Hoje queria começar por falar da banda sonora de Tamers. Conforme já referi várias vezes aqui no blogue, a música é uma das melhores partes de Digimon. As aberturas, os encerramentos, os temas de digievolução e por aí fora. Nunca falta material para os podcasts do Odaiba Memorial Day PT – e como estes ocorrem sobretudo em julho e agosto, ultimamente a música de Digimon soa-me a música de verão.
Também ajuda o facto de ter passado as minhas férias a ouvir música de Digimon, sobretudo de Tamers, enquanto passeava na praia.
E, claro, um dos pontos altos dos encontros do Odaiba Memorial Day é sempre cantar estes temas em coro com outros fãs. Com ou sem acompanhamento instrumental, com ou sem bebida – sim, este ano o António trouxe vinho do Porto. Diz que ficou com pena de não ter aberto a garrafa mais cedo, para começar logo a cantoria… mas eu pelo menos não precisava.
É um crime nenhum destes temas estar no Spotify. No dia em que adicionarem todo o catálogo de Digimon a esta plataforma – incluindo versões acústicas/memoriais/alternativas, bem como as versões em português – eu adiro em permanência ao Premium.
Ora, esta introdução já vai longa, falemos então sobre a banda sonora de Tamers. Gosto de The Biggest Dreamer mas, no que toca a aberturas, fica atrás de Butter-fly e Target nas minhas preferências.
Por outro lado, este é capaz de ser o único caso em que, na dobragem portuguesa, tanto a interpretação das aberturas e dos encerramentos não ficou nada má. A versão portuguesa de The Biggest Dreamer é bastante popular na nossa comunidade de fãs. Sofre do mesmo problema da versão portuguesa de Butter-fly, ou seja, tem uma mulher tentando cantar como um homem. No entanto, gosto das pequenas variações na melodia, dão personalidade. O último “Digimon!” no final foi bem sacado.
Na verdade, gosto mais dos encerramentos. Tanto das versões originais como as portuguesas – um shout-out para a Teresa Macedo, que interpretou as versões em PT-PT (as duas, certo?). Estas músicas não são fáceis de cantar.
Durante muito tempo, não consegui escolher uma preferida entre os dois encerramentos.– mesmo agora a escolha não está gravada em pedra – mas acho My Tomorrow irresistível. Tem uma musicalidade menos convencional, conseguindo alternar entre um ritmo mais rápido e alegre e um mais pausado e sentido sem soar desconjuntado. A melodia é tão contagiosa como as melhores de AiM.
Tenho um apreço particular pela versão memorial – que conheci quando o António a pôs a tocar num dos podcasts. Esta é cantada pelas vozes das Treinadoras, respetivos Digimon e Culumon. Sim, isso inclui o Leomon. Soa engraçado no meio de tantas vozes femininas.
Esta versão, aliás, bem como a nossa cantoria no Odaiba Memorial Day (eu era uma das únicas meninas), faz-me ter pena por não existirem mais versões masculinas de temas da AiM. Soam bem.
O segundo encerramento de Tamers é o preferido dos fãs – pelo menos os da nossa comunidade portuguesa. Days ~Aijou to Nichijou~. Em contraste com My Tomorrow, mais leve, Days é uma power ballad com um travo melancólico – que até condiz com o tom da segunda metade da série, sobretudo nas últimas duas partes. Mesmo a letra, sobretudo na versão portuguesa, parece aludir aos eventos finais de Tamers.
Não admira que seja tão popular.
Depois, temos os habituais temas de digievolução. E, vá lá, o das Cartas Escolhidas. Nenhum deles é um Brave Heart, claro, porque esse tema estará sempre ensopado até aos ossos com nostalgia, mas todos cumprem o seu papel.
Gosto muito de Slash. Tem, à semelhança de Butter-fly e Target algumas influências de punk pop que me dão vontade de ouvir estas canções em contexto de concerto – a sério, quando oiço Slash imagino sempre o cantor em palco dando headbangs ao estilo deHayley Williams pré-After Laugher (o que, pelos vistos, dá cabo das costas de qualquer um ). Gosto um bocadinho menos do tema de digievolução, mas mantém-se uma boa tradição de 02: sequências digievolutivas sincronizadas com a música.
Por sua vez, foi uma excelente ideia criarem três versões diferentes para One Vision, a música das formas Extremas – uma para cada um dos protagonistas. A minha preferida é a da Sakuyamon – obviamente.
Depois, temos as chamadas Insert Songs e/ou Character Songs/músicas de personagens. As músicas de Culumon – Culu Culu Culumon – e do Beelzebumon – Black Intruder que, agora vejo, parece o avô japonês de Uptown Funk – são muito giras. Também gosto imenso de Fragile Heart, a música que soa quando o Culumon usa a Digievolução Brilhante e tudo o que se mexe passa ao nível Extremo.
Já conhecia este tema antes de ver Tamers, dos podcasts do Odaiba Memorial Day Portugal. Sempre a achei bonita, mesmo desconhecendo o contexto: misturando órgão com guitarra acústica e percussão leve, vozes de crianças.
3 Primary Colors é interpretada pelos mesmos atores que dão voz ao trio de protagonistas (mais sobre isso já a seguir). Existe, no entanto, uma versão (mais) acústica, alternativa, interpretada por Onta Michihiko, AiM e Wada Kouji, que em nada fica atrás da original.
Dizia eu que 3 Primary Colors é cantada pelas vozes de Takato, Ruki e Jian. Se olharmos para a letra (ou, vá lá, as traduções da mesma), vemos que cada um canta sobre os conflitos pessoais (ou pelo menos parte deles) que são explorados na história. Takato e a sua inexperiência, Ruki e o seu carácter solitário, Jian e a sua relutância em lutar.
No refrão, os três comparam-se a si mesmo às três cores primárias – e, de facto, cada um dos três protagonistas tem uma cor associada às suas digievoluções. A de Takato é o vermelho, a de Ruki é o azul, a de Jian é o verde. Como aprendemos na Físico-Química do oitavo ano (ou do sétimo?), estas são as cores primárias da luz – não as da arte, o ciano, o mangenta e o amarelo.
Um aparte rápido: num dos podcasts deste verão, o António a certa altura referiu que, mais para o final, passaria “a música dos tinteiros” em especial para mim. Demorei uns bons quarenta e cinco minutos a perceber do que estava a falar…
Como dizia, os protagonistas equiparam-se a cores primárias. De início não se querem misturar, querem conservar a pureza das suas cores. Mas acabam por reconhecer que, se tiverem coragem para se unirem uns aos outros poderão criar um espectro inteiro de cores novas resplandecentes.
É uma metáfora linda, mas não acho que faça assim tanto sentido no contexto de Tamers. Mesmo tendo demorado a formar equipa, aqui os conflitos entre humanos, sobretudo entre os protagonistas, são relativamente poucos. Pelo menos quando comparados com o universo de Adventure. Mas, não sejamos hipócritas, 3 Primary Colors merece que se ignore a ligeira incoerência.
Enquanto estava a escrever o primeiro rascunho deste texto, descobri uma versão espanhola de 3 Primary Colors, cantada por fãs. Não é nada má – só acho que a voz de Jian desafina um bocado. Faz-me sonhar com uma versão portuguesa… Outra coisa que percebi há pouco tempo é que o tema do anime de Pokémon baseado na música de créditos dos jogos da segunda geração tem uma emotividade muito parecida à de 3 Primary Colors.
O que torna tudo tão agridoce que dá vontade de chorar, para além da instrumentação, é o facto de 3 Primary Colors soar durante o traumático final de Tamers. Já fui falando sobre este momento ao longo desta análise: o facto de a ativação do Shaggai, para neutralizar o D-Reaper, implicar a expulsão dos Digimon do Mundo Real.
Ninguém dá duas horas aos miúdos para se despedirem dos seus companheiros, como Adventure – nem dois minutos, quanto mais duas horas. Os Digimon são-lhes literalmente arrancados dos braços. Naturalmente, todos choram que nem umas Madalenas, desde Shaochung a Jiang-yu, audiência inclusive.
É que ninguém merece. Ninguém! Depois de tudo o que estes miúdos passaram para se livrarem do D-Reaper, é assim que o destino os recompensa? Dito isto… a verdade é que o imbróglio do D-Reaper complicara-se tanto que nunca poderia ter uma solução fácil. Como vimos antes, em Tamers não há soluções fáceis.
Uma pessoa quase fica com raiva aos miúdos de Adventure. Eles também tiveram a sua dose, é certo, sobretudo em Tri – tanto os oito originais de Adventure como o elenco de 02 – mas não foi pior que aquilo por que os miúdos de Tamers passaram. No fim, tiveram direito a conservar os seus Digimon até à idade adulta e mais além – ao contrário de Takato e dos outros.
Em todo o caso, nos últimos segundos em que estão juntos, os miúdos e os Digimon trocam promessas de que se voltarão a ver, mais cedo um mais tarde, de uma forma ou de outra. Mais sobre isso adiante.
Antes de cair o pano, há tempo para um breve epílogo. Nada do género de 02, atenção, apenas algumas cenas que terão ocorrido algum tempo depois – alguns meses, no máximo. Vemos Takato com os seus colegas de turma – Juri, Hirokazu e Kenta incluídos – todos aparentemente bem. No que toca a Juri é um alívio. Temos também um vislumbre rápido de Yamaki, na padaria dos pais de Takato.
É uma pena não mostrarem nem Ruki, nem Jian, nem Shaochung, nem mesmo Ai e Makoto. Não dá para saber como estarão a lidar com a separação. Bastavam dois segundos de cada um deles, um vislumbre de Jian e a irmã com o pai, de Ruki com a mãe e a avó, de Ai e Makoto a brincar, quiçá fazendo desenhos de Impmon.
Um dia, Takato passa pelo casinhoto onde Guilmon vivia. Vislumbra-se um DigiGnomon no céu e, de facto, quando o jovem entra no casinhoto, vê aquilo que parece ser uma brecha para o Mundo Digital.
E é assim que termina Tamers: com a vaga esperança de que o reencontro não seja de todo impossível.
A dobragem portuguesa tem o mau gosto de mostrar imediatamente imagens de Digimon Frontier. Nem sequer tem a delicadeza de passar os créditos finais. Pelas Bestas Sagradas, este foi um final doloroso, de uma série que teve momentos extremamente sombrios! Deem-nos um minuto antes de partirmos para outra. Outra em que, ainda por cima, nem sequer há companheiros Digimon!
Falta de noção…
Queria agora falar um pouco sobre os CDs Drama (ou CDs Dramas? Qual é o plural correto?) que explicam o que acontece após os eventos de Tamers – isto é, partindo do princípio de que fazem parte do cânone oficial.
Segundo Message in a Packet, que decorre cerca de um ano após o final de Tamers, Takato tentou atravessar a brecha que vimos na cena final de Tamers, mas chocou com a firewall criada pelo Hypnos para cortar a passagem de um mundo para o outro. Em todo o caso, Jian planeia seguir a carreira do pai e procurar maneira de regressar ao Mundo Digital. Pelo meio, arranja uma forma de os Treinadores gravarem mensagens de voz para enviarem aos seus companheiros Digimon.
Confesso que estou arrependida por não ter lido a tradução deste CD Drama antes da preparação deste texto. Message In a Packet está recheado de pistas importantes sobre o desenvolvimento dos miúdos. Algumas são coisas que já sabíamos ou podíamos deduzir dos eventos de Tamers. Outras dão indicações do impacto que a reviravolta final da série teve no elenco.
Por exemplo, para começar, gostei de saber que Juri deixou uma mensagem tanto para Culumon como para Impmon. Em relação à mensagem para o primeiro, achei curiosa a maneira como a jovem se revê em Culumon: uma criatura amorosa, que se dá bem com toda a gente, embora não tenha um melhor amigo e ande muitas vezes sozinho.
Acredito, no entanto que Juri está a projetar-se em Culumon. Sim, o pequenote tem algumas coisas em comum com ela: ambos são seres que escondem muito por detrás da sua fronte amigável. Mas a mim – e posso estar enganada – nunca fiquei com a impressão que Culumon se sentisse sozinho, como Juri. Talvez antes de conhecer Takato, Jian e os outros humanos, mais os respetivos companheiros Digimon; talvez nos períodos em que esteve separado dos Treinadores, no Mundo Digital. Tirando isso, Culumon sempre me pareceu satisfeito por ser o companheiro de toda a gente e de ninguém em particular.
Em relação à mensagem para Impmon, é um dos casos em que não é dito nada que surpreenda por aí além. Juri deixa uma palavra sobre Ai e Makoto, no final, o que me faz pensar se Jian se lembrou deles para estas mensagens. Talvez não se tenha lembrado, talvez até se tenha lembrado, mas não conseguiu localizar os dois irmãos.
É capaz de ser melhor assim. Ai e Makoto são muito pequeninos. Talvez não comprendessem bem a intenção daquelas mensagens e tudo aquilo ainda os deixasse ainda mais tristes.
