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Álbum de Testamentos

"Como é possível alguém ter tanta palavra?" – Ivo dos Hybrid Theory PT

Paramore – This is Why (2023) #1

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No passado dia 10 de fevereiro, os Paramore lançaram o seu sexto álbum de estúdio, intitulado This is Why – o sucessor ao excelente After Laughter

 

As expectativas estavam altas para este álbum. No entanto, quando This is Why saiu, confesso que não me entusiasmou muito. Não que não tenha gostado, mas estava à espera de gostar mais.

 

Talvez tenha sido por, lá está, a fasquia estar demasiado alta – depois de os seus dois antecessores e mesmo Petals For Armor, o primeiro álbum a solo da vocalista Hayley Williams, terem sido tão marcantes para mim, cada um à sua maneira. Talvez estivesse à espera de um álbum diferente. Em minha defesa, pelas entrevistas que os membros da banda foram dando antes e depois da edição de This is Why, pelos dois primeiros avanços, não era a única que estava à espera de um trabalho um pouco mais político/social, mais voltado para o exterior e para a atualidade, pois não?

 

É certo que demorei algum tempo a dar a devida atenção a This is Why. Como tem sido a regra comigo, o timing não foi o ideal. Sobretudo no que toca aos meus músicos preferidos, como os Paramore, a minha maneira de digerir música é escrevendo sobre ela aqui no blogue – e todo o trabalho de análise e pesquisa que isso implica. O que demora. This is Why foi editado no mesmo dia que Lost dos Linkin Park, o primeiro avanço da edição de vigésimo aniversário de Meteora, que saiu daí a dois meses. Dei prioridade a Meteora20 – podem ler aqui como é que isso correu.

 

E a verdade é que a minha opinião em relação a este álbum melhorou imenso quando tive oportunidade de examiná-lo mais de perto. This is Why continua a ter os seus problemas e iremos falar sobre isso. No entanto, acho que é daqueles que precisa de tempo para ser apreciado. 

 

Como o costume, temos imenso sobre que falar, logo, esta análise virá em duas partes. Publico a segunda amanhã.

 

Comecemos pelo princípio. Agora que penso nisso, já lá vai quase um ano desde que surgiram as primeiras pistas relativas a This is Why, o single e o álbum. Às vezes parece-me que já se passou imenso tempo, às vezes parece que tudo se passou na semana passada. Por estes dias, sempre que oiço esta música, regresso ao momento em que esta saiu e em que estava a escrever sobre ela para o blogue: de finais de setembro até meados de outubro, um período muito excitante da minha vida, como referi na altura.

 

 

Mesmo tirando esse aspeto, continuo a gostar imenso de This is Why por si mesma. Continuo a achar que foi uma boa escolha para primeiro avanço.

 

O segundo avanço, The News, foi lançado dois meses depois de This is Why, o single e dois meses antes da edição do álbum completo. Como já muitos assinalaram, musicalmente parece saída de Brand New Eyes – depois de lhe aplicarem um filtro mais moderno, mais rítmico, à Taylor York (guitarrista, co-compositor e a pessoa mais importante dos Paramore). Zac Farro, o baterista, deu-lhe super forte, é uma coisa parva. Uma das minhas partes preferidas são dos acordes de guitarra na terceira parte. 

 

Por outro lado, não sei se aparece nos créditos, mas Zac também canta no pré-refrão, não é? Canta a expressão “the news”, certo?

 

Como na larga maioria das músicas dos Paramore, a letra é a parte mais interessante da música. Hayley escreveu-a aquando da invasão da Rússia à Ucrânia, no ano passado – quando a Comunicação Social e as redes sociais não falavam de outra coisa (no contexto deste álbum, vou assumir sempre que Hayley é a narradora nestas letras). Na verdade, a letra de The News podia ser sobre uma infinidade de eventos da última meia dúzia de anos: a pandemia, obviamente, as alterações climáticas, o #MeToo, O Black Lives Matter, as dificuldades económicas, as transições de poder de Donald Trump para Joe Biden, de Jair Bolsonaro para Lula da Silva, etc. 

