Antes de falarmos sobre a versão de Fronteira do Mundo Digital, queria assinalar algo. Esta é a primeira temporada de Digimon a passar pouquíssimo tempo no Mundo dos Humanos (vou tentar usar este termo em vez de “Mundo Real”). Parte do primeiro episódio, o notável episódio 21 e os últimos.
Isto não é necessariamente um defeito, mas existem possibilidades que se perdem. Não conhecemos as famílias nem os amigos dos Escolhidos tirando em flashbacks – algo a que havemos de regressar mais tarde – e não temos aqueles elementos de slice of life de que gostava tanto em 02 (sobretudo em miúda) e Tamers. A única altura em que o Mundo dos Humanos se torna relevante é mesmo no fim, quando os vilões já tinham destruído o Mundo Digital. Literalmente.
Um aspeto curioso desta versão do Mundo Digital é o Digicódigo. Essencialmente o material genético dos Digimon, dos lugares em si, do próprio corpo dos Escolhidos – sublinhe-se “corpo”. É um caso de simplicidade que funciona, de menos que é mais. Pode-se argumentar que, a partir de certa altura, o Mundo Digital de Adventure se tornou demasiado complexo – uma consequência natural de múltiplas sequelas. Cada história nova nesse universo tinha de introduzir novas regras, que levassem a novos conflitos… mas isso daria azo a um texto por si só.
Os Escolhidos passam grande parte de Fronteira a capturar o Digicódigo de antagonistas e a purificá-lo. E os vilões – em particular os Cavaleiros Reais nos últimos episódios – procuram roubar esse Digicódigo para alimentar Lucemon na sua tentativa de regresso à vida. Salvar o Mundo Digital ganha um sentido literal – as ações dos vilões fazem com que a terra literalmente se desintegre debaixo dos pés do elenco.
Em Fronteira, aliás, o Mundo Digital chega a ser completamente obliterado. Literalmente desaparece, todos os Digimon morrem, o que infelizmente não é tratado com a devida seriedade. É certo que, depois de derrotados os maus da fita e recuperados os dados, reconstrói-se tudo de novo, mas mesmo assim. Só temos um momento relativamente breve de desespero no último episódio… mas isso é assunto para outra parte da análise.
Além disso, sim, o Mundo Digital é reconstruído, todos os Digimon renascem mas… eles renascem como Bebés. Ou quanto muito no nível Infantil. Ainda levará algum tempo até as coisas regressarem à normalidade – ou talvez se estabeleça um novo normal.
Outro elemento característico de Fronteira diz respeito aos Trailmon, cujas linhas percorrem todo o Mundo Digital. Sempre gostei de comboios e os Trailmon são engraçados. Acho fixe que a porta de entrada para o Mundo Digital seja numa estação de comboios. Gostei daquele episódio filler dedicado a uma corrida entre Trailmon – era inevitável.
Não gostei tanto do outro filler que envolve um Trailmon. Para começar, surge numa altura em que o foco está no drama entre Kouji e Kouichi, em pleno Continente da Escuridão (mais sobre isso já a seguir). Se tínhamos de ter um filler nesta altura, teria de ser uma coisa leve, algo que aliviasse de uma das partes mais sombrias da temporada.
O que é que os digiguionistas de Fronteira escolheram, de todos os enredos possíveis? Puseram metade do elenco a prestar cuidados paliativos a um Trailmon. Para além de deprimente, não vai a lado nenhum pois o raio do Trailmon nem sequer morre!
Fronteira às vezes é bizarro.
Em teoria, o mundo Digital de Fronteira tem zonas diferentes para cada elemento – uma zona para o fogo, a água, o vento, etc. Na prática, a ideia não tem grande expressão. Nas poucas zonas elementares que visitamos, o elemento que representam é um mero aspeto estético – se é mais do que isso, a narrativa não se foca nele. Os cenários são cenários como quaisquer outros, no geral.
A única zona explorada mais a fundo é o Continente da Escuridão, mas aí temos o problema oposto: passamos demasiado tempo lá. Quase vinte episódios, sempre sob céu noturno, literalmente na sombra. Já tinha sido cansativo em Bokura No Mirai, aqui é ainda pior.
À parte isto tudo, gostei de algumas localizações por onde a história passa, o ligeiro worldbuilding, mesmo que contribua pouco para o enredo. A escola com a professora Togemon e os bebés todos. O mercado de Akita, com cameos de múltiplos Digimon de temporadas anteriores. Os castelos de Ophanimon (incluindo a biblioteca) e Seraphimon. As luas. Este Mundo Digital tem três luas e nós visitamo-las!
Além de que o episódio em que eles estão presos na lua e experimentando diferentes formas de regressar à “Terra” é hilariante. Por outro lado, a pobre Della Duck demorou mais de dez anos a escapar da lua, quem ri por última aqui…?
Por falar de episódios, no próximo texto iremos analisar o enredo de Fronteira. Como o costume, obrigada pela vossa visita. Até à próxima!