Por sua vez, Ruki foi quem reagiu pior à separação, tendo sido a última a aceitar gravar a sua mensagem. Não me surpreende. Vimos antes, no teto dedicado à jovem, que Ruki construíra uma boa parte a sua identidade em torno dos Digimon. De início só lhe interessava ganhar combates, primeiro no jogo de cartas, depois com Renamon. Mais tarde, quando se Renamon se tornou a sua melhor amiga (na mensagem Ruki descreve-a como a irmã mais velha que nunca teve), essa identidade centrou-se nos propósitos mais heróicos de ser Treinadora.
É natural, assim, que Ruki se tenha sentido perdida durante algum tempo depois da separação. Não podia voltar ao jogo de cartas, pois este recordava-lhe demasiado Renamon (pergunto-me, no entanto, se Takato, Hirokazu e os outros ainda jogam, depois dos eventos de Tamers). É certo que nunca se deu melhor com a mãe e a avó, mas aos dez, onze anos, há coisas sobre as quais não falamos com adultos.
Por outro lado, o CD Drama dá a entender que Ruki ainda não convive muito com Takato e os outros. A jovem não consegue sentir a esperança que os outros sentem de voltar a ver os seus Digimon porque, da experiência dela, pessoas que partem não costumam voltar (sim Konaka, a ausência do pai de Ruki não tem nada a ver com o caso…).
Ruki não o sabe, mas tudo o que ela sente é normal. Quem é que sabe quem é aos dez, onze anos? Eu tenho quase o triplo da idade dela e só agora é que começo a descobrir. Ela e os amigos ainda nem sequer começaram a adolescência – não tarda nada as coisas vão ficar ainda mais confusas.
Em todo o caso, depois de despejar o que lhe vai na alma nesta mensagem, Ruki parece sentir-se melhor consigo mesma. É uma coisa de introvertidos como nós: estamos tão habituados a guardar tudo dentro de nós, a ficarmos presos nas nossas próprias cabeças. Esquecemo-nos que faz bem desabafar. Ruki conclui que ela, Renamon, Takato e os outros e respetivos companheiros Digimon são uma família, que um dia estariam juntos de novo e que, a partir daquele momento, tentaria ser melhor enquanto pessoa. Quero acreditar que Ruki cumpriu essa promessa – ou pelo menos que começou a conviver um pouco mais com Takato, Juri e os outros Treinadores.
Muitas das reflexões em Message in a Packet fazem-me pensar que uma sequela com uma premissa básica semelhante a Tri – isto é, alguns anos após os eventos de Tamers, o elenco com diferentes graus de dificuldade em aceitar a passagem do tempo e em deixar o passado no passado – poderia funcionar. Podiam manter a limitação de os Digimon não poderem regressar ao Mundo Real – era uma boa desculpa para a história decorrer quase toda no Mundo Digital, desenvolvendo e explorando um pouco esse mundo.
É só uma ideia. Qualquer sequela de Tamers teria de ser pelo menos co-escrita por Konaka (o poster acima não é oficial, é uma fanart). E a verdade é que... ele já teve algumas ideias.
O que nos leva ao segundo CD Drama, lançado no ano passado, escrito por Konaka: Digimon Tamers 2018. Este decorre dezoito anos após os eventos de Tamers, quando os protagonistas já têm vinte e oito anos (eles nasceram em 1990, como eu!). Os protagonistas é como quem diz… reencontramos Jian, Ruki e Juri. Takato, no entanto, desaparecera misteriosamente da face da Terra (possivelmente no sentido literal da expressão) cerca de um ano antes.
Com uma nova ameaça vinda do Mundo Digital, Nyx (o novo Hypnos) cria uma réplica de Takato aos treze anos de idade. Este reencontra Jian e Ruki já adultos. Os três depois reúnem-se com Guilmon e Terriermon… mas não com Renamon. É então que a nova ameaça se materializa no Mundo Real – o Malice Bot, uma criatura nascida na chamada Dark Net, ainda mais poderosa que o D-Reaper. Na cena final do CD Drama, Renamon aparece e aparenta estar de alguma forma envolvida com esta nova criatura.
Estranho? Confuso? Também achei. Parece, lá está, conceito para uma sequela a Tamers, o guião de um episódio-piloto que nos atira logo para o clímax da ação. Como se, por exemplo, Tri tivesse começado com Ordinemon aparecendo no Mundo Real. E a existência de uma réplica pré-adolescente de Takato reencontrando Guilmon, quando o Takato adulto e verdadeiro anda por aí algures é deliciosamente retorcida.
Gostava de ver uma continuação para esta história. Ou melhor: que fosse expandida para uma nova série, quer de OVAs ou de episódios semanais. No entanto, tanto quanto sei, não existem planos para isso. Nem para qualquer género de sequela a Tamers num futuro próximo. O foco da Toei parece estar noutro lado (mais sobre isso adiante). Fica esta ponta por atar. Uma ponta gigantesca, diga-se.
E com isto penso que já cobri todos os aspetos de Tamers que queria e mais alguns. Esta análise já vai em mais de trinta mil palavras e mesmo assim houveram coisas se que não falei, por um motivo ou por outro.
Penso que já deve ter ficado patente que eu adoro Tamers. Para além de ter todos os elementos que adoramos em Digimon – um elenco forte, tanto de humanos como de Digimon, que se desenvolve com a história, combates, digievoluções fixes, boa música – vai ainda mais longe e subverte expectativas. Tanto em termos de Digimon como de ficção em geral, sobretudo dirigida a crianças.
Não existe bem e mal claramente definidos. Os Digimon, como referido várias vezes, nem sempre são amigáveis e regem-se pela lei do mais forte. Figuras de autoridade cometem erros. Digimon morrem e não regressam à vida. Conflitos não se resolvem apenas num episódio – volto a repetir, em Tamers não há soluções fáceis. Finalmente, pode debater-se se isso foi o mais adequado para uma série dirigida ao público infantil, mas Tamers não teve medo de entrar em territórios sombrios.
Queria deixar uma nota para a dobragem portuguesa que, como dei a entender antes, está bastante boa na minha opinião. Já falei sobre a voz do Impmon e da Ruki (bem, suponho que neste caso devo chamá-la Rika) de passagem. As dobragens portuguesas em geral têm a mania de dar vozes mais próximas de vozes adolescentes, ou mesmo de adultos, a crianças bem mais novas. Makoto, por exemplo, não tem mais de três anos mas fala como se fosse dez anos mais velho, o que é um bocadinho ridículo. No entanto, pelo menos no caso de Rika, até funciona bem – porque, lá está, ela fala com a firmeza de uma miúda cinco anos mais velha.
Tirando isso, e a voz estranhamente metálica de Taomon, não tenho grandes defeitos a apontar à dobragem portuguesa. Está acima da média, pelo menos no que toca a Digimon.
Se gosto mais do universo de Tamers do que de Adventure? Não sei dizer. Acho que preciso de mais tempo para decidi-lo: foram seis meses seguidos imersa neste mundo. Penso que Tamers é mais consistente, mais madura, mas Adventure tem um grande valor nostálgico para mim. Duvido que alguma vez seja ultrapassada.
Se tivesse de responder já já, diria que os dois estão ao mesmo nível. E apesar de ainda só ter passado um ano com Takato e os seus amigos – em contraste com Taichi e companhia limitada, que conheço há quase duas décadas – com o tempo imagino-os um lugar semelhante aos oito Escolhidos de Adventure no meu coração.
Está, então, na altura de colocarmos o ponto final nesta análise. Ufa. Como penso ter dito antes, foi há mais ou menos um ano que comecei a ver Tamers pela primeira vez. Há seis meses comecei a ser segunda, já tomando notas para esta análise. Comecei a publicar esta análise em meados de julho e já estamos em finais de outubro. Isto demorou ainda mais do que eu esperava.
Em minha defesa, nunca imaginei que este monstro chegasse às trinta mil palavras. E o mês de outubro está a ser particularmente difícil no meu emprego – têm havido muitas noites em que não tenho energia para me sentar ao computador. Daí estas duas últimas publicações terem demorado.
Isto foi moroso e deu imenso trabalho mas… foi divertido. Houveram dias mais fáceis do que outros, mas no geral, tirando neste último mês, não tive grandes dificuldades em dar prioridade a esta análise. Nem mesmo quando já tinha a Nintendo Switch Lite e o Let’s Go Eevee. Adorei trabalhar nestes textos. Alguns deles, como os dedicados ao conceito de Treinadores, a Takato, Ruki, Juri e Impmon, saíram-me com relativa facilidade. Mas mesmo aqueles cujo tema considerava menos interessante ficaram mais ou menos ao nível dos outros, depois de algum tempo refinando-os.
No geral, estou satisfeita com esta análise.
O problema é que, depois de meses imersa numa série tão interessante e complexa como Tamers, tenho pouca vontade de partir para outra – para universos como Frontier e Data Squad, que não parecem reunir tanto consenso como Tamers e mesmo Adventure. Frontier, então, já é um meme na nossa comunidade de fãs portugueses, pois todos acham que é a pior temporada de todas.
Não quero fazer juízos de valor sem ver eu mesma, mas tenho de confessar: uma série de Digimon sem companheiros Digimon não me entusiasma. Nem sequer percebo como poderá funcionar.
Será uma questão de dar algum tempo para limpar o palato. Estou certa de que gostarei de pelo menos um aspeto ou outro das próximas temporadas. E sobretudo, que terei coisas a escrever sobre elas, nem que seja só para dizer mal.
Não deve faltar tempo para eu limpar o palato, pois ainda deve demorar até eu começar a escrever sobre Frontier. Já depois de ter começado a publicar esta análise, foi anunciada a data de lançamento do próximo filme de Adventure: Last Evolution Kizuna, a 21 de fevereiro do próximo ano.
Não tenho feito questão de saber todos os pormenores sobre o filme, em parte por ter estado em modo Tamers, em parte para evitar spoilers e para não elevar demasiado as minhas expectativas. Apenas sei que Taichi terá vinte e dois anos e estará a terminar a faculdade, que, abençoadas sejam as Bestas Sagradas, o elenco de 02 estará presente e pouco mais.
Pelo meio, diz que vão haver cinco curtas metragens animadas centradas no elenco de Adventure. Segundo este artigo, serão histórias que não encaixaram em Kizuna. Não sei muito bem quando saem – supostamente já deviam ter saído. Talvez escreva sobre elas no mesmo texto, ou série de textos, sobre o filme.
E pronto, chegámos ao fim. Depois de seis meses nisto, vou abrandar um bocadinho as coisas com este blogue – tecnicamente já abrandei este mês. Não vou deixar de escrever por completo, até já estou a planear um texto novo, mas, pelo menos nas próximas semanas, não quero sentir a obrigação de passar todo o meu tempo livre à volta deste blogue. Quero terminar o Let’s Go Eevee (neste momento estou em Celadon), quero ir nadar (inscrevi-me na natação livre em setembro), quero participar em mais raids de Pokémon Go.
Quero também ver/rever os filmes de Adventure antes de Kizuna. Só vi parte da versão condensada e super confusa de três deles que é Digimon o filme. Não devo escrever sobre eles no blogue, no entanto – posso é deixar um apontamento ou outro na página.
Obrigada a todos os que acompanharam este verdadeiro testamento ao longo destes meses. Digimon ficará em pausa neste blogue durante algum tempo, mas devera regressar com Kizuna. Regressem também.
Outra diferença de Tamers em relação ao universo de Adventure é o facto de não existir Luz versus Escuridão, no sentido de Bem versus Mal. A única ocasião que se aproxima disso é quando surge o Megidramon. Talvez porque, em Tamers, não existem bons e maus propriamente ditos – ou pelo menos não no sentido habitual das histórias dirigidas ao público infantil.
Isto na minha opinião é um ponto a favor. É realista. Parte dos conflitos em Tamers – alguns dos quais podiam e deviam ter sido melhor explorados – sobretudo durante a primeira metade da narrativa, derivam de pontos de vista contrário, choque de culturas, desconfiança em relação ao que é diferente, revolta de um grupo oprimido contra o seu opressor. Tudo conflitos semelhantes aos que ocorrem no nosso mundo, que ocupam uma larga fatia das nossas notícias.
Ninguém em Tamers está cem por cento certo ou errado, nem mesmo o D-Reaper. Existe verdade nas suas crenças de que tanto a Humanidade como os Digimon têm imperfeições. A solução dele para tais problemas é que, obviamente, não será a mais adequada.
Mas não nos adiantemos.
O primeiro antagonista em Tamers é a organização Hypnos e o seu líder, Yamaki. Como referido antes, estes não se revelam de imediato. Durante vários episódios, apenas vemos as mesmas imagens de Reika e Megumi anunciando o aparecimento de Digimon selvagens em Shinjuku, bem como de Yamaki brincando com o seu isqueiro. Só ao sétimo episódio é que descobrimos ao certo quem são eles: uma organização que se dedica a crescente rede digital.
Ou seja, o Hypnos é o equivalente japonês ao NSA dos Estados Unidos.