 

Nestas alturas, sentimo-nos pressionados a estar informados sobre tudo, a preocuparmo-nos com tudo, a ter uma opinião sobre tudo, a indignar-nos em relação a tudo – o que remete para This is Why. À Comunicação Social interessa manter-nos presos, de modo a obterem mais audiência, mais cliques, mais interações nas redes sociais que estimulam os algoritmos – daí usarem e abusarem do sensacionalismo e do clickbait (“Exploitative, performative, informative”). 

 

Uma pessoa tenta desligar-se para proteger a sua sanidade mental, mas depois sente-se culpada pela apatia, por poder, nalguns casos, dar-se ao luxo de desligar, de não querer saber, de não ter a sua vida diretamente afetada pelo que está a acontecer (“I’m far, so far, from the frontline, quite the opposite, I’m safe inside”). Embora na prática, muitas vezes haja muito pouco que uma pessoa possa fazer, tirando, lá está, fazer donativos quando pode, votar quando há eleições ou participar em manifestações. 

 

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E depois temos o nosso retângulo português, em que por vezes as notícias são só estúpidas. Veja-se o tempo que se gastou com aquilo a que gosto de chamar o Galambagate. O que não deixa de ser outra maneira de nos manipular – desta feita por alienação.

 

A frase “all along we called it normal” reflete a maneira como muitos destes eventos que motivam grandes coberturas noticiosas expõem falhas da sociedade atual que poucos haviam questionado. O #MeToo e o Black Lives Matter são exemplos óbvios. 

 

Pena Hayley não ter desenvolvido esta ideia para além deste único verso, nem mesmo noutra canção deste álbum. É a única falha que tenho a apontar a The News.

 

Algumas notas rápidas sobre o videoclipe. Hayley é fã de filmes de terror e já os tinha usado como inspiração para os vídeos de Petals For Armor. Ao mesmo tempo, a estética do vídeo – quase tudo em tons escuros ou mesmo negros, contrastando com o cabelo cor-de-laranja de Hayley – faz lembrar o vídeo de Ignorance. Só reforça as semelhanças de The News com Brand New Eyes. 

 

A terceira música que ouvimos de This is Why foi C’est Comme Ça. Existem muitos fãs que não gostam desta música, mas eu gosto. Não digo que esteja entre as minhas preferidas, mas não estará muito longe.

 

Compreendo porque é que muitos não gostam. Aquele refrão foi uma jogada arriscada. Consigo ver como alguns poderão considerá-lo repetitivo, esquisito, mesmo irritante. Mas também me pergunto quantos destes fãs serão americanos que não estão habituados a ouvir uma língua que não o inglês. No entanto, acho que resulta muito bem na música: com um toque maníaco que condiz com o tema da letra. 

 

 

Toda a sonoridade é bastante caótica – de uma maneira deliberada, claro. Dizem que é influência dos Bloc Party. Só sei que gosto imenso das guitarras, sobretudo durante o solo. Também gosto das estâncias faladas em vez de cantadas – um elemento até agora inédito na discografia dos Paramore.

 

A expressão “c’est comme ça” traduz-se para “é o que é”. Do género, “é o que é, o que é que se pode fazer?”. Desde que a música saiu, sempre que oiço alguém dizer essa expressão, ou algo semelhante, digo “c’est comme ça” – nem que seja só para mim mesma.

 

A primeira quadra da letra (tirando o refrão) é toda uma referência à vida em pandemia. Todos nós envelhecemos demasiado depressa, todos sofremos e atrofiámos com o confinamento – eu em menor escala, pois pude/tive de trabalhar fora de casa.

 

O resto da letra é mais interessante e específico para Hayley, falando de algo que ela mesma já falou em diferentes ocasiões, incluindo numa publicação no Discord. Hayley tem uma relação estranha com conforto. Tende a romantizar e a desejar conflito e instabilidade. Chegou mesmo a admitir numa entrevista recente que tem um certo vício em adrenalina. 

 

E eu tenho de dizê-lo: sempre tive muitas semelhanças com Hayley, mas nisto não podíamos ser mais diferentes. Não gosto de instabilidade nem de incerteza, não lido bem com adrenalina. Claro que sei que às vezes é inevitável, que uma pessoa tem de sair da sua zona de conforto para evoluir, blá blá blá Whiskas saquetas. 

