Lorde – Solar Power (2021) #1
Quatro anos depois do último álbum, mais de dois anos depois de se ter escondido das luzes da ribalta, a cantora neozelandesa Ella Yelich-O’Connor, mais conhecida por Lorde, lançou finalmente o sucessor ao excelente Melodrama no dia 20 de agosto: Solar Power. Nesta altura, os fãs já conheciam três músicas do álbum. Falei sobre a primeira, com o mesmo nome, aqui. Agora vamos falar sobre o álbum inteiro. Como o costume, tenho bastante para dizer, assim, este texto virá em duas partes. Publico a segunda amanhã.
Vou dizê-lo já, sem rodeios: Solar Power não chega aos calcanhares nem de Pure Heroine nem de Melodrama. Eu não estava à espera que chegasse – pelo menos não aos de Melodrama. Tinha a esperança de que Lorde fizesse um brilharete pela terceira vez, mas seria sempre difícil.
Ainda assim, esperava algo um pouco melhor do que isto.
Comecemos pela sonoridade. Alguns fãs não gostaram do corte com o som mais eletrónico e a percussão dos álbuns anteriores, sobretudo do primeiro. Eu pessoalmente não me importo, mas existem músicas melhor conseguidas do que outras.
Eu dividiria as faixas de Solar Power em dois grupos. Na primeira categoria temos números folk pop, guiados por guitarras acústicas à Natalie Imbruglia com bateria ao vivo. Na segunda categoria temos músicas sem percussão, guiadas por uma guitarra Fender Jaguar tocada como se fosse uma guitarra acústica, focadas nos vocais, muitas vezes com um tom sonhador e vagamente psicadélico, à anos 60 e 70. Nem todas as faixas se encaixam perfeitamente nestas categorias, mas por uma questão de simplicidade vou recorrer várias vezes a estas designações.
Vou, aliás, começar por uma música com características de ambos os grupos: The Path, que também abre o álbum e é uma das minhas preferidas. Esta começa com a guitarra Fender e Lorde harmonizando consigo mesma nos vocais. Mais tarde entra a bateria, depois a guitarra acústica e a música ganha uma nova vida.
Antes de falarmos da letra, devo referir uma das minhas principais críticas a Solar Power. O facto de este não ser o que nos foi prometido. Lorde descreve Solar Power como um álbum de celebração do sol e da natureza, mas isso só se aplica a três canções no máximo. Daquilo que eu oiço, mais do que outra coisa, Solar Power é Lorde dizendo que não quer ser uma estrela pop.
Nesse aspeto, The Path é uma boa introdução àquele que é o principal tema de Solar Power. Funciona, aliás, como a Idle Worship de Lorde, ainda que menos sombria e ressentida. “If you’re looking for a saviour, well that’s not me”. Refere ainda que tem “pesadelos com flashes de câmaras”, que fugiu a tudo para o sol e para a natureza e não atende chamadas “da editora ou da rádio”.
Outra música que explora a fuga à fama é California. A letra descreve o estilo de vida de Hollywood: o luxo, a bebida, as pessoas bonitas, muitas delas antigas crianças-prodígio, mas também a falta de privacidade e os juízos de valor – tendo sido isso que a fez fugir para o sol da sua terra. Noutra música, The Man with The Axe, Lorde refere ansiedade só de pensar em concertos – ao ponto de ter tido um ataque de pânico aquando de uma atuação perante a família real norueguesa.
É curioso estas músicas terem saído nesta altura, quando ser uma estrela pop, sobretudo no feminino, nunca teve tão pouco apelo. Veja-se o que aconteceu com duas das maiores cantoras dos últimos vinte anos. Britney Spears foi praticamente escravizada pelo próprio pai e só agora é que conseguiu recuperar o controlo sobre a sua própria vida. Taylor Swift, por comparação, teve mais sorte. Mas ainda assim, para além do habitual escrutínio e falta de privacidade, perdeu os direitos da sua própria música, estando agora a regravar os seus primeiros álbuns.
Depois temos Billie Eilish, cujo álbum mais recente descreve o lado negro dessa vida, com paparazzi, stalkers, relações tóxicas e pressões externas em relação ao seu visual. E, claro, a Internet, as redes sociais agravam ainda mais estes problemas. Não surpreende que, não apenas Lorde, mas também qualquer artista com popularidade e juízo só use as respectivas contas para assuntos oficiais, como lançamentos de projetos. Taylor Swift, Billie Eilish, Beyoncé, mesmo Hayley Williams.