É de facto espantoso o quão à frente do seu tempo Tamers estava. Só nos últimos anos – em 2013, com as denúncias de Edward Snowden, e no ano passado, com o escândalo do Facebook (embora a Google também o desconcertante hábito de registar cada um dos nossos passos) – é que o cidadão comum se apercebeu verdadeiramente das implicações da Internet. Mas a verdade é que já havia quem alertasse para a possibilidade no início dos anos 2000.
Tamers não foge ao assunto. Yamaki garante a um inspetor do governo que só estão interessados em informações criminosas – é claro que cada um arranja a definição que mais lhe convém para esse termo. De tal forma que a existência do Hypnos é mantida escondida do público – o inspetor diz mesmo que, se a verdade viesse a público, o governo cairia.
Ora, nesta equação, os Digimon são uma espécie invasora que atrapalha o trabalho do Hypnos. Conforme dei a entender antes, a inutilidade da organização para tratar destas ameaças chega a ser caricata. O trabalho que lhes compete acaba por ser feito por crianças de dez anos (incluindo Takato na sua fase de tentativa e erro). O que nos leva às motivações do Hypnos, em particular de Yamaki.
Este até começa com relativas boas intenções – quão nobres poderão ser as intenções de alguém que procura controlar a Internet? É claro que era necessário alguém com experiência e recursos para lidar com a ameaça dos Digimon. Também não estão errados quando dizem que crianças deviam andar a brincar com criaturas capazes de destruir edifícios e matar pessoas.
Só que o Hypnos é realmente muito mau a fazer o trabalho que lhe compete. As duas primeiras ativações do Shaggai só pioram as coisas em vez de melhorarem: a primeira abre a porta aos Deva. A segunda leva ao colapso do quartel-general do Hypnos. Pelo meio, a certa altura, Yamaki parece deixar-se levar pelo poder e começa a tornar aquilo pessoal. Note-se o momento em que deita as mãos a Jian.
O que, tenho de dizê-lo, é completamente inaceitável. Jian é uma criança, Yamaki é um adulto, tem a obrigação de se controlar.
A destruição do Hypnos e consequente perda de emprego tem o condão de obrigar Yamaki a descer à Terra. Vemo-o recolhido no seu (?) apartamento juntamente com Reika – é assim que se descobre que eles namoram. Consta que, quando leram o guião escrito por Konaka, os seus colaboradores foram apanhados de surpresa por esta revelação. O guionista revelou, também, que terá sido Reika a impedir Yamaki de sucumbir por completo à depressão.
Em todo o caso, quando os Treinadores se preparam para ir para o Mundo Digital para resgatar Culumon, Yamaki consegue deixar o seu abatimento de lado, ainda que por pouco tempo. Vai ter com eles imediatamente antes de partirem e empresta-lhes um dispositivo que lhes permitirá comunicarem com o Mundo Real enquanto estiverem no Mundo Digital.
Ainda assim, Yamaki mantém-se confinado ao apartamento, com a namorada (o que, sejamos sinceros, não é assim tão mau). Certo dia, um tipo qualquer do governo decide ativar o Shaggai de novo porque… razões. Corre quase tão bem como das duas primeiras vezes – e vemos o efeito que isso tem no Mundo Digital. Têm de vir Yamaki e Reika para corrigirem a asneira do outro e, no processo, recuperam as rédeas do Hypnos.
Depois desta, Yamaki e o Hypnos estabelecem-se firmemente como aliados dos Treinadores, em colaboração com o Grupo Selvagem. Existe um momento em que Yamaki se culpa pela crise do D-Reaper. Reika faz-lhe ver que ele foi apenas o primeiro a querer controlar a Internet – e como vimos acima, o tempo veio a dar-lhe razão.
Da ideia que tenho, ninguém acha os Deva muito interessantes enquanto vilões. Eu concordo. Quando começam a aparecer no início da segunda parte da narrativa, pouco mais são que vilões-do-episódio, que os heróis derrotam sem pensar duas vezes. São níveis Perfeitos, e alguns até são difíceis de derrotar, mas outros são derrotados por níveis Adultos.
Acho também que não sou a única que nem sequer consegue decorar os nomes de uma boa parte deles. São o Deva-Cobra, o Deva-Cavalo, o Deva-Rato e por aí fora.
A certa altura Jian consulta o seu instrutor de kenpo para descobrir mais sobre os Deva – que foram inspirados pelo zodíaco chinês, que por sua vez colheu inspiração dos Doze Generais Celestiais do budismo. Quando o instrutor revela que os Deva originais eram figuras benevolentes, Jian acaba aprendendo que o mal e o bem são uma questão de perspetiva.
O que é irónico se tivermos em conta que os Deva são o mais próximo que Tamers têm dos típicos maus da fita de desenhos animados: unidimensionais, interessados apenas em debitar propaganda anti-humanos e provocar o caos no Mundo Real.
Os únicos Deva minimamente interessantes são Makuramon, Chatsuramon e Antylamon. O último, obviamente, por ser o companheiro de Shaochung. Por sua vez, Makuramon é um dos que ganha mais tempo de antena. Durante a segunda parte da narrativa, disfarça-se de criança humana e tenta infiltrar-se no grupo de amigos de Takato – para poder aproximar-se de Culumon. Não se pode dizer que o disfarce resulte pois, embora não descubram logo que o miúdo tentando colar-se é um Digimon, o seu comportamento é sinistro e enervante.
Para os miúdos e para mim, diga-se. Entre este e o Etemon, está visto que Digimon inspirados em macacos não são comigo.
No fim, Makuramon acaba por ser o único a fazer o seu trabalho, ou pelo menos parte dele: deitar as mãos a Culumon e levá-lo para o Mundo Digital.
Chatsuramon, o Deva-Leão (ou gato?), é o mediador do pacto de Impmon com o diabo. Uma incoerência que não passa despercebida é o facto de os Deva serem todos do nível Perfeito mas, quando recrutam Impmon, este digievolui para o nível Extremo. Três questões: um, se Zhuqiaomon consegue, indireta ou indiretamente, desbloquear um nível Extremo de outro Digimon, para que precisa de Culumon? Dois, porque não fez mesmo com os seus minions, parte dos quais são fracos até para níveis Perfeitos? Por fim, porque tornaram um recruta recente mais poderoso do que eles – talvez capaz de fazer frente a Zhuqiaomon? Estão mesmo a pedir para serem apunhalados pelas costas.
É assim que os Devam acabam, aliás, tirando Antylamon. Makuramon e Chatsuramon podem até ter tido algum interesse, mas as suas mortes são meras notas de rodapé em episódios que a atenção da audiência está no duelo entre Beelzebumon e Megidramon/Dukemon. Ninguém sentirá a falta deles.
É mais ou menos nesta altura da história, um pouco mais tarde, que descobrimos que, no universo de Tamers, os deuses do Mundo Digital são as Bestas Sagradas. Os Deva, no entanto, só falam de um deus que substituiu os humanos – provavelmente Zhuqiaomon, o seu amo. Descobrimos também que este último precisava de Culumon para, como referimos antes, digievoluir tudo o que se mexe para combater o D-Reaper.
E de facto é isso que Culumon faz, quando lho pedem. E uma pessoa fica tipo “Porque é que não lhe pediram com jeitinho mais cedo?” Podiam ter evitado pelo menos metade dos eventos de Tamers – sobretudo a morte do Leomon, que deixou Juri vulnerável ao D-Reaper.
Parece uma falha do enredo, mas eu não acho que o seja. Não a cem por cento pelo menos. Acho que é um erro de Zhuqiaomon. Este parece ser o único das Bestas Sagradas que se ressente dos humanos – possivelmente passando as suas crenças aos seus servidores. É possível que tanto os Deva como Zhuqiaomon tenham aproveitado a busca por Culumon para se vingarem da Humanidade. As consequências desse ódio para Zhuqiaomon é perder os seus minions e conferir mais poder ao inimigo que queria derrotar.
Por outro lado, descobre-se que fora Qinglongmon a transformar a luz da digievolução num Digimon e a enviá-lo para o Mundo Real. A ideia era que Culumon fugisse do alcance do D-Reaper, para que este não o usasse como catalisador. Mas não se lembrou de avisar o colega Zhuqiaomon, que passara metade de Tamers tentando recuperar o pequenote.
Este é, na minha opinião, o maior ponto fraco do enredo de Tamers. As Bestas Sagradas não comunicam entre si? Não faria mais sentido atuarem em conjunto perante um inimigo tão poderoso como o D-Reaper? Em vez darem tiros nos pés ao levarem a cabo planos que contradizem os dos colegas?
Se isto não for uma falha do enredo (e não estou convencida que não o seja), este parece ser um daqueles casos em que um aliado incompetente causa mais danos que um vilão. Quase culpo mais Qinglongmon do que Zhuqiaomon pelos eventos de Tamers. Zhuqiaomon pecou por ódio e preconceito. Qinglongmon pecou por negligência.
Falemos, então, sobre o D-Reaper. Este é um caso típico de uma inteligência artificial tão inteligente, tão inteligente (passe a redundância) que chega à conclusão de que a Humanidade é demasiado tóxica e deve ser eliminada. O D-Reaper no início era um programa muito simples de eliminação de dados em excesso. O problema foi que, com a expansão do Mundo Digital, em paralelo com o crescimento da Internet, o D-Reaper sofreu também uma digievolução à sua maneira – tornando-se uma ameaça ao Mundo Digital.
Tecnicamente, o D-Reaper é o grande vilão de Tamers. Se pode, no entanto, ser considerado vilão é questionável – porque o D-Reaper não tem noção do bem e do mal, faz apenas aquilo para que foi programado. Não tem noção da moralidade.
Bem, pelo menos em teoria. Mais sobre isso já a seguir.
Vemos o D-Reaper pela primeira vez no episódio da estreia da Sakuyamon. No início, este era apenas uma massa disforme, cor-de-rosa, que solta bolhas. Ao contrário do estilo desenhado à mão de praticamente todo Tamers, o desenho do D-Reaper mete CGI e o contraste entre os dois estilos é desconcertante.
As bolhas são, em teoria, um exemplo de carnificina sem sangue, sem violência, adequadas ao público infantil. Na prática, a ausência de sangue, de violência, é o que mais me assusta nelas. Basta um toque apenas para a vítima pura e simplesmente deixar de existir. Uma pessoa não consegue oferecer resistência, não consegue debater-se. Apenas desaparece deste mundo. Nem sequer deixa um cadáver ou partículas digitais para trás.
É horrível.
Quando o D-Reaper chega ao Mundo Digital, o seu tamanho aumenta exponencialmente. Forma uma massa gigantesca que irradia calor, com centro no parque de Shinjuku – aparentemente a partir da brecha para o Mundo Digimon no casinhoto de Guilmon. É dado a entender nos últimos episódios de Tamers, quando a expansão acelera e surgem massas noutras grandes cidades, que o plano do D-Reaper é erradicar a espécie humana por aquecimento global.
Como se os humanos precisassem de ajuda nesse capítulo. O D-Reaper é apenas um catalisador. Aqui não há Greta que nos valha.
A criatura possui diversos agentes e/ou formas para levar a cabo os seus fins. A mais notável é, claro, a Juri-Type, sobre quem falámos antes, de passagem. É a única dos agentes que não possui um cordão umbilical que a una ao D-Reaper, a única que consegue funcionar longe dele. Durante muito tempo, assume uma aparência muito similar à de Juri – tirando os olhos e a palidez – que lhe permite tomar o lugar da menina entre os Treinadores e ir para o Mundo Real. Vimos antes que o seu objetivo era analisar a espécie humana.
Quando Juri-Type revela a sua verdadeira natureza perante Takato, ganha formas mais monstruosas: a de uma Juri mais velha, alada, ou de uma figura feminina, também alada, mas de pele azul, olhos grandes e cabelo espetado. Parece ser ela a responsável pela tortura psicológica de Juri, pois tenta fazer o mesmo com Takato.
Teoricamente, à semelhança dos outros agentes, Juri-Type não terá vontade independente do D-Reaper – que como vimos não tem código moral, não age por malícia. Mas até que ponto isso será verdade para a Juri-Type? Até que ponto pode uma criatura usar tortura psicológica para neutralizar as suas vítimas sem intenções maliciosas?
O D-Reaper funciona, assim, bastante bem como grande vilão da temporada, se bem que ache que a sua introdução na história poderia ter sido menos forçada. Continuo a achar que, do ponto de vista puramente do enredo e da temática, teria feito mais sentido se o Zhuqiaomon fosse o grande vilão da temporada, com intenções de exterminar a raça humana. No entanto, o D-Reaper é um vilão deveras assustador, poderoso, retorcido, fora do convencional, proporcionando alguns dos momentos mais memoráveis em Tamers.
Além disso, consta que será Digimon Savers a explorar a fundo a via Mundo Real versus Mundo Digital. Tri também tentou ir nessa direção, sem grande sucesso.
E com isto terminamos a análise ao elenco de Tamers. Estamos quase a chegar ao fim. O próximo texto será o último – mas ainda haverá muito sobre que falar.