 

Nem sequer discordo. Diria mesmo que, vá lá, nove em cada dez vezes que faço coisas que me assustam, sou narrativamente recompensada por isso. Tudo bem. Não tenho de gostar.

 

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Regressando a Hayley, a apetência dela para o caos não surpreende pois a vida dela sempre foi assim – e eu falo do alto do meu privilégio, a minha vida tem sido bem mais fácil por comparação. Como já muitos sabem, a infância dela não foi fácil, entre os múltiplos divórcios dos pais e a mudança para Nashville quando ela tinha doze anos. A sua adolescência foi igualmente caótica com os Paramore. A vida de uma banda de rock já de si é instável – e esta em particular passou os seus primeiros dez anos em guerra uns com os outros (com algumas pausas pelo meio, assumo eu). Pelo meio, Hayley teve uma relação tóxica que durou uma década. 

 

Por isso sim, o caos terá sido o normal de Hayley durante muito tempo. Ela dá muitas vezes o exemplo do início da era After Laughter, em que tinha acabado de se divorciar, andava em digressão, bebia em excesso e “festejava” todas as noites. Bem como a sua tendência para se envolver com pessoas tóxicas. Acredito que Hayley, de vez em quando, sinta a tentação de reverter para esse modo.

 

Só que, claro, há meia dúzia de anos, o caos quase deu cabo dela. Dela e não só – conforme vimos em Petals For Armor, Hayley chegou a boicotar o seu namoro com Taylor porque não sabia lidar com uma relação saudável.

 

Por isso, Hayley teve de adotar hábitos mais saudáveis, apesar de uma parte de si resistir aos mesmos. E isto de resto é algo mais ou menos universal. Sobriedade, ter uma alimentação saudável, dormir oito horas, tudo isso é uma seca. Beber a mais e outros hábitos auto-destrutivos é que são fixes – pelo menos é o que dizem. 

 

Hayley pode lamentar ser demasiado dependente de conflitos para ser verdadeiramente saudável, ser demasiado movida a mesquinhez – algo a que iremos regressar. No entanto, não acho que seja uma falha, pelo contrário. Saber funcionar no meio do caos é uma grande vantagem – porque, sejamos realistas, nem sempre é possível ter estabilidade. Ainda por cima, volta e meia os Paramore vão em digressão, uma vida claramente instável. Um dos temas da era This is Why é dualidade e iremos falar sobre isso mais à frente. Uma das grandes vantagens de algo multifacetado é a capacidade de se adaptar – algo que a seleção natural favorece, segundo Darwin.

 

Por tudo isto sim, gosto de C’est Comme Ça. E fico feliz por a auto-depreciação de After Laughter não ter ido a lado nenhum.

 

 

Running Out of Time foi lançada como single, com direito a videoclipe e tudo, mais ou menos na mesma altura em que o álbum todo foi editado. Esta música, no entanto, no contexto de This is Why fica esquisita. Sobretudo tendo em conta a sua posição no alinhamento do álbum. Passamos de The News, um tema inspirado pela guerra na Ucrânia, como vimos antes, para um tema sobre a tendência de Hayley para se atrasar para tudo.

 

Não me interpretem mal, eu identifico-me com isso. Também não sou das melhores a gerir o meu tempo. Sobretudo no último ano, ano e meio, em que tenho tido imensas coisas a acontecer ao mesmo tempo na minha vida. É raro atrasar-me mesmo – na maior parte dos casos, chego em cima da hora ou, quanto muito, cinco minutos depois. Por outro lado, dá para ver que demoro séculos a publicar aqui no blogue. 

 

Aliás, Running Out of Time descreve bem o dia em que This is Why foi editado. Na véspera tive uma insónia, logo, aproveitei para ouvir o álbum pela primeira vez na cama. Como adormeci mais tarde, acordei mais tarde do que planeara e passei a manhã a correr. 

 

E sim, muitas vezes é egoísmo. Quero ficar mais uns minutinhos na cama, quero escrever mais um bocadinho durante a minha hora de almoço, quero fazer uma última festinha à Jane antes de sair para o trabalho. Quem nunca?

 

O problema é que a letra de Running Out of Time é demasiado trivial. É o equivalente dos Paramore à Runaway de Avril Lavigne. Noutro álbum e/ou noutras circunstâncias não me importaria, mas logo a seguir a The News? Num álbum que inclui temas como Figure 8 e Thick Skull? Não encaixa.