Um aspeto que Digimon Tamers possui em comum com a sua antecessora, 02, é o facto de uma boa parte da ação decorrer no Mundo Real. Até pelo menos meio da temporada, os protagonistas – designados por Tamers ou Digitreinadores ou simplesmente Treinadores (mais sobre isso adiante) – levam a vida que qualquer criança da idade deles leva. Vão à escola, brincam com os amigos no parque local, passam tempo com a família.
Ao mesmo tempo, possuem um companheiro Digimon e com ele combatem outros Digimon, como uma atividade extracurricular (a brincar a brincar, eu incluí-lo-ia no meu CV). A diferença é que o elenco de 02 visitava o Mundo Digital em quase todos os episódios, tirando nos atos finais. Em Tamers, por sua vez, só quinze episódios decorrem no Mundo Digimon.
Quando falamos do Mundo Real em Tamers, falamos sobretudo de Shinjuku (no universo de Adventure falaríamos de Odaiba e Hirogarioka). Muitas das localizações onde decorre a ação de Tamers existem mesmo, como a rua onde Takato vive, a escola de Takato e Jianliang, o parque (incluindo o casinhoto onde Guilmon vive), as torres que, em Tamers, servem de sede ao Hypnos, entre outras, como dá para observar no vídeo abaixo.
Uma pessoa fica com vontade de ir ao Japão ver estes sítios todos. Se não fosse o preço. E os voos intermináveis. E o jet-lag…
Um aparte sobre a sede do Hypnos: o episódio em que as torres caem foi emitido pela primeira vez a… 9 de setembro de 2001. Se a série tivesse começado uma semana mais tarde, este episódio provavelmente nunca teria sido emitido – ou, pelo menos, alterariam a parte da destruição da sede do Hypnos.
Mas falemos sobre o Mundo Digital – que é muito diferente do que conhecíamos em Adventure. O primeiro Mundo Digimon a ser-nos apresentado era um mundo maioritariamente unidimensional e estático. O Mundo Digimon de Tamers é multidimensional, quase um ser vivo. Possui várias camadas e múltiplos mini-universos que servem de habitat a diferentes Digimon. Encontra-se em constante expansão.
Segundo o site de Konaka, a ideia era mesmo que o Mundo Digital tivesse níveis diferentes de profundidade, um pouco à semelhança do Inferno de Dante. Assim, o nível mais superficial será deserto, o primeiro sítio que os humanos conhecem – se não considerarem aquelas estranhas zonas de transição entre o Mundo Real e o Digital. Aí, o Mundo Real é visível sob a forma de uma esfera no céu. Por sua vez, o nível mais profundo é a residência das Bestas Sagradas.
Outra característica do Mundo Digital é o facto de ser movido a perceção. No universo de Adventure brincaram um bocadinho com esse conceito, pelo menos no que toca ao Mundo dos Sonhos e ao Mar Negro, mas em Tamers é diferente.
Quando as crianças lá entram (e, aqui, não é obrigatório ser-se um Treinador, qualquer criança pode ir ao Mundo Digimon) transformam-se por completo em dados. Não possuem necessidades fisiológicas, como fome ou sede, a menos que elas mesmo tenham vontade de comer ou beber. Só não conseguem respirar debaixo de água se acreditarem nisso – se, por outro lado, acreditarem que conseguem respirar debaixo de água, é isso que acontece. Chega-se ao extremo de se trazer uma criança extra ao Mundo Digimon, apenas com um mero desabafo de saudades.
Faz sentido assim, que só crianças ou, pelo menos, pessoas com mente jovem sejam capazes de ir ao Mundo Digital: visto ser necessária uma mentalidade aberta e imaginativa. Pergunto-me se eu conseguiria ir…
Conforme referi antes, o Mundo Digital está em constante mudança, crescendo em paralelo com o desenvolvimento dos sistemas informáticos do Mundo Real. Se o Mundo Digimon já estava assim aquando dos eventos de Tamers – por volta do início dos anos 2000 – como estará nos dias de hoje, em que já nem sabemos viver sem Internet?
Se o Mundo Digital de Adventure era um mundo de magia e maravilha, pelo menos à primeira vista, o Mundo Digital de Tamers chega a ter contornos de distopia: zonas com, por exemplo, ventanias quase permanentes, fluxos de dados que surgem do nada e transportam os incautos para outro local aleatório, motas de controlam a mente de quem tenta conduzi-las (juro, o momento em que o Guilmon aparece possuído a conduzir a mota assustou-me quase tanto como os pesadelos de Juri).
Sim, é uma distopia, mas sinceramente, quando ligo o Telejornal e vejo o estado do nosso mundo, parece-me um paraíso.
De qualquer forma, o carácter implacável do Mundo Digital deriva sobretudo dos seus habitantes, conforme veremos na próxima publicação.