Esta é a parte da análise que eu mais ansiava escrever. Para vários temas desta série, precisei de pesquisar um bom bocado, rever partes de episódios, mesmo episódios inteiros, desenvolver as minhas opiniões. No que toca a Impmon, no entanto, planeei a maioria deste texto antes de qualquer outro – antes ainda de ver Tamers pela segunda vez, já de caneta em punho.
Não deve ser surpresa. Penso que todos concordamos que Impmon é uma das melhores personagens, não só de Tamers, de todo Digimon enquanto franquia.
Impmon não é bem um vilão. No entanto, tal como os melhores exemplos desse arquétipo, funciona porque é aquilo que os heróis podiam ser se tivessem tido menos sorte e/ou se tivessem tomado as decisões erradas. No caso de Impmon, o seu maior pecado é o orgulho, misturado com inveja. Uma coisa que o diabrete faz muito, quando lhe colocam o dedo na ferida, quando o confrontam com a verdade, é enfurecer-se e fincar ainda mais os pés nos seus hábitos destrutivos (auto e não só).
Mas comecemos pelo princípio. Na primeira metade de Tamers, Impmon é uma criatura ao mesmo tempo hilariante – no caso da dobragem portuguesa, muito por culpa da excelente interpretação de Pedro Cardoso – e irritante. Passa a vida à volta dos Treinadores, arreliando os seus Digimon (Culumon incluído). Troça deles por estarem ligados a humanos, acusa-os de serem pouco mais de mascotes, de brinquedos (no caso de Terriermon, não está completamente errado)...
...e no entanto, ele não os “deslarga”. Seria de esperar que ele se mantivesse afastado de criaturas que, parafraseando-o, lhe dão vontade de vomitar. Mas não é isso que acontece.
Há que realçar, no entanto, que Impmon os arrelie, os Treinadores não antipatizam com Impmon. Pelo contrário, toleram-no, chegam mesmo a tratá-lo com simpatia. Talvez seja esse um dos motivos pelos quais o diabrete não se afasta. O que só torna o que acontece mais tarde ainda mais reprovável.
Não são precisos muitos dedos de testa para perceber que Impmon é um caso clássico de “estão verdes, não prestam”. Sobretudo quando descobrimos o seu passado. Impmon nem sempre fora um Digimon independente, também tivera um Treinador. Ou melhor dois: Ai e Makoto, dois irmãos, ela com cinco anos no máximo, ele com três no mínimo.
Como seria mais ou menos de esperar da parte de crianças daquela idade, os dois disputam Impmon como um brinquedo que são obrigados a partilhar. Chega a um ponto em que o diabrete farta-se e vai-se embora. Com isto tudo, fica com uma opinião péssima em relação aos humanos em geral.
Não se pode censurar Impmon por esta atitude, mas também crianças daquelas idades não constituem uma boa amostra da Humanidade. Ao contrário do que muitas vezes tendemos a pensar (eu incluída), as crianças nem sempre são puras e angélicas. Muitas vezes, sobretudo antes dos cinco, seis anos, são egoístas insensíveis, melodramáticas, incapazes de empatia e de lidar com a frustração.
É claro que, nesta fase, ainda não é culpa delas. Pecam por ignorância. Com a devida educação ultrapassam essa fase. Crescem.
Bem, algumas. Infelizmente há muita gente que nunca chega a aprender, que não chega a crescer.
Não acho que seja coincidência que, no início, os episódios centrados em Ruki e Renamon também destaquem Impmon. Quando Renamon sente dúvidas em relação ao seu vínculo com Ruki, Impmon funciona como o diabo no seu ombro, dizendo-lhe os humanos são estúpidos e os Digimon estão melhor sozinhos.
Existem claros paralelismos entre os dois. Tamers dá a entender que Impmon veio para o Mundo Real pelo mesmo motivo que Renamon: à procura de um parceiro humano que o ajudasse a ficar mais forte, quiçá a digievoluir.
O problema é que Renamon foi ter com a campeã do jogo de cartas. Impmon foi ter com dois pirralhos. Não se sabe como é que Ai e Makoto se tornaram Treinadores de Impmon, o que é uma pena. Na minha opinião, os meninos queriam um Digimon com quem brincar. Impmon alinhou por, das duas uma: por achar que, eventualmente, eles ajudá-lo-iam a digievoluir ou, pura e simplesmente, deixou em stand-by o seu desejo de se tornar mais forte e contentou-se com ser o companheiro de brincadeiras dos dois irmãos. Isto é, até a relação azedar.
Em todo o caso, tanto ele como Renamon entraram em conflito com os seus Treinadores e, a certa altura, tentaram tornar-se mais fortes sozinhos. A diferença é que Renamon era suficientemente forte para derrotar adversários sozinha – até isso deixar de ser suficiente e escolher ficar com Ruki. Impmon, por sua vez, é inútil em combate. Só assusta humanos. Ainda consegue arreliar Guilmon e Terriermon quando os seus Treinadores os proíbem de ripostar mas, quando podem ripostar, enxotam-o com facilidade.
Mesmo assim, o diabrete garante a toda a gente, incluindo a si mesmo, que está bem assim, que não precisa de humanos ou de digievoluir.
Tem piada por um lado, como referi acima, mas por outro uma pessoa fica com vontade de lhe dar um par de estalos. Porque insiste Impmon em magoar-se a si mesmo, dizendo que despreza humanos, mas sem conseguir afastar-se deles? Das duas uma, ou aceita que precisa de humanos e tenta fazer as pazes com os seus Treinadores – ou tenta procurar outro Treinador, ou pelo menos aceita a amizade do Takato e dos outros – ou segue com a sua vida, procura um sítio onde possa viver (quer no Mundo Real quer no Mundo Digital) sem precisar de digievoluir. Agora, ficar preso naquele limbo pelo seu próprio orgulho e inveja é que não ajuda ninguém, a começar por ele mesmo.
O cúmulo da sua negação e teimosia manifesta-se quando Impmon é confrontado por um dos Deva, Indramon, e este lhe pergunta porque não digievoluiu ainda, se já teve parceiros humanos – como referi antes, dedo na ferida. A resposta do diabete é tornar-se ainda mais arruaceiro perante civis – os únicos que, lá está, é capaz de assustar. Quando o Indramon regressa, Impmon faz questão de enfrentá-lo sozinho, para provar que não precisa de ninguém, muito menos de humanos, nem de digievoluir. Nem sequer permite que Takato e os outros o encorajem.
Como seria de esperar de um Digimon fraquinho mesmo para nível Infantil perante um nível Perfeito, Impmon é massacrado, perante os olhares horrorizados dos miúdos. De início, Renamon impede os humanos de intervir – ela sabe uma coisinha ou outra sobre orgulho. Ainda assim, até ela atinge o seu limite e, em conjunto com os outros, salva a vida a Impmon – apenas para o diabrete insistir na luta, levando uma sova que o atira para o horizonte.
Impmon passa os episódios seguintes escondido de toda a gente enquanto lambe as feridas no corpo e no orgulho. Nisto, abre-se uma brecha para o Mundo Digital, de onde soa uma voz perguntando-lhe se quer tornar-se mais forte.
O diabrete vai, então, para o Mundo Digimon na mesma altura em que o resto do elenco vai. É aqui que se encontra com um dos Deva, Chatsuramon. Pegando de novo na fábula, Chatsuramon mostra-lhe uma parra que Impmon pensa ser uma uva: induz-lhe uma ilusão onde o diabrete estaria de volta ao Mundo Real à casa de Ai e Makoto. Impmon descobre a verdade, no entanto, quando se prepara para abraçá-los e estes passam através dele. Mais: Impmon vê os seus antigos Treinadores recebendo um cachorrinho e começando imediatamente a disputá-lo, como haviam feito com o seu Digimon.
Pergunto-me agora se essa cena com os meninos e o cachorrinho ocorreu mesmo – se era uma transmissão em direto do Mundo Real – ou se era uma ficção criada pelo Chatsuramon. Em todo o caso, serve para provar que, mais do que um catalisador para a digievolução, Impmon apreciava os seus antigos Treinadores pelo companheirismo. E inveja amargamente Guilmon, Renamon e os outros por terem as duas coisas.
Mais uma vez, a reação de Impmon é fechar ainda mais o coração e fazer um pacto quase literal com o diabo. Desbloqueia a sua forma Extrema, Beelzebumon, e em troca assassinará os Treinadores e os seus Digimon – que, recordo, ainda o consideram um aliado, mesmo um amigo.
Já falámos um par de vezes sobre o que acontece quando Beelzebumon aparece para cumprir a sua parte do acordo, não é necessário repetir. Gostava só de chamar atenção para o aviso de Leomon, que percebe logo que o demónio digital está a ser manipulado pelos Deva. É em resposta a esse aviso que Beelzebumon dá o golpe fatal.
Nota para mim mesma: nunca confrontar Impmon/Beelzebumon com a verdade.
Como vimos antes, perante a morte do Leomon, Takato obriga Guilmon a digievoluir para a monstruosidade que é Megidramon… mas Beelzebumon, surpreendentemente, revela-se um adversário à altura. Talvez tenha sido pelo melhor – pode ter sido o único motivo pelo qual Megidramon não chegou a usar os seus poderes de destruidor de mundos.
Acaba por ser impressionante, até. Há um momento em que Beelzebumon está de costas no chão, uma das mãos afastanto as presas do Megidramon, a outra desfazendo o Makuramon em partículas digitais. Mais tarde, quando Rapidmon e Taomon decidem tentar a sua sorte frente a Beelzebumon, este consegue encurralá-los, obrigando-os a cederem parte dos seus dados ao demónio digital para se libertarem. No fim, ele próprio põe Megidramon fora de combate.
Mesmo quando Takato recupera o juízo e desbloqueia o Dukemon, o combate com Beelzebumon continua equilibrado. Pelo meio, Dukemon derrota Chatsuramon (que viera para castigar Lopmon por se ter aliado aos humanos), mas Beelzebumon desvia os dados para si. Finalmente, como referido antes, o demónio digital fica a isto de eliminar Dukemon (com Takato lá dentro), mas é interrompido pelo Guardromon. E quando os papéis se invertem, é Juri quem impede o Dukemon de dar o golpe final.
O gesto da menina desarma Beelzebumon. Mais: provoca-lhe uma crise existencial de todo o tamanho. Não é a primeira vez que um humano ou um Digimon associado a um humano o trata com compaixão. Pelo contrário, os Treinadores e seus Digimon haviam passado a primeira metade de Tamers tratando Impmon com mais gentileza do que este merecia. Tais gestos, no entanto, chocavam com a carapaça do seu orgulho e inveja (isto parece ser um tema recorrente nesta série: muros, barreiras, que mantém os demais afastados e os corações fechados).
Fora preciso ter ficado quase literalmente entre a espada e a parede para Beelzebumon cair em si e perceber que estava errado em relação aos humanos.
Este é o momento em que o demónio digital bate no fundo. O momento que melhor o simboliza é quando este é atacado por um bando de Chrysalimon (depois de, alguns episódios antes, ter dizimado uns quantos destes Digimon enquanto testava o seu novo poder) e regride para Impmon. Fica bastante maltratado.
Como vimos antes, Ruki e Renamon dão uma corrida para ir buscá-lo antes de perderem a boleia para o Mundo Real. E ainda bem que o fizeram.
Quando regressa a Shinjuku, Impmon vai à procura dos seus Treinadores. Há um momento engraçado quando o diabrete encontra o instrutor de kenpo de Jian e lhe pede que lhe leia o bilhete que Ai e Makoto lhe deixaram. Descobre assim que os meninos foram evacuados para a casa dos avós e é lá que os reencontra.
Numa reviravolta surpreendente para crianças tão novas, Ai e Makoto pedem desculpa a Impmon pela maneira como o trataram. Reconhecem que as discussões entre eles, a disputa por Impmon como um brinquedo que não queriam partilhar, fizeram com que o diabrete se fartasse e se fosse embora – e enveredasse por um caminho destrutivo, mas os irmãos não sabem e, pelo menos por enquanto, não precisam de saber essa parte. Ai e Makoto chegam mesmo a mostrar um ursinho de peluche que haviam rasgado nas suas guerras.
Sinceramente, os meninos demonstram uma maturidade, uma responsabilidade pelos seus próprios actos que eu demorei anos a obter, que eu suspeito que demasiados adultos não possuam. Ai tem cinco anos no máximo! É certo que, regra geral, nestas idades atitudes egoístas e mimadas têm consequências relativamente menores – castigos, brinquedos confiscados, pais zangados. Não costumam implicar a perda de um amigo, de um companheiro de brincadeiras.
Impmon fez bem em deixá-los, apesar de tudo. Obrigou os meninos a sofrerem as consequências dos seus actos. A parte da inveja, do orgulho, do pacto com o diabo, do assassínio de Leomon, é que era desnecessária.