 

O pior é que não tinha de ser assim. A propósito desta música e de não ter tempo para nada, Hayley comentou que, hoje em dia, “tudo é uma emergência”. Existem demasiadas causas a precisarem de atenção, uma pessoa não sabe para onde se virar e ainda tem de arranjar tempo para cuidar de si mesma – o que remete para The News.

 

 

Ao mesmo tempo, nesta altura do campeonato, já toda a gente saberá acerca dos problemas de saúde mental de Hayley. É possível que estes estejam por detrás dos constantes atrasos – há quem ache que o videoclipe remete para isso. E faz sentido: se uma pessoa nem sempre se consegue levantar da cama, claro que se irá atrasar para muitas coisas. 

 

Tudo isto podia ter dado uma ou duas camadas de profundidade a Running Out of Time, mas nada disto foi traduzido para a letra. Isto já tinha acontecido com algumas músicas dos trabalhos a solo de Hayley: as explicações dela sobre as letras são mais interessantes que as letras em si. 

 

Tendo isto em conta, não consigo gostar muito de Running Out of Time – embora reconheça que é uma boa música. 

 

E de qualquer forma, esta sempre tem alguns detalhes interessantes. O instrumental é irrepreensível, para começar. Além disso, acho graça ao segundo e terceiro refrões, quando Hayley muda para a terceira pessoa: “She’s always running out of time”. É um tropo relativamente comum, a voz do coro nas tragédias gregas, que comunica as mensagens da história para a audiência. Lorde usou-a muito em Melodrama, como explicaram neste vídeo

 

Acho curiosa a explicação de Hayley, no entanto. Referiu que se inspirou nos Oompa Loompas do filme Willy Wonka e a Fábrica de Chocolate, que desempenham um papel semelhante: ir dizendo verdades. Tem piada, diferentes caminhos para chegar ao mesmo conceito. 

 

Dito isto, teria sido mais giro se tivessem posto o Zac e o Taylor a cantar “She’s always running out of time”. Sempre seriam múltiplas vozes, reforçando as semelhanças com os coros ou com os Oompa Loompas. E teria a piada adicional de ouvirmos os colegas de banda queixando-se daquilo que parece ser um problema antigo de Hayley. 

 

 

Vou passar agora de uma música de que não gosto tanto para uma música de que gosto ainda menos. Big Man, Little Dignity é, na minha opinião, uma grande oportunidade perdida. 

 

A instrumentação é suave, mesmo bonita, mas não se adequa de todo ao tema da canção. Eu sei que os Paramore têm várias músicas em que o instrumental tem o carácter oposto ao da letra – veja-se a larga maioria de After Laughter – mas nessa a dissonância funciona. Aqui não. 

 

Em parte porque a letra acaba por ser igualmente suave, não havendo verdadeiramente um contraste. Para uma música criticando o patriarcado e/ou a masculinidade tóxica, Big Man, Little Dignity precisa desesperadamente de acutilância.

 

O refrão então é o pior. Nos últimos anos, e depois dos dois últimos álbuns de Avril Lavigne, ganhei alergia a refrões circulares, logo, isto poderá ser um viés meu. Até porque os Paramore também têm alguns: That’s What You Get, por exemplo. Mas o de Big Man, Little Dignity soa particularmente forçado. Sobretudo o último verso, quando Hayley se põe com o “li-li-li-li-little dignity”.

 

E podemos falar sobre o verso “No offense but you got no integrity”? O que é isto? É suposto isto ser ofensivo? A mulher que escreveu a letra de Dead Horse não conseguiu escrever nada melhor aqui?

 

Dito isto, Big Man, Little Dignity sempre tem algumas qualidades redentoras. A segunda estância faz-me lembrar Dominoes de Lorde: “Must feel good being Mr. Start Again”. Também eu comecei a reparar na maneira como certos homens poderosos embarcam em mudanças de imagem, como forma de fugir às responsabilidades por aquilo que fizeram. Veja-se quando o Facebook mudou o seu nome para Meta como forma de se dissociar das acusações de promoção de desinformação e de discurso de ódio. Mais recentemente, o Twitter mudou o seu nome para X – pergunto-me se terá sido por motivos semelhantes. 