Além disso, mesmo os fãs hoje em dia são um campo minado. Posso estar enganada, mas, da minha experiência dos últimos anos, as comunidades de fãs online estão piores agora. Vão muito a extremos: os artistas ou são Deus na Terra ou são cancelados. Os stans – ninguém percebeu que a música do Eminem é uma chamada de atenção – veneram automaticamente tudo o que o artista produz, sem sentido crítico, e quem não o faça corre o risco de ser ostracizado. Nunca aconteceu comigo, felizmente, mas também já não sou muito ativa nestas comunidades. Mas já vi acontecer com Jon, um dos meus YouTubers preferidos, que faz crítica musical – só porque ele, como eu, não gostou muito de Flowers For Vases!
Há um certo tipo de comentário que me faz comichão. Pessoas que escrevem coisas como “esta música curou-me a depressão”. Das duas uma, ou estão a trivializar a saúde mental, ou estão a ser sinceros, o que é preocupante.
Contra mim falo, pois eu não era muito diferente aqui há uma década, mais coisa menos coisa. Colocava quase todo o sentido da minha vida no álbum seguinte de Avril Lavigne. E embora não me arrependa de ter feito parte – e ainda faço, de certa forma – dessa comunidade… eu exagerei um bocadinho no tempo que lhe dediquei. Hoje em dia os meus interesses são muito mais diversificados e tenho uma relação muito mais saudável com cada um deles. Tenho pena que isso não tenha acontecido mais cedo.
Em todo o caso, esta mentalidade coloca os artistas numa posição difícil – o que nos leva de volta a The Path.
Lorde chegou a dizer que tem dinheiro suficiente para se sustentar para o resto da sua vida. Pontos para a honestidade – é uma das poucas figuras públicas que o admite com todas as letras, apesar de nós, simples mortais, sabermos que muitas estão numa situação semelhante. Ella regressou porque continua a gostar de fazer música, mas esta não é a sua vida real. São umas férias estranhas da vida que leva na Nova Zelândia, com a família e os amigos, onde as pessoas não a reconhecem na rua e os paparazzi são praticamente inexistentes.
E sinceramente? Quem não faria o mesmo se estivesse no lugar dela? Quem não passaria os seus dias a nadar, a pescar, a passear na praia, a jardinar, tendo possibilidades para isso? Aliás, é mais ou menos o que muitos estão a optar fazer em países como os Estados Unidos na chamada Grande Demissão. O trabalho não é tudo na vida!
E no entanto…
Para uma artista que diz estar farta da vida de estrela pop, Lorde faz bastantes referências a momentos marcantes da sua vida de estrela pop neste álbum. The Path refere um dos Met Galas em que participou (sou a única aqui que não percebe o propósito do Met Gala?). California refere o Grammy que ganhou com Royals. The Man With the Axe refere as “centenas de vestidos” e “quadros emoldurados” que Lorde possui. Helen of Troy refere os Grammys de 2018, em que Lorde foi a única nomeada para álbum do ano que não pôde atuar em palco.
É como se dissesse:
– Olhem para mim, ser famosa é horrível! Estive nesta festa de pessoas ricas, ganhei este prémio, tenho montes de coisas bonitas mas ah! Não gosto nada!
Por outras palavras, é um bocado “pobre menina rica”, um bocado falta de noção. A própria Lorde admitiu que fala de uma posição de privilégio… mas estará assim tão consciente desse privilégio?
Uma das mensagens de Lorde tem pregado, aliás, tem me dado um certo mal-estar. A citação que tem repetido, de “como passamos os nossos dias é como passamos as nossas vidas”, a “arte de não fazer nenhum”, menos redes sociais e Netflix e mais ar livre.
Eu percebo a intenção, mas… Lorde acha que todos conseguimos escolher como passamos os nossos dias e as nossas vidas? É fácil para Ella fugir a tudo e passar os dias na praia. Vive na Nova Zelândia – país infame pelas suas paisagens e por ter sido dos melhores a lidar com o Coronavírus – e pode dar-se ao luxo de escolher quando trabalha.
Não tenho nada contra a maneira como Lorde passa os seus dias. Nem sequer me queixarei se ela decidir hibernar de novo durante anos, antes de lançar mais música. Mas ela tem de ter um pouco mais consideração por quem não pode fazer o mesmo.
E em defesa de Lorde… ela tem dúvidas. Talvez as referências todas sejam um reflexo disso mesmo, da sua ambivalência. California, que como vimos critica o estilo de vida de Hollywood, não deixa de incluir a frase “But everytime I smell tequila, the garden grows out in my mind again”. Mas o maior exemplo disso é Stoned at the Nail Salon.
Esta é outra das minhas preferidas neste álbum. Não sei se é considerada o segundo single oficial, mas foi a segunda música que ouvimos, quase um mês antes do resto do álbum.