Em todo o caso, Impmon perdoa-os e torna a ser o seu companheiro Digimon. Quando vê notícias da destruição provocada pelo D-Reaper na televisão, no entanto, quer juntar-se à luta. Como os meninos são demasiado novos para o acompanharem, estes ficam para trás.
Antes de Impmon sair, no entanto, Makoto dá-lhe a sua pistola laser de brinquedo, para que a use “contra os maus”. Ai, por sua vez, dá-lhe um beijinho, em jeito de despedida – algo de que o diabrete não estava à espera. Enquanto se afasta, Impmon digievolui para Beelzebumon Blast Mode, com um par de asas e a pistola laser convertida num canhão.
E foi assim, senhoras e senhoras, que Tamers criou a melhor sequência de digievolução de todos os tempos. Com uma pistola de brinquedo e um beijinho. Não há nada mais amoroso, não há nada mais fixe. Até a sequência da Sakuyamon fica atrás disto. É certo que só conheço este universo e o de Adventure, mas duvido que haja algo melhor do que isto.
Há que também dar crédito a Tamers por ter resistido à tentação de criar uma digievolução completamente nova para Impmon, mais convencionalmente heroica, para refletir este desenvolvimento. Beelzebumon continua a ser um demónio, continua a ter um nome inspirado por um dos nomes do diabo. Apenas ganhou algumas características menos vilanescas.
Acho piada, aliás, ao contraste entre um demónio motoqueiro e os seus Treinadores, crianças pequenas e inocentes. Não me admirava, aliás, se uns anos após os eventos de Tamers, a fase de rebeldia adolescente de Ai e Makoto envolvesse motas e cabedal preto.
Beelzebumon junta-se, assim, aos Treinadores no combate ao D-Reaper. Por motivos óbvios, ele é um dos mais motivados para salvar Juri – tanto como Takato ou talvez ainda mais. Conforme referido antes, ele e Culumon descobre Juri no núcleo do D-Reaper. Conseguem infliltrar-se, mas Beelzebumon e apanhado pelos tentáculos e fica inconsciente durante um par de episódios. Recupera a consciência numa altura em que o D-Reaper cria agentes novos para proteger o núcleo – e acaba por ser expulso para o exterior, onde se reencontra com Dukemon.
Vimos antes que Dukemon e Beelzebumon tentam os dois abrir caminho até Juri – o desespero do segundo fica patente em cada gesto. Não ajuda o facto de o nono agente, a Bola do D-Reaper, apontar o seu olho gigante para Beelzebumon enquanto repete, usando a voz de Juri: “Beelzebumon. Nível Extremo do Impmon. O Digimon que absorveu o Leomon.” É francamente sinistro.
Por outro lado, sim, também fiquei zangada por o D-Reaper ter destruido a pistola laser de Makoto. Não se faz!
Como vimos antes, o esforço de Beelzebumon consegue despertar Juri do seu transe. E quando o demónio recorre ao Punho Real, consegue abrir um buraco na esfera e estender uma mão a Juri.
Se isto fosse uma história diferente, Juri teria sido resgatada neste momento e tudo ficaria bem. Mas isto é Tamers, em Tamers não há soluções fáceis. Como vimos antes, Juri ainda não estava preparada para perdoar Beelzebumon, para confiar nele.
Infelizmente, pouco após a janela fechar, Beelzebumon é atingido pelas costas. Por momentos, o ferimento parece ser fatal – e Ai e Makoto estão a ver tudo na televisão! Ele prometera que voltaria!
Da primeira vez que vi Tamers, poucos episódios atrás, pensava que Beelzebumon morreria para se redimir. Esteve muito perto… A intervenção atempada de Grani salva-lhe a vida, numa altura em que este já regrediu para Impmon.
O diabrete não teve, assim, uma conclusão épica e triunfal para a sua história. O verdadeiro encerramento acontecerá mais tarde e será mais sereno. Antes, Ai e Makoto cuidam de Impmon enquanto este recupera da luta contra o D-Reaper. É nesta altura que os DigiGnomos lhes dão o seu próprio D-arco (só agora?).
Depois de derrotado o D-Reaper, Impmon apresenta Ai e Makoto aos outros Treinadores. Imagino que para Juri, Takato, Ruki e companhia os meninos sejam a maior prova de que a bondade e compaixão que demonstraram para com Impmon não foram desperdiçados. Juri diz mesmo que está contente por Impmon ter sobrevivido – por certo porque não quereria que Ai e Makoto passassem pelo mesmo que ela passou, porque Juri sabe alguma coisa sobre canalizar traumas para ações destrutivas. Assim, perdoa Impmon.
O diabrete obtinha assim o seu final feliz… para imediatamente a seguir ser recambiado para o Mundo Digital, para longe dos seus Treinadores. Ai e Makoto nem sequer devem compreender os motivos. Nem no universo de Tamers há justiça…
Como referi antes, não considero Impmon/Beelzebumon um vilão propriamente dito. Aliás, nenhum dos antagonistas em Tamers merece ser classificado como vilão no sentido convencional do termo… mas isso é conversa para o próximo texto.
Nesta parte da análise vamos, então, analisar personagens do lado dos bons que, na minha opinião, não justificam uma publicação individual dedicada a eles. Começando por Hirokazu e Kenta, duas adições tardias à equipa dos Treinadores.
Mesmo só se juntando oficialmente ao grupo na segunda metade da narrativa, Hirokazu e Kenta estão lá desde o início. São, ao que parece, os dois melhores amigos de Takato e partilham com ele a paixão por Digimon enquanto franquia. Dos três, aliás, Hirokazu parece ser o melhor no jogo de cartas – pelo menos, vêmo-lo sempre ganhando, quando joga contra Kenta.
Os dois funcionam com um muito bem-vindo alívio cómico, numa temporada tão sombria como esta. No entanto, na minha opinião, não é essa a melhor utilidade deles. Conforme referi antes, os protagonistas, sobretudo Takato, possuem um grupo de apoio de crianças da sua idade. Hirokazu e Kenta acabam por funcionar como representantes desse grupo. Estão lá para apoiar. Não são a primeira linha de ataque, mas em momentos-chave fazem a diferença.
Falemos de cada um individualmente. Hirokazu usa uma t-shirt estampada com um símbolo que faz lembrar o Cartão da Lealdade/Confiabilidade do universo de Adventure – e de facto acho que este seria adequado para Hirokazu.
Para começar, o jovem obteve o seu Digimon ficando para trás, a cuidar dos seus ferimentos. Como referi acima, é leal aos seus amigos, está lá para ajudar no que pode. É certo que ele e Kenta cometeram um par de asneiras que deixaram Ruki à beira de um ataque de nervos. No entanto, em momentos de aperto, foi fundamental. Nomeadamente, quando ele mesmo desenhou uma Carta Azul, para ser usada por Takato, Ruki e Jian, e quando um ataque de Guardromon na altura certa, distrai Beelzebumon, salvando a vida a Dukemon.
O jovem demonstra mesmo um altruísmo raro para a idade quando se oferece para ficar a tomar conta de Shaochung, enquanto o trio de protagonistas, juntamente com Lopmon, tenta penetrar no castelo do Zhuqiaomon. Isto sem deixar de admitir que até queria ir com eles.
Quantas crianças de dez anos são capazes disso? De pôr de parte os seus desejos em nome do bem comum?
Por outro lado, por muito boas que fossem as intenções de Hirokazu, na prática pouca diferença fez. O jovem instruíra o Guardromon para “ficar de olho” em Shaochung. A menina, no entanto, acaba por ser transportada pelo ar até ao castelo do Zhuqiaomon (mais sobre isso adiante). Quando Hirokazu ralha com o seu Digimon por não ter feito nada, Guardromon defende-se dizendo que fez exatamente o que o Treinador lhe pedira: não tirara os olhos de Shaochung.
‘Tadinho...
Hirokazu no fundo desempenha um papel semelhante ao de Joe em Adventure. Não pertence à primeira linha de combate, atua mais na retaguarda, como apoio, como cuidador – uma contribuição mais discreta para a causa, mas não menos importante. É interessante reparar que Joe demorou quase toda a temporada original de Adventure a conformar-se com esse papel, mas Hirokazu assume-o praticamente desde que descobriu que os Digimon eram verdadeiros.
Na minha opinião, merecia mais crédito.
Kenta cumpre um papel semelhante, se bem que contribua um bocadinho menos. É o último a arranjar um Digimon – Shaochung, que vem para o Mundo Digital depois dele, recebe o seu primeiro; Juri recebe, perde o seu e é substituída pela Juri-Type antes de MarinAngemon se juntar oficialmente à equipa. A sagração, aliás, dá-se mesmo à última hora, literalmente durante a viagem de regresso ao Mundo Real.
O MarinAngemon tinha aparecido aquando da Digievolução Brilhante catalisada pelo Culumon e brincara um bocadinho com Kenta. Mais tarde, já na Arca de regresso, o pequenote surge literalmente no bolso do miúdo, juntamente com o seu recém-criado D-arco.
À primeira vista, ninguém suspeitaria que aquela coisinha adorável é de nível Extremo. Mal passaria por Infantil, quanto mais Extremo! Em teoria, um Digimon que se consegue manter no nível Extremo em repouso daria a Kenta uma enorme vantagem em relação aos colegas – o safadinho nem sequer precisava de se fundir com o seu Digimon! Na prática, o MarinAngemon não gosta de lutar, prefere recorrer a ataques não-violentos – e Kenta não parece ver problemas nisso.
Pergunto-me se o objetivo de atribuir este Digimon a um dos miúdos era dar outra perspetiva a um dos principais conflitos em Tamers: o MarinAngemon como exemplo de um Digimon sem instintos violentos. É possível que fosse essa a ideia inicial mas que não tenha havido tempo para executá-la. É pena.
Em todo o caso, MarinAngemon tem direito ao seu momento de glória com a intervenção que salva Takato das garras da Juri Type. Mais uma vez, uma ajuda muito bem-vinda, que poderá ter evitado que Takato se juntasse a Juri como refém do D-Reaper. Nos últimos episódios também foi capaz de criar uma bolha de proteção no interior do D-Reaper, permitindo que Juri fosse finalmente resgatada.
Em suma, não sendo as minhas personagens preferidas, longe disso, gosto bastante de Hirokazu e Kenta. Mais do que a maior das pessoas, calculo.
Falemos então sobre Ryo, uma personagem que, segundo consta, chegou a Tamers ainda antes de Konaka. Antes de aparecer neste universo, Ryo era o protagonista dos videojogos WonderSwann, que só foram lançados no Japão. Estes decorrem no universo de Adventure (pelo menos os primeiros, penso eu). No entanto, visto estarem a ter um tremendo sucesso em terras nipónicas, os produtores decidiram que Ryo teria de aparecer em Tamers – mesmo que tal criasse uma série de inconsistências, sobretudo para quem não estivesse familiarizado com os jogos.
Podem ler aqui um resumo da história dos jogos. Como poderão ler, estes cruzam os universos de Adventure e de Tamers e não se encaixa muito bem na narrativa da série de anime: nomeadamente o facto de Ryo, aparentemente, ter nascido no universo de Adventure mas ter um pai no universo de Tamers. Para evitar ficar com o cérebro em nós, prefiro esquecer que os jogos existem e considerar apenas o que decorre nesta série.
Assim, Ryo era o antigo campeão do jogo de cartas, o único a derrotar Ruki (embora ninguém tenha tido a delicadeza de nos informar antes, ou de pelo menos deixar pistas). Um ano antes dos eventos de Tamers, tornara-se Treinador do Cyberdramon e emigrara para o Mundo Digital.
Conforme referi antes, Ryo e Cyberdramon oferecem um exemplo de Treinador-e-Digimon em que o primeiro está mais próximo da definição de domador que qualquer outra personagem. Tirando isso… eu sinceramente dispensava-o.
A história trata-o como um Gary Stu (a versão masculina de uma Mary Sue), o que não surpreende tendo em conta os motivos pelos quais ele aparece em Tamers. A história pinta-o como o Lendário Digitreinador, o melhor Treinador de todos os tempos. No entanto, tirando o seu companheiro Digimon particularmente violento e a sua maior experiência com o Mundo Digital, Ryo é um daqueles casos em que é o melhor porque tem acesso a cartas raras, que nenhum dos outros tem. Além de que consegue desbloquear o nível Extremo, com fusão com o seu Digimon e tudo, mas não o vemos e não sabemos quando ocorreu ao certo, nem como nem porquê.
Depois temos a parte de ser um potencial interesse amoroso para Ruki… o que me irrita um bocadinho. Não porque ache que não são compatíveis, porque até acho – tirando os quatro anos de diferença nas idades (eles que esperem até Ruki ter dezoito anos antes de as coisas se tornarem demasiado sérias). Mais porque não havia necessidade. Tamers já tem Juri com um papel proeminente como interesse amoroso de Takato. A outra protagonista feminina também precisava de um potencial apaixonado?