 

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Ao mesmo tempo, é de facto frustrante ver como estes homens conseguem escapar-se às consequências pelos seus actos. Como Donald Trump, por exemplo. Andamos há anos à espera que ele seja preso, mas ainda ninguém conseguiu fazer nada. Como uma barata grande e nojenta que ninguém consegue matar.

 

Enfim. Estou com algumas esperanças relativamente a esta última acusação que lhe fizeram.

 

Big Man, Little Dignity é a música de que menos gosto em This is Why. O resto do álbum é melhor, felizmente.

 

You First e Figure 8 são as músicas mais pesadas neste álbum, logo, estão entre as mais populares. Das duas gosto mais de You First – uma música que Taylor não queria incluir no álbum, coitado, depois de ter stressado imenso com ela.

 

Não compreendo porquê. O instrumental ficou fantástico. Penso que será uma daquelas situações em que, por vezes, uma pessoa está demasiado perto do quadro para conseguir ver a imagem completa.

 

Hayley começa por admitir que não é o tipo de pessoas que perdoa e segue em frente. Os anglo-saxónicos têm uma expressão que se traduz sensivelmente para “a melhor vingança é viver bem” – e eu até concordo. Mas também concordo com Hayley quando esta diz que viver bem é apenas um privilégio. Como vimos a propósito de Big Man, Little Dignity, demasiadas vezes os perpetradores de crueldades escapam às consequências e continuam a fazer mal a outros. 

 

 

E se pensarmos, por exemplo, no ex-marido de Hayley, ela não dependia financeiramente dele, não teve nenhum filho com ele, pôde sair daquela situação com relativa facilidade. Tem dinheiro e disponibilidade para ser acompanhada psicologicamente enquanto lida com os traumas do seu passado e para adotar hábitos de vida saudáveis. Há muitos que não têm tais possibilidades. 

 

É refrescante ouvir alguém como Hayley reconhecendo a sua posição privilegiada. 

 

No fundo, You First é uma continuação dos temas de Simmer: não só o conflito entre raiva e misericórdia, o conflito entre instintos benévolos e malévolos. Hayley admite ceder demasiadas vezes ao seu lado negro – como um animal vadio a quem ela dá comida todos os dias, logo, ele continua a aparecer. Ao ponto de Hayley se tornar parte do problema e isso voltar-se contra ela. 

 

É a isso que se refere o muito citado verso “I’m living in a horror film where I’m both the killer and the final girl”. Para mim, é também uma referência ao vídeo de Simmer. 

 

O refrão fala de carma – que Hayley espera que apanhe primeiro os demais do que a ela. Se eu acredito em carma? Mais ou menos. De certa forma sim: não tanto como uma força cósmica, mais pela lógica do “Não faças aos outros aquilo que não queres que façam a ti”. Se uma pessoa trata mal os outros, é menos provável que os outros a tratem bem. Pode ser até que os outros procurem retribuição. 

 

Há anos que sei que Hayley tem um lado mesquinho. Desde Dead Horse, com o “When I said goodbye, I hope you cried” – não que eu tenha pena do visado. Por outro lado, Hayley tem dado o exemplo de quando interrompe concertos por causa de pessoas à bulha na audiência. Dá sermões aos visados como se fosse uma professora (palavras dela!), mas depois diz que se arrepende. Como se ela fosse melhor. Pensa que, se calhar, aquelas pessoas não têm dinheiro ou disponibilidade para ir ao psicólogo e aquela é a única forma que têm de lidar com o que se passa nas suas vidas.

 

 

Eu diria que Hayley tem, vá lá, noventa por cento de razão nos seus ralhetes. Nos Estados Unidos, para além de os bilhetes serem caríssimos, as empresas que os vendem têm umas práticas muito manhosas para inflacionar os preços (para mais informações, vejam este vídeo). Ao ponto de os fãs de Taylor Swift terem processado a Ticketmaster no final do ano passado. Por outras palavras, aquela gente terá gasto dinheiro e anos de vida para estar num concerto dos Paramore. Ou seja, não será por falta de capital que eles não são acompanhados. Quanto muito andou a gastá-lo no sítio errado – parecendo que não, concertos não