Na minha opinião, Stoned at the Nail Salon é a melhor das músicas da segunda categoria e uma das melhores letras neste álbum. Funciona como uma sequela a Ribs – embora Lorde refira outra como sequela a esse tema – ao refletir sobre a passagem do tempo, o envelhecimento, a nossa própria mortalidade. Ao mesmo tempo, uma vez mais, fala sobre a necessidade de deixar a vida de estrela pop para trás… mas questiona-se se essa é a decisão certa.
Tenho uma teoria no que diz respeito à discografia de Lorde, à luz de Solar Power. Pure Heroine representa a vida mais calma, terra-à-terra, por vezes entediante que Lorde levava na Nova Zelândia em miúda, antes de lançar música. Melodrama, por sua vez, como toda a gente sabe, representa um estilo de vida mais intenso e frágil, de excessos e hedonismo – Lorde nunca o associou, preto no branco, ao estilo de vida do mundo da música, mas penso que se pode fazer esse paralelismo.
De uma maneira engraçada, em Solar Power, Lorde está a renegar Melodrama e a voltar a Pure Heroine. Em Royals, ela dizia que não queria saber das jóias, dos hotéis, etc – embora não deixasse de fantasiar com Cadillacs e com a realeza. Em California, ela já experimentou as jóias e os hotéis, mas fartou-se. Em Still Sane, Lorde receava entrar no mundo da música. Em Bravado, estava disposta a engolir esses medos para poder perseguir as suas ambições. Músicas como The Path e The Man with the Axe indicam que essas ambições já não valem o esforço.
Regressando a Stoned At the Nail Salon, a segunda estância é uma referência bastante clara a Melodrama. Alguns fãs viram um paralelismo na primeira frase (“Got a memory of waiting in your bed wearing only my earrings”) com The Louvre (“Half of my wardrobe is on your bedroom floor”) e Lorde confirmou que estes se referem à mesma relação.
Por outro lado, o verso “We’d go dancing all over the landmines under our town” parece-me uma referência a Homemade Dynamite. Stoned at the Nail Salon (e também Secrets From a Girl (Who’s Seen it All)) coloca um ponto final definitivo neste capítulo da vida de Ella – embora esta admita que ainda nutre sentimentos pelo amado em questão.
Na verdade, soa um pouco mais como se Lorde estivesse a tentar convencer-se a si mesma que, de facto, está na hora de abrandar, de assentar. É um daqueles casos de, como a própria Ella diz “the grass is always greener on the other side” – esta expressão não tem uma equivalente em português. Só mesmo a canção do António Variações “Estou bem aonde eu não estou, porque eu só quero ir aonde eu não vou”. É uma coisa muito humana, eu mesma sou culpada disto.
Ou então, como diz a letra, isto pode ser apenas Lorde ganzada. Não sei se é para levarmos o título da música à letra – acho que ambas as hipóteses são válidas. Podem ser simples devaneios existenciais, ou se calhar Ella costuma fumar um charro enquanto lhe arranjam as unhas. Houve quem tenha imaginado a cena…
Gosto muito da sonoridade de Stoned at the Nail Salon. A interpretação de Lorde lembra-me Joan Baez em certos momentos – também gosto dos vocais em coro. A instrumentação é simples, mas resultou bem (pena não poder dizer o mesmo de outras músicas da segunda categoria neste álbum…). Gosto das notas de guitarra que soam de vez em quando – por exemplo, depois do primeiro refrão – dando à música um tom sonhador que condiz com a letra.
Obviamente.
Já fui falando aqui e além sobre a letra de California, falta falar sobre a sonoridade. Esta até é interessante: parecida com muitas da segunda categoria, embora tenha percussão, umas notas de piano aqui e ali, aquelas notas de guitarra sonhadoras como em Stoned at the Nail Salon. Ainda assim, não chega para me entusiasmar.
Para encerrar o tema da fama em Solar Power, falemos sobre Helen of Troy, uma faixa que não faz parte da edição-padrão do álbum.
Mas devia fazer. Ambas as faixas extra deviam fazer.
Instrumentalmente, não tenho muito a dizer. Inclui-se na segunda categoria, não é das melhores, mas evita a maior parte das falhas desse grupo. Não soa incompleta ou enfadonha, como outras que veremos adiante.
Sendo uma faixa extra, Lorde nunca falou sobre ela até agora – tanto quanto sei, pelo menos. Não existe nenhuma interpretação “oficial” da letra. Para mim, Helen of Troy é sobre o poder disruptor do estatuto de Lorde como celebridade – tanto para ela como para os demais.