Por fim, o final de Tamers introduz uma complicação que fica por resolver: o Cyberdramon fica sem Ryo. É possível que, nesta altura, esteja menos violento, mas quanto tempo aguentará antes de reverter para os hábitos antigos? O que acontecerá quando Cyberdramon começar de novo à procura de adversários, sem Ryo para o refrear, num Mundo Digimon em cacos após a destruição causada pelo D-Reaper?
Ryo acaba por ser, infelizmente, o elo mais fraco do elenco de Tamers. Podia ter sido um bocadinho melhor escrito ou então excluído por completo. Enfim, nada que estrague demasiado Tamers.
Falta, então, falar sobre Shaochung, a irmãzinha de Jian (bem, tecnicamente ainda sobram Ai e Makoto, mas eles ficam para o próximo texto). Quando escrevemos sobre o jovem, referimos que, durante muito tempo, a menina trata Terriermon como um peluche, sem suspeitar que é um Digimon verdadeiro.
Se me permitem o aparte, uma dúvida: os Digimon em Tamers têm sinais vitais visíveis? Estou a pensar se Shaochung não deveria ter reparado que o seu peluche tinha batimento cardíaco, que ele respirava. Talvez os Digimon não apresentem esses sinais – ou talvez Shaochung seja demasiado nova para reconhecê-los.
Enfim, passemos à frente.
Nem sempre é divertido para Terriermon ser o brinquedo de Shaochung – suponho que não o seja para qualquer brinquedo de criança daquela idade (vide Toy Story 3) – mas este acaba por se afeiçoar à irmãzinha do seu Treinador. Acho mesmo que Terriermon gosta tanto de Shaochung como do irmão dela – da mesma forma, mesmo depois de a menina arranjar um companheiro Digimon para si, Terriermon não fica para trás no seu coração.
Quando o elenco se prepara para a viagem ao Mundo Digital, ele e Jian contam a verdade a Shaochung – que é suficientemente nova para aceitar que o seu boneco preferido sempre esteve vivo.
Como referimos antes, aliás, são as saudades de Terriermon que fazem com que os Digignomos tragam Shaochung para o Mundo Digital. Devo dizer que achei as cenas de Shaochung sozinha, no Mundo Digimon, muito stressantes: uma menina de sete anos, sozinha, desprotegida, num mundo recheado de criaturas com instintos violentos, algumas delas com instruções claras para matar humanos.
Foi uma sorte Shaochung ter encontrado Antylamon, um membro dos Deva, e este ter engraçado com ela o suficiente para trair o seu grupo e protegê-la do Makuramon. É assim que adota Shaochung como sua Treinadora. Como castigo por se ter aliado aos humanos, Antylamon regride ao seu nível Infantil, Lopmon, que é essencialmente o Terriermon versão Shiny (coincidência? Ninguém acredita).
Como vimos antes, o irmão de início opõe-se a que Shaochung se torne Treinadora e adote Lopmon (e de facto, o Digimon demora algum tempo a perder os instintos de Deva). O que só torna as coisas ainda mais difíceis para a menina que, ao contrário de Takeru e Hikari em Adventure, reage às coisas da maneira normal para a idade dela.
Chorando que nem uma desalmada.
E sinceramente? A primeira experiência de Shaochung no Mundo Digital, logo depois de receber Lopmon, é o combate com Beelzebumon. Até eu choraria que nem uma desalmada naquelas circunstâncias!
Depois de derrotado Beelzebumon, a jogada seguinte é invadir o castelo de Zhuqiamon, onde os Treinadores pensam que o Culumon está aprisionado. Como Lopmon conhece o castelo, já que servira como guarda do mesmo enquanto Deva, o Digimon é presença obrigatória no grupo de invasão. Quando Jian ordena à irmã que fique para trás, ela chora – outra vez.
Ora, é certo que há muito de birra de criança nos protestos de Shaochung, na sua determinação em ir com o irmão e com Lopmon, mas acho que ninguém quereria ficar para trás enquanto o seu companheiro Digimon vai para uma situação perigosa. Sobretudo tão pouco tempo depois da perda de Leomon.
Da mesma forma, Jian exagera na rispidez, mas lá está, não está errado em considerar que a situação é demasiado perigosa para a irmã.
A discussão acaba por não fazer grande diferença, pois Shaochung é transportada para o castelo assim que percebe que Lopmon corre perigo. O facto de a menina ser capaz de usar o seu D-arco para ver através dos olhos do seu Digimon é altamente conveniente. A presença de Shaochung no terreno de batalha acaba por servir de motivação extra para Jian e, sobretudo, Terriermon desbloquearem o MegaloGrowmon.
Shaochung e Lopmon fazem um par engraçado. Por um lado, temos uma típica menina de seis anos, alegre, relativamente despreocupada. Do outro, temos um Digimon com a maturidade bem superior à de uma criança, falando com o tom formal de quem passou muito tempo – talvez a vida toda – a servir figuras divinas. Na minha opinião, o par funciona e é interessante.
A inocência de Shaochung permite-lhe sobreviver à guerra com o D-Reaper sem grandes traumas. Isso e o facto de não estar no terreno tantas vezes como os outros Treinadores, devido à sua idade. Uma vez mais, a menina vale-se da visão de Antylamon via D-arco para contribuir para a luta – é assim que descobre, por exemplo, que Beelzebumon e Culumon se tinham infiltrado no interior o D-Reaper.
Mesmo sem a sua Treinadora por perto, Antylamon ajuda os outros Digimon nos combates contra o D-Reaper. Ryo a certa altura oferece uma carta a Shaochung, em recompensa pela sua ajuda, e quando a menina a usa, a sua sequência de Carta Escolhida é pura e simplesmente adorável!
É uma pena ela e Antylamon terem ficado de fora da batalha final contra o D-Reaper. De qualquer forma, Shaochung merece crédito pois a sua atitude alegre e inocente dá alguma leveza a uma temporada tão sombria como esta.
Ainda assim, o maior contribuinte nesse capítulo não é ela, é Culumon. O Digimon que serve de mascote a Tamers e que me roubou o coração desde o primeiro minuto. Durante muitos anos, o Togepi foi a criatura mais fofa que alguma vez vi em animação. Mas a verdade é que não tem olhos grandes, orelhas que se encolhem e esticam não termina a suas frases com “culu” (ou “calu”, na dobragem portuguesa).
Durante o episódio em que Takato anda à procura de um Treinador para ele, eu só dizia:
– Escolhe-me a mim! Escolhe-me a mim! Eu tomo bem conta do Culumon! Jogo futebol com ele e tudo!
Mas a verdade é que o Culumon nunca adota ninguém como Treinador. Acaba por ser o companheiro Digimon de toda a gente e de ninguém em particular.
Isto porque Culumon não é um Digimon como os outros – há quem não o considere um Digimon sequer. Nunca o vemos a lutar, mas está sempre lá quando ocorrem digievoluções (bem, quase sempre). Takato é o primeiro a somar dois e dois – mas quando o faz, já o Makuramon lhe tinha deitado as mãos e levado-o para o Mundo Digital.
Culumon é o catalisador da digievolução no universo de Tamers. É a luz da digievolução feita carne pelo Qinglongmon, uma das Bestas Sagradas. Este permite que Culumon fuja para o Mundo Real, para que escape às garras do D-Reaper, evitando que este o use para acelerar o seu crescimento… e no entanto Zhuqiaomon, outra das Bestas Sagradas, envia agentes ao Mundo Real para raptar Culumon. A ideia é que o pequenote use os seus poderes para ajudar vários Digimon a digievoluírem, para poderem enfrentar o D-Reaper.
Confusos? Eu também. Havemos de regressar a esse assunto noutro texto desta análise.
Tal como Shaochung, mesmo perante todos os eventos de Tamers, mesmo depois de raptado, Culumon nunca perde os seus modos inocentes e amigáveis. E o pequenote é irresistível para qualquer um – é um dos que ajuda Ruki a abrir o seu coração, torna-se BFF de Guilmon, Terriermon, aguenta o bullying de Impmon e até o diabrete acaba por se tornar amigo dele. Sobretudo quando emparceiram no resgate a Juri.
Aliás, o maior contributo de Culumon para a luta contra o D-Reaper foi ter ficado ao lado de Juri e, como vimos no texto anterior, ter-lhe salvo a vida.
Eu na verdade fico surpreendida por tão pouca gente falar do Culumon quando se fala sobre Tamers. O pequenote é subvalorizado, na minha opinião.
No próximo texto, por outro lado, vamos falar sobre uma personagem que definitivamente não é subvalorizada. Pelo contrário, é capaz de ser a melhor personagem de Tamers (se não for de todo Digimon enquanto franquia). Fiquem por aí...
Conforme referi antes, em Tamers existem várias crianças com companheiros Digimon na história, vários Treinadores. Apenas três são considerados protagonistas – Takato, Jianliang e Ruki – são os protagonistas. No entanto, a partir da segunda metade de Tamers, em particular nas duas últimas partes do Enredo, pode-se considerar que Juri ganha o estatuto de protagonista – pela maneira como a jovem se encontra, quase literalmente, no centro de tudo o que acontece.
Segundo o site de Konaka, o papel que Juri desempenha na segunda parte de Tamers só foi decidido precisamente quando estavam a escrever o vigésimo-quarto episódio – aquele em que o elenco se prepara para ir ao Mundo Digital. A história familiar da jovem, no entanto, ficou decidida desde o início.
Bem, mais ou menos. De acordo com o site, a ideia inicial era de que os pais de Juri trabalhassem em prostituição. A jovem seria obrigada a ficar em casa a tomar conta da irmã mais nova. (Um momento de silêncio pelas infâncias que posso ter acabado de destruir.)
Não que a versão final da sua história de origem seja muito melhor, verdade seja dita. Juri perdeu a mãe quando ainda era muito nova. Não é muito claro que idade tinha ela ao certo, mas era suficiente para se recordar, ou pelo menos para ter pesadelos sobre isso, mais tarde.
O pai tentou criá-la o melhor que pôde, sozinho, sem grande sucesso. Infelizmente, era de esperar. Numa sociedade tão patriarcal como a japonesa, pouquíssimos homens estariam (estão?) preparados para tomar conta de crianças. Já ouvi falar de um caso parecido, nos anos 50 e 60: um senhor que enviuvou de repente, quando a filha tinha apenas um ano. A criança acabou por ser confiada a uma tia.
O pai de Juri não chegou a esse ponto, mas é possível que tenha casado em segundas núpcias com uma mulher mais nova precisamente para servir de segunda mãe para a filha. Pelo meio, terá decidido que um estilo de educação autoritário era o mais adequado. Com tudo isto, Juri acabou por se afastar emocionalmente do pai. A jovem também revela, a certa altura, que nunca aceitou a madrasta, mesmo reconhecendo que ela era boa pessoa.
Ou seja, Juri não possui nenhuma relação próxima com nenhuma figura parental. Mais: tirando possivelmente o seu irmãozinho, Juri não possui uma relação próxima com ninguém da sua família. É ainda obrigada a trabalhar no restaurante do pai (mais sobre isso adiante).
Juri possui, assim, uma vida familiar difícil, tal como Ruki. Pior ainda. No entanto, reage da maneira completamente oposta. Juri é uma criança alegre, simpática, extrovertida, sempre com um cão de fantoche – sobretudo para divertir o irmãozinho, mas que raramente deixa a sua mão. Enquanto Ruki usava os seus problemas familiares como armadura, Juri enterra-os bem fundo. Ninguém adivinharia – e durante muito tempo ninguém adivinhou – que aquele exterior feliz e bem disposto mascarava uma profunda solidão e baixa auto-estima.
É outra maneira de ser impermeável, se formos a ver. Qual das duas atitudes será a melhor, a de Ruki ou a de Juri? Não sei dizer. Sentir-me-ia tentada a dizer que a atitude de Ruki é a melhor, pois não culminou com a jovem possuída pelo D-Reaper, mas seria simplificar demasiado a questão. Até porque, lá está, a Ruki saiu-lhe menos na rifa e Renamon não foi assassinada.
Mas recuemos um pouco. Conforme referido antes, no início Juri é alegre e simpática. Dá-se bem com Takato, embora goze com ele pela sua paixão por Digimon. Conforme referido antes, o jovem tem um fraquinho por ela. Não é claro que Juri o saiba, preto no branco, mas há uma ocasião em que a menina tira partido disso: quando lhe faz aquilo a que gosto de chamar “olhinhos de Jane” para convencê-lo a apresentar-lhe Guilmon.
Esta vai ser fresca quando crescer...
Talvez seja de assinalar que, até ao momento, Takato assumira que Juri teria medo de Digimon (Culumon inclusive, o que é um disparate, quem tem medo de uma coisinha daquelas…?). Enganara-s redondamente, pois Juri adora Guilmon, desde o primeiro minuto em que o vê. Embora ao Takato, um miúdo fixe, com gostos indubitavelmente masculinos, não ache muita piada ao facto de o companheiro Digimon que ele mesmo desenhou estar a ser descrito como “kawaii”...
