penhasco na Nova Zelândia), imaginando o pai fazendo o mesmo na sua juventude e os seus futuros filhos, no seu tempo.
Voltamos ao tema da renúncia à vida de estrela pop. O batôn preto, símbolo da era de Pure Heroine, esquecido numa gaveta qualquer. Nos últimos versos da música – que me recordam a mensagem de Perfect Places – Lorde refere que ainda não encontrou todas as respostas, mas vai continuar a procurá-las na praia e na natureza. E brinca com a ideia de, um dia, virar definitivamente as costas ao mundo da música.
E é isto Solar Power. É o segundo álbum editado este ano por uma cantora que adoro que, não sendo mau, ficou abaixo das minhas expectativas. O caso de Solar Power foi pior pois, ao contrário de Flowers For Vases, um lançamento surpresa, estávamos à espera do terceiro álbum de Lorde há um par de anos.
Solar Power, aliás, tem alguns problemas em comum com Flowers For Vases: o minimalismo mal executado, faixas incompletas quase todas de seguida, fazendo com que o álbum se arraste. E Lorde não tem a desculpa de ter criado o álbum completo praticamente sozinha, ao contrário de Hayley Williams. Há quem culpe Jack Antonoff pela produção fraquinha. Eu não sei o suficiente sobre o trabalho dele para opinar, mas não me surpreendia se a era dele estivesse a chegar ao fim.
Em junho e julho não me imaginava dizendo isto, mas o tema Solar Power é um dos meus preferidos e gostava que o resto do álbum fosse mais parecido com ele. Aliás, os singles neste álbum – Solar Power, Stoned at the Nail Salon, Mood Ring – foram bem escolhidos, no sentido em que quase todas as outras estão uns quantos furos abaixo (exceto as faixas extra).
Alguns fãs têm acusado Solar Power de ser um álbum demasiado alegre para o gosto dos demais. Não concordo por dois motivos. Primeiro, ao contrário de muitos, não acho que música alegre seja inerentemente inferior a música triste. O estereótipo do artista torturado, como Van Gogh, é um conceito perigoso (mas isso daria azo a um texto à parte). E, como disse antes, ando com falta de música mais animada.
Segundo… este não é um álbum assim tão alegre quanto isso. Não que chegue a ser propriamente pesado ou deprimente mas, lá está, as músicas lentas e incompletas roubam vida a um álbum que se queria animado, de verão.
O meu problema não é o estilo nem o conceito de Solar Power. O que eu queria era mais das partes boas e menos das partes más. E queria também aquilo que nos foi prometido: um álbum de celebração do sol, do verão e da natureza, não Lorde queixando-se de ser estrela pop música sim música não.
Mas pronto, foi o que tivemos. Entretanto, consta que Lorde tem andado a criar música e tem brincado com a ideia de lançar um álbum em breve. Não teríamos de esperar mais quatro anos pelo próximo. Se realmente vier outro, esse deverá ser mais triste que Solar Power – possivelmente processando mais a fundo a morte de Pearl, algo que não coube no terceiro álbum.
Ou então, Lorde pode decidir hibernar outra vez durante dois ou três anos. Não me admirava.
De qualquer forma, espero que o próximo trabalho de Lorde seja um bocadinho melhor, mesmo que fique aquém dos primeiros dois álbuns dela.
E é tudo por hoje. Agora tenho de tratar da análise a Fronteira, mas ainda não terminei a segunda maratona. Esta temporada é bem menos cativante que as anteriores, revê-la tem sido custoso. Vou fazer um esforço a partir de agora, mas ainda assim deve demorar. Obrigada pela vossa visita.