Falemos um pouco dos Cenários. Não me vou alongar muito no que toca ao Mundo Digimon visto que este é o mesmo que em Adventures, expandindo-se apenas num aspeto ou outro. Por outro lado, em 02, é-nos revelado que existem outros mundos/dimensões paralelas, para além do Mundo Real e do Mundo Digital, embora só cheguem a falar de dois deles: o Mar Negro e o Mundo dos Sonhos.
De 02, eu fiquei com a ideia de que o Mar Negro é a fonte de toda a Escuridão do Mundo Digimon (e não só, suponho...). No entanto, não encontro informação oficial que confirme, preto no branco (nopun intended) esta teoria. O Mar Negro é governado por Dragomon, cujos súbditos, Divermon, se referem como o seu "deus das profundezas". De uma maneira paradoxal, Kari, a Encarnação da Luz, é particularmente vulnerável à influência deste Mundo. Por outro lado, o Mar Negro serve de catalisador à transformação de um Ken deprimido e solitário no Imperador Digimon. O Mundo dos Sonhos, por sua vez, acaba por ser a antítese do Mar Negro no sentido em que dá vida a emoções, sonhos e desejos. O Mundo Digimon acaba por ser formado a partir de elementos tanto do Mar Negro como do Mundo dos Sonhos à mistura com dados digitais, tal como já tinha explicado aqui.
Eu sei que isto parece muito vago e resumido, mas a verdade é que isto é tudo o que sabemos sobre estes mundos. O Mar Negro aparece algumas vezes ao longo de 02, mas sempre num plano secundário. No fim do episódio 13, o primeiro em que visitamos o Mar Negro, a ideia que fica é que Dragomon será um vilão futuro, que as Crianças Escolhidas terão de enfrentar depois de vencerem o Imperador Digimon. No entanto, este nunca mais é referido.
Por sua vez, o Mundo dos Sonhos só aparece no final da temporada, embora isso até faça o seu sentido: um mundo em que os desejos se tornam facilmente realidade não tem grande potencial em termos de história - pelo menos, não no universo de Digimon. Mesmo assim, sobretudo no que toca ao Mar Negro, é apenas mais um exemplo de conceitos mal-desenvolvidos em 02.
Mudando de assunto, ao contrário do que acontece em Adventure, aqui as Crianças Escolhidas (exceto Ken) não chegam a viver no Mundo Digimon, tirando durante três ou quatro episódios. As Crianças vão salvando o Mundo Digital mais ou menos em jeito de atividade extracurricular. Tal como já tinha escrito antes, eu gostava desse aspeto quando tinha doze anos. Por outro lado, este carácter um bocadinho facultativo da salvação do Mundo Digital faz-nos questionar as motivações das novas Crianças Escolhidas. Sobretudo quando Yolei - que, em muitos aspetos, é uma Mimi 2.0 - depressa revela insegurança e aversão à violência. E mesmo Cody, que chega a trocar uma visita ao Mundo Digimon por... uma aula de kendo. As primeiras Crianças Escolhidas foram, literalmente e sem cerimónias, atiradas para o Mundo Digimon. Mesmo que não quisessem fazê-lo, tiveram de lutar para sobreviverem. Desta forma, quando descobriram que o seu dever era salvar o Mundo Digital, já existia uma certa ligação àquele mundo e, de qualquer forma... salvá-lo permitir-lhes-ia regressar a casa. Aqui não existiam problemas de motivação, enquanto que, em 02, tirando T.K e Kari, a única motivação parece ser, apenas, o cliché de fazer o que está certo.
Em 02 existe, ainda, um maior enfoque nas tecnologia e informática - outro dos aspetos que mais me agradou quando tinha doze anos. Para começar, passa a ser possível entrar no Mundo Digimon a partir de um computador. Por essa altura, sempre que passava por um computador, na escola ou noutro sitio qualquer, divertia-me pensando que, enquanto outros viam meros monitores, em via passagens para o Mundo Digital. Ainda existiram ocasiões em que pegava num D3 (os dispositivos digitais em 02) imaginário, encostava-o aos monitores e exclamava para mim própria: "Porta digital aberta!".
Se a história decorresse nos dias de hoje, talvez fosse possível entrar no Mundo Digimon com maior facilidade, através de um smartphone - provavelmente com uma aplicação especial para o efeito.
Já que falo em smartphones, quero falar também dos D-Terminais - outros dispositivos usados pelas Crianças, embora não seja clara a maneira como estes foram obtidos. Numa altura em que os SMS estavam apenas a começar a estar na moda, com cada caracter pago a peso de outro, em que ter uma conta de e-mail em meu nome e só em meu nome era um dos meus maiores orgulhos (pensar que, hoje em dia, miúdos de doze anos já têm Facebook, Twitter, Instagram, etc...), eu invejava as Crianças Escolhidas por poderem trocar mensagem entre si em qualquer sítio, a qualquer hora, através de dispositivos manuais. Algo que hoje é trivial, quer com telemóveis dos mais baratos, quer com o último iPhone, que dispõe de inúmeras aplicações diferentes para o efeito.
É tudo por hoje, na próxima entrada falaremos do Enredode 02. Continuem ligados.