Como vimos antes, a letra começa por referir a nega que recebeu nos Grammys. Dá a entender, de seguida, que virou as coisas a essa vida, pelo menos em parte, por causa de indignidades como essa. Refere também ocasiões em que Lorde concentra as atenções em si mesma, mesmo sem o desejar, dando azo a ciúmes e ressentimentos. Lá está, cidades viradas do avesso por causa dela, como Helena de Tróia.
Existe espaço em Helen of Troy para Lorde dar conselhos a si mesma: para não descarregar nos demais, para não ser demasiado dura consigo mesma. E falando sobre isso…
Lorde tem falado de Secrets From a Girl (Who’s Seen it All) como uma sequela a Ribs – ao ponto de ter pegado em dois acordes dessa música e trocado a ordem, para criar este tema novo. Mais: Secrets é uma carta da Ella atual à versão de si que escreveu a letra Ribs.
Temos novamente uma referência aos temas de Melodrama – para dizer que Lorde já não comete os excessos de antes (“Dancing with my girls, then having two drinks and leaving”) e encorajando o seu eu passado a fazer o mesmo. A outra estância, por outro lado, é toda ela uma referência à morte de Pearl, o cão de Lorde. Ella terá escrito esta letra pouco depois da perda e, nesta parte, tenta consolar-se a si mesma.
Musicalmente, é uma música da primeira categoria. Tem momentos mais minimalistas, mas depois surgem as guitarras acústicas e as baterias, criando um som luminoso. Exatamente aquilo que esperaríamos de um álbum inspirado pelo sol.
Ainda assim, não consigo gostar muito de Secrets. Compreendo a intenção, até encontro alguma sabedoria na letra – o verso “everybody wants the best for you, but you gotta want it for yourself” aplica-se demasiado bem à minha vida – mas soa um bocadinho lamechas, sobretudo para Lorde. Suponho que seja inevitável em qualquer forma de carta ao nosso eu do passado – quando eu mesma o fiz, também saiu lamechas.
Na verdade, eu até era capaz de gostar da música se cortassem a narração de Robyn, na parte final. Esforça-se um bocadinho de mais para entrar na moda da saúde mental dos últimos anos. Muitos fãs têm comentado que, se era para ter Robyn na música, que fosse um dueto a sério, cantado. Eu não conheço o trabalho da cantora, não posso opinar, mas se resultasse em algo melhor…
Outra música de que não gosto é The Man with the Axe, sobretudo por causa da sonoridade. Lorde referiu que este tema começou por ser um poema – mais valia que ela o tivesse declamado. A maneira como ela o cantou é uma seca. É outra música da segunda categoria, quase só com guitarra, mas os vocais são demasiado graves e lentos, sem nada que cative o ouvinte.
Esta música precisa de intensidade, de vida: vocais mais fortes e um tudo nada mais rápidos e instrumentação mais completa, reforçando os discretos elementos de jazz e blues que noto.
Ao menos a letra é semi-interessante. Tirando os aspetos que já fomos referindo, sobre a sua vida de estrela pop, The Man with the Axe é uma canção de amor para o atual parceiro (possivelmente noivo) de Lorde. A letra confirma que é um homem bastante mais velho – segundo os rumores já estará na casa dos quarenta.
A mim faz-me confusão, confesso. Depois do divórcio de Hayley e das múltiplas situações que terão inspirado Your Power, de Billie Eilish, romances entre mulheres jovens e homens muito mais velhos fazem soar alarmes. Ella, ainda por cima, é apenas um ano mais velha que a minha irmã e eu não estou a ver a minha irmã namorando ninguém com quarenta anos ou mais.
Aliás, nem eu me vejo a mim própria namorando ninguém com quarenta anos ou mais. E já tenho trinta e um.
Dito isto, conheço casais com uma grande diferença de idade do homem para a mulher e que funcionam. Costuma-se dizer que as mulheres amadurecem mais depressa – eu tenho as minhas dúvidas. Acho que, na verdade, a sociedade é muito mais indulgente para rapazes e homens do que para raparigas e mulheres.
No caso específico de Lorde, ela sempre se caracterizou por ser madura para a idade (ao ponto de ter circulado uma teoria da conspiração que defendia que Ella, na verdade, está na casa dos quarenta). Além disso, recentemente, a jovem queixou-se que a fama obrigou-a a crescer demasiado depressa. Diz mesmo que os amigos a veem hoje como uma mãe ou mesmo como uma avó.
Nesse aspeto, faz sentido que ela prefira uma relação com alguém mais velho.
Enfim, se resulta com ela… Só espero que, daqui a uns anos, Lorde não esteja a cantar a sua versão de Your Power.
Muito bem, ficamos por aqui para já. Amanhã continuo. Obrigada pela vossa visita.