Depois de algumas ocasiões em que brinca com Guilmon – juntamente com Takato, Hirokazu, Kenta e outros colegas da turma deles – Juri decide, quase do dia para a noite, comprar um baralho inteiro de cartas de Digimon e aprender a jogar. Isto apesar de, no início de Tamers, ter troçado das mesmas pessoas a quem, agora, pedia que lhe ensinassem acerca daquele mundo.
No mesmo episódio, Juri começa a procurar obsessivamente um companheiro Digimon. Tenta a sua sorte com Culumon, primeiro, mas o seu verdadeiro alvo é um Leomon acabado de se realizar.
Será isto uma cena do Leomon, ter criaturinhas fofas… bem… seduzindo-o para uma inevitável morte? Em Tamers foi Juri, em Tri foi Meicoomon… Bem, todas as aparições de Leomon acabam com ele morto, de qualquer forma, segundo consta.
À primeira vista, tem piada ver um Digimon grande, imponente como o Leomon perseguido por uma menina. A alcunha que Juri lhe dá na dobragem portuguesa, “meu príncipe Leomon” torna tudo ainda mais hilariante. À segunda vista… bem, continua a ter piada, mas também é um bocadinho triste.
No entanto, é triste de todas as vezes quando, no fim do episódio, Leomon não se torna seu parceiro. Juri fica destroçada, além de qualquer consolo, mais do que seria de esperar.
Se isto não é um indício trágico, não sei o que mais será.
Felizmente (ou infelizmente, dependendo da perspetiva), um par de episódios mais tarde, Juri adota finalmente Leomon como companheiro Digimon oficial – no mesmo episódio em que Makuramon deita as mãos a Culumon, levando-o para o Mundo Digimon.
Quando o elenco de Treinadores decide ir ao Mundo Digital, no episódio seguinte, temos o primeiro vislumbre da vida familiar de Juri. Vemos o pai trabalhando no restaurante com a esposa – uma mulher que, por sua vez, não é a que aparece na fotografia emoldurada no quarto de Juri, com esta em bebé.
A jovem não avisa ninguém na sua família que vai para o Mundo Digital – outro indício trágico. Nem todos no grupo dizem toda a verdade aos pais, mas sempre deixam uma carta ou um e-mail ou uma história qualquer – nenhuma opção é a ideal ou mesmo correta, mas sempre é melhor que não dizer absolutamente nada.
Queria agora falar sobre um episódio da terceira parte do Enredo que, confesso, adoro odiar: sobre uma colónia de Geckomon que é escravizada por um Orochimon alcoólico, obrigamos a fazer-lhe saqué (uma espécie de vinho de arroz, sendo a bebida nacional do Japão). Numa das ocasiões em que o grupo de Treinadores se separa, todos menos Takato, Jian e Terriermon vão parar ao mini-universo onde vive essa colónia.
A certa altura, o Orochimon deita as mãos (figurativamente) a Juri. Leomon tenta salvá-la, como seria de esperar, mas não é bem sucedido. Enquanto o Orochimon a leva, Juri grita a seguinte pérola:
– Leomon, eu vou ficar bem! Não te esqueças que o meu pai tem um restaurante! Estou habituada a lidar com bêbados!
Juri. Com dez anos. Sabe lidar com bêbados. É para rir ou para chamar a CPJ?
Um rápido àparte: depois de ver este episódio pela primeira vez, tive de descobrir como é que a dobragem americana, infame pelo seu puritanismo (como substituirem o vinho do Wizarmon por molho picante ou, pior, Vandemon “banindo” o Gottsumon e o Pumpmon para a sua “cave”, em vez de assassiná-los) descalçaria esta bota. Pois bem, substituíram o saqué por batido de leite. Eu fiquei uns bons dez minutos a rir-me com esta…
Em retrospetiva, não sei se inclua isto na lista de indícios trágicos sobre a família de Juri. Sinto-me tentada a incluir. Não estou a ver nenhum digiguionista a colocar esta fala na boca de uma menina de dez anos como se nada fosse.
Em todo o caso, por retorcido que seja, a experiência de Juri com alcoólicos sempre lhe dá coragem e capacidade para lidar com o Orochimon (a história deste episódio, aliás, parece ter sido inspirada pela Lenda do Orochi). Se acreditarmos que o CD drama Digimon Tamers 2018 faz parte do cânone (mais sobre isso um dia destes), em adulta Juri torna-se professora. E de facto, depois de ter lidado com bêbados em criança, lidar com alunos e respetivos pais será um piquenique.
Regressemos ao Orochimon. A ideia de Juri era embebedá-lo, mas, longe de entorpecê-lo, o saqué dá mais força ao Digimon. Felizmente, na altura em que a jovem se apercebera do seu erro, já Leomon e os outros tinham conseguido chegar junto dela. Juri saca de uma carta da LadyDevimon, de todos os Digimon, ajudando Leomon a salvar o dia.
É de facto uma pena que a sua história com o Leomon tenha sido tão curta. Juri parecia ter potencial enquanto Treinadora e acabámos por ver muito pouco disso.
Temos então de falar sobre o ponto de viragem da história dela, infelizmente. O grupo acabara de se reunir de novo e Beelzebumon viera para cumprir a sua parte do acordo com o Chatsuramon. No início do combate, Leomon agarra Beelzebumon, impedindo-o de desferir um golpe, potencialmente fatal, em Kyubimon. Leomon consegue ler a situação e tenta avisar Beelzebumon que este está a ser manipulado.
A resposta de Beelzebumon a este aviso é, quase literalmente, arrancar o coração a Leomon.
É importante chamar a atenção para as últimas palavras de Leomon em vida – “Parece que é este o meu destino” – pois estas serão uma faceta importante do trauma de Juri. Por outro lado, o aparecimento de Megidramon também terá agravado a situação para a menina. Ver o Guilmon, o primeiro Digimon que Juri conhecera e a quem se afeiçoara transformado naquela monstruosidade. Ver Takato, o seu amigo, potencial interesse amoroso, um rapaz até agora simpático e gentil, exprimindo tamanha raiva e instintos assassinos.
Como vimos antes, o combate contra Beelzebumon estende-se por três episódios. Neste intervalo de tempo, o Megidramon “desdigievolui” e digievolui para Dukemon. No momento em que este último se prepara para acabar com Beelzebumon, Juri impede-o. Sabe que isso não trará Leomon de volta, não deseja mais lutas ou morte. Não por sua causa. E apesar de ela não o dizer preto no branco, eu apostaria que a menina não quer que Takato e Guilmon se tornem assassinos por sua causa.
O anime de Digimon sempre deixou bem claro que perder um companheiro digital é traumático, independentemente das circunstâncias. Mesmo em universos onde estes regressam à vida. No caso de Ken, em 02, por exemplo, em que o próprio teve culpas na perda de Wormon, a morte deste desencadeia todo um processo de redenção pelo sofrimento que causou. O renascimento de Wormon representa a sua segunda oportunidade.
Por sua vez, pode-se argumentar que o destino não foi assim tão duro com Takeru, pois este recebeu o Digiovo do Patamon menos de um minuto após o sacrifício de Angemon. Este, mesmo assim, guardou o trauma durante anos – em 02, em Tri. Estou convencida de que a experiência da perda influenciou as suas decisões em Kokuhaku, que contribuíram, pelo menos em parte, para o Reinício de todos os companheiros Digimon do elenco.
No que toca a estes últimos, vemos as consequências desta perda a curto prazo nos restantes filmes de Tri. Na minha opinião, tal trauma pode tê-los impedido de eutanasiarem Meicoomon mais cedo, evitando inúmeros danos colaterais, sobretudo a morte de Daigo. Pergunto-me se o trauma do Reinício será referido em Last Evolution Kizuna, o próximo filme de Adventure.
Por fim, Maki foi a única Escolhida no universo de Adventure (exceto Meiko) que não recuperou o seu Digimon depois de o perder. Mais: foi a própria Homeostase quem o reclamou sem cerimónia ou piedade. Anos mais tarde, nem a entidade divina nem os seus representantes valorizam ou sequer reconhecem o contributo e o sacrifício de Maki, Daigo e restante grupo das Primeiras Crianças Escolhidas. Pode-se argumentar que Maki teve pior sorte que Juri, pois teve ainda menos controlo sobre o seu destino.
A resposta da Escolhida ao seu trauma foi unir-se voluntariamente ao inimigo, manipulando Escolhidos mais novos e um (ex?) parceiro romântico no processo. E vimos como é que isso acabou.
Tendo tudo isto nem conta, a direção que a história de Juri toma não surpreende. Durante uns quantos episódios, vêmo-la fechada sobre si mesma, fitando a estática no ecrã do seu D-arco, balbuciando frases soltas sobre o destino. A certa altura, quando Takato tenta consolá-la, Juri diz não ser boa pessoa – porque, segundo ela, recuperou demasiado depressa da morte da mãe e, quando o pai casou de novo, nunca aceitou a madrasta, como vimos antes.
Novo indício trágico.
Por outro lado, depois de Ruki regressar da ravina onde resgatara Culumon e desbloqueara Sakuyamon, Juri corre a abraçá-la, aliviada por a amiga ter sobrevivido. Um claro exemplo de um gato escaldado com medo de água fria.
A certa altura o fantoche da menina começa a falar sozinho – qualquer coisa sobre não gostar de tristeza. Depois desta, Juri afasta-se para, segundo os amigos, ir ao WC. Quando regressa, vem… diferente.
Qualquer membro da audiência com mais de dez anos, talvez menos, ou que pelo menos se recorde das Sementes da Escuridão de 02, desconfia logo que aquela não é bem a Juri. Eu não cheguei logo a “substituída por um dos agentes do D-Reaper”, pensei primeiro que ela estaria possuída por qualquer coisa.
Os miúdos atribuem o seu estado catatónico a uma nova fase da sua depressão. Mas, confesso, custa-me a acreditar que ninguém tenha reparado nos olhos dela.
Em todo o caso, “Juri” regressa ao Mundo Real juntamente com os outros Treinadores. O regresso dos miúdos é um evento bastante mediático, com os vários familiares acorrendo ao local (uma variação interessante em relação ao universo de Adventure), mas Juri não tem ninguém à espera dela. Quando conseguem entrar em contacto com o seu pai, este responde que, se a filha foi capaz de ir ao Mundo Digital sem avisar ninguém, será igualmente capaz de vir sozinha até à casa dos familiares onde se tinham abrigado. E é se quiser.
Novo indício trágico, um particularmente duro. É certo que Tadashi não sabia tudo por que a filha passara no Mundo Digital. Mesmo assim, que pai se recusa a vir buscar a filha após esta ter estado desaparecida, por muito zangado que esteja?
Eu confesso que, da primeira vez que vi Tamers, não simpatizei nada com o pai de Juri. Sobretudo no momento em que, quando reencontra a “filha”, a puxa com brusquidão para o táxi. Mesmo agora sabendo toda a verdade, continuo a achar que Tadashi vai longe demais. Uma coisa é ser-se severo. Outra coisa é ser-se cruel. Por muito zangado que Tadashi esteja, não sem razão, ele é o adulto. Aquilo não é aceitável.
Mas estou a adiantar-me. Recuemos um pouco. Quando se descobre, então, que Juri não tem ninguém que a leve a casa, Takato oferece-se para acompanhá-la de comboio.
Confesso que me faz alguma confusão duas crianças de dez anos andando sozinhas de comboio, de noite. Suponho que, se foram capazes de sobreviver ao Mundo Digital com apenas um par de traumas psicológicos, hão de conseguir sobreviver aos transportes públicos. Ao menos têm uma criatura que cospe bolas de fogo a protegê-los.
O mutismo de “Juri” continua durante a viagem de comboio. Takato aproveita a ocasião para abrir o seu coração perante a “amiga”: faz um misto de declaração de amor e de culpa por aquilo que aconteceu ao Leomon, por não ser capaz de consolá-la, por agora ela estar naquele estado catatónico. Tudo isto regado com lágrimas porque Takato.
Não sei se é suposto sentirmos pena do miúdo neste momento, mas eu não consigo evitar irritar-me um bocadinho. Esqueçamos que aquela não é a verdadeira Juri. A menina perdera o Leomon no Mundo Digital. Ao regressar ao Mundo Real, o pai nem se dignara a vir buscá-la – tinha de estar a regressar com Takato, de comboio, à noite. A última coisa de que Juri precisava neste momento era de fazer o amigo sentir-se melhor consigo mesmo. A paixoneta e sentimentos de culpa não são para aqui chamados.
Faz lembrar aquele episódio de How I Met Your Mother, em que Robin descobre que não pode ter filhos. Quando imagina a reação da melhor amiga, Lily, à notícia, imagina-a virando os holofotes para si, choramingando que é uma péssima, obrigando a própria Robin a consolá-la. A previsão revela-se certeira pois, quando Robin lhe conta uma história para encobrir o verdadeiro motivo da sua tristeza, Lily tem a mesma reação.
Por outro lado, é óbvio que Takato não tem más intenções. Pelo contrário, está a tentar ajudar. Além disso, ele tem dez anos, é demasiado para compreender estas subtilezas. Há adultos que não as compreendem.
De qualquer forma, nem Takato nem ninguém merece receber a resposta que “Juri” lhe dá: ler em voz alta a composição nutricional do snack que Takato lhe comprou. Até a mim me doeu…
Juri reúne-se, então, com a família. Culumon fica com ela. Logo no episódio seguinte, vêmo-lo brincando com o irmãozinho de Juri. A certa altura, o menino cai, começando a choramingar. A mãe dele (madrasta de Juri) consola-o da forma habitual, dizendo algo como:
– Já passou. Já passou.
Nisto aparece “Juri”. Esta empurra o menino contra o chão, ambas as mãos nos ombros dele, repetindo monocordicamente as palavras da madrasta: “Já passou. Já passou.”
Acho que teria sido um pouco menos assustador se ela tivesse pura e simplesmente tentado esganá-lo.
Mais tarde, a madrasta dá pela falta da enteada. Quando pergunta ao filho, este responde que a irmã desaparecera “pela parede” – só mesmo uma criança muito nova para ver algo assim e não estranhar.
Se até este momento existia alguém na audiência que ainda pensasse que aquela era a verdadeira Juri, depois desta não há margem para dúvidas. Sobretudo quando Takato a vislumbra em Shinjuku, no intervalo das lutas do D-Reaper – a uma distância considerável da casa onde devia estar abrigada com a família.
É nesta altura que se descobre que Juri está desaparecida. Takato torna a vê-la em Shinjuku – desta feita, com palavras niilistas nos lábios. De notar que o jovem é o único a vê-la. Nem Jian nem Ruki parecem dar por ela. Mais tarde, aliás, quando os três protagonistas estão a lutar contra o D-Reaper, já conjugados com os seus Digimon, nas suas formas Extremas, o D-Reaper escolhe agarrar Dukemon e trazê-lo para o seu núcleo.
Aqui Takato e Guilmon separam-se – as formas Extremas não se aguentam no núclo do D-Reaper – e tornam a encontrar “Juri”. Esta finalmente revela a sua verdadeira identidade: nada menos de um dos agentes do D-Reaper, conhecida por J-Reaper ou Juri-Type, que substituíra a verdadeira Juri após esta ser raptada pelo D-Reaper ainda no Mundo Digital.
A J-Reaper viera infliltrada entre os Treinadores para o Mundo Real para analisar a humanidade. Estudara a mente de Juri, bem como as pessoas com quem contactara – só refere a depressão da menina, mas eu pergunto-me se a declaração lacrimosa de Takato, os modos bruscos de Tadashi, as lamúrias do irmão mais novo também foram objetos de análise. Chegara à conclusão de que os seres humanos são demasiado irracionais e instáveis para existirem, devendo, por isso, ser eliminados.
A verdadeira Juri estava presa no núcleo do D-Reaper, mantida num transe de pesadelos. A J-Reaper tentara, inclusivamente, fazer o mesmo a Takato, esfregando-lhe no nariz recordações roubadas a Juri – é a intervenção de MarineAngemon e Kenta que o salva.
Um dos pesadelos de Juri centra-se na morte da mãe e na justificação que tanto o pai como os médicos lhe tinham dado:
– É o destino.
É provável que tanto Tadashi como os médicos tivessem usado esta expressão no sentido de “Não havia nada que ninguém pudesse fazer”. Juri, no entanto, internalizou a mensagem como o Universo conspirando ativamente para que a menina perca aqueles que ama. Primeiro a mãe, em tenra idade, depois o Leomon. Talvez tivesse determinado que o pai se afastaria emocionalmente dela. Daí o D-Reaper repetir monocordicamente a palavra “destino” na voz de Juri.
São cenas horríveis, os pesadelos de Juri. Realmente, todo este terror, todas estas monstruosidades catalisadas pelos traumas de uma menina de dez anos fazem os estranhos poderes de Hikari, no universo de Adventure, a sua estranha relação com as Trevas, parecerem uma ninharia. Até a Ordinemon, que Hikari soltara no mundo quando pensara que tinha perdido o seu adorado onii-chan parece um mero Digimon vilão-da-semana comparado com o D-Reaper e os seus agentes, a Juri-Type em particular.
Quase fico aliviada por não ter visto Tamers em miúda. Acho que teria pesadelos durante semanas – e já tinha doze ou treze anos quando Tamers foi exibido pela primeira vez em Portugal!
Felizmente, por esta altura, Culumon e Beelzebumon conseguem infiltrar-se no D-Reaper. Culumon consegue entrar na esfera onde Juri se encontra, mas Beelzebumon é agarrado pelos tentáculos do D-Reaper e é mantido preso e inconsciente durante alguns episódios.
Quando se descobre que Juri está aprsionada no núcleo do D-Reaper, os seus pais são naturalmente convidados a juntar-se aos adultos de apoio aos Treinadores: os membros do Hypnos, o Grupo Selvagem, os pais dos miúdos.
Vemos a madrasta de Juri a chorar no ombro de Rumiko (com a filha desta última a ver, conforme comentámos no texto anterior), pedindo perdão à falecida mãe da enteada. Tadashi, por sua vez, de início mantém a sua postura fria (da primeira vez que vi Tamers, nesta altura estava a chamar-lhe nomes). No entanto, depressa vemos as coisas sob a perspetiva dele – aquilo que comentámos antes, sobre as suas dificuldades em ser pai solteiro.
É neste momento que lhe saem as garras de papá sobreprotetor. Pega no camião do pai de Takato (o futuro compadre?) e vai até junto do D-Reaper. De início tenta negociar: desfaz-se em lágrimas, pede para tomar o lugar da filha. Quando isso não resulta, pega de novo no camião e tenta atropelar o D-Reaper.
Nada disto resulta mas, pelo meio, o D-Reaper analisa-o. A criatura fica baralhada quando analisa as memórias de Juri sobre o pai – porque, neste universo, os Digimon não têm progenitores e talvez porque a relação de Tadashi com a filha não encaixa com a visão niilista que recolhera até agora. Além que de Juri reage à presença do pai – embora não chegue para sair do seu transe.
Depois desta, há uma cena breve, o episódio seguinte, em que vemos Tadashi debatendo-se contra uma janela do Hypnos, numa das ocasiões em que o D-Reaper fala com a voz de Juri. Tirando isso, Tadashi não torna a aparecer em Tamers – o que é uma pena.
É nesse mesmo episódio, de resto, que Juri finalmente sei do seu transe. O responsável é Beelzebumon, de todas as criaturas possíveis, humanas ou digitais. Depois de algum tempo inconsciente, prisioneiro do D-Reaper, conseguira soltar-se e emparceirar com Dukemon no resgate de Juri. É quando Beelzebumon está a tentar abrir a esfera onde a menina está presa ao murro que esta finalmente desperta. Este, por sua vez, só consegue abrir a esfera quando recorre ao Punho Real, um ataque do Leomon.
Este é um dos poucos casos em que, conforme observámos antes, um Digimon usa poderes de um adversário que absorveu. Embora também seja legítimo uma pessoa interrogar-se se aquilo não será uma manifestação do próprio Leomon, ajudando a salvar a sua Treinadora.
Através do buraco que abriu, Beelzebumon enfiar-se parcialmente dentro da esfera e estende uma mão a Juri. Esta, no entanto, ao ver Beelzebumon usar o Punho Real do Leomon, bloqueara. O buraco na esfera fecha-se de novo antes que a menina conseguisse descongelar.
Naquele momento, uma boa parte da audiência fica com vontade de dar um par de estalos à miúda, por ter deixado fechar aquela quase literal janela de oportunidade. Ainda há semanas, no encontro do Odaiba Memorial Day, estivemos a falar sobre este momento. Mesmo eu, da primeira vez que vi este episódio, fiquei confusa com o final deste – como se estivesse a colocar a última peça de um longo puzzle e esta, por algum motivo, não encaixasse. Porquê, Juri, porquê?
No entanto, se formos a ver, Juri estivera afogada em pesadelos durante dias. Acabara de acordar deles e a primeira coisa que via fora o Digimon que começara tudo aquilo, que lhe arruinara a vida e que, ainda por cima, usava o ataque de marca do Leomon – mesmo a servir de lembrete. Eh pá, eu se calhar também bloquearia! É um daqueles casos – como Takato com o Megidramon – em que o cérebro parece falhar durante segundos, em que uma pessoa se arrepende quase de imediato, mas as consequências são graves.
Também é possível que Juri não tenha ido com Beelzebumon porque não estava preparada para ser salva – não achava que o merecia. Os seus sentimentos de culpa e baixa auto-estima agravam-se quando pensa que Beelzebumon vai morrer – o que, felizmente, não acontece. Juri tenta, então, escapar sozinha, mas o D-Reaper torna a imobilizá-la – desta feita fisicamente. A menina fica assim durante uma semana, pois nesta altura o D-Reaper cresce ainda mais, obrigando os Treinadores a bater em retirada.
No fim dessa semana, quando Culumon diz a Juri que ele só deseja vê-la feliz, a jovem diz que não o merece. Somos, então, brindados com uma tentativa de suicídio num desenho animado que passou no Canal Panda. Uma menina tentando asfixiar-se com um cão de fantoche. Eu… eu nem tenho palavras.
A verdade é que Juri pensa que, se morrer, o D-Reaper será travado (algo questionável nesta fase do campeonato) e os amigos deixarão de correr perigo. Eu suspeito que seja essa a lógica por detrás de muitas mortes por suicídio: acharem que os seus entes queridos estarão melhor sem eles.
Bem, Juri está enganada e não é a única. Morrer por suicídio nunca, NUNCA, é solução, bem pelo contrário! Se alguém com ideias de se magoar a si mesmo estiver a ler este texto, por favor, não o faça, peça ajuda! Vou deixar links para linhas de apoio em Portugal e no Brasil (se alguém conhecer mais linhas, deixe nos comentários). Não estão sozinhos, o mundo precisa de vocês, por favor, peçam ajuda!
Regressando a Tamers, no caso de Juri, é Culumon quem entra em pânico e dissuade a jovem de ceder à sua depressão. Em lágrimas, o pequenote recorda-lhe que há imensas pessoas que gostam dela e querem-a viva e feliz. O próprio Culumon, Takato, Guilmon, Ruki, os seus pais, o seu irmãozinho, até mesmo Beelzebumon.
Isto na verdade não são palavras muito diferentes daquelas que outras personagens tinham dirigido a Juri ao longo de Tamers, Takato sobretudo. Mas até ao momento a mensagem tinha chocado com o muro da baixa auto-estima da jovem. Fora preciso alguém tirar-lhe quase literalmente a arma da mão, alguém sujeitar-se às torturas do D-Reaper só para estar ao lado dela, para Juri acreditar nessas palavras. Para acreditar que merece ser salva. Para acreditar que a própria Humanidade e o Mundo em geral merecem ser salvos, que o destino de ninguém está gravado em pedra, que cada um escolhe quem quer ser.
Sim, ela pede ajuda a Takato à distância, como numa típica história de donzela indefesa. Quando sai finalmente do D-Reaper, vai literalmente nos braços do seu interesse amoroso. Mas se isto fosse uma típica história de donzela indefesa, Juri teria sido resgatada antes, por Beelzebumon. Juri precisava de acreditar que merece viver, que merece ser salva, antes de aceitar a ajuda dos demais.
Há ainda tempo antes do final de Tamers para Juri conhecer Ai e Mako, os Treinadores de Impmon, e finalmente perdoar este último. Mesmo no rescaldo imediato da morte do Leomon, a menina mostrara misericórdia – era uma questão de tempo até ao perdão. Juri sabe como é ter traumas e deixá-los manifestarem-se de maneiras destrutivas – ainda que tal tenha resultado da manipulação do D-Reaper.
Por fim, a menina aprendera que tanto as pessoas como os Digimon têm a capacidade para mudar. Impmon já o fizera, logo, merecia ser perdoado.
Depois disto tudo, apesar de perder Culumon (que se tornara quase um segundo companheiro Digimon) por causa das consequências da Operação Joaninha, à primeira vista Juri tem um final feliz. No breve epílogo de Tamers, vêmo-la com Takato e os outros colegas de turma, aparentemente satisfeita… mas, lá está, ela também parecera satisfeita antes de as coisas terem dado para o torto.
Eu acho que Juri ainda precisará de algum tempo. A sua bagagem toda – a morte da mãe, a relação difícil com o pai e a madrasta, a perda do Leomon, a tortura do D-Reaper – não se resolve de um dia para o outro, com um mero resgate do seu Príncipe Encantado. Juri não partirá do zero: agora sabem que tem pessoas que gostam dela, que lutaram por ela. Tadashi certamente fará um esforço por ser melhor para a filha. Irá demorar – espero que lhe arranjem acompanhamento psicológico – mas quero acreditar que ela ficará bem, mais cedo ou mais tarde, que se tornará mais forte.
E com isto terminámos a análise aos protagonistas. Como não terei muito a dizer sobre os restantes Treinadores, no próximo texto falarei de todos os que faltam, bem como de Culumon. Fiquem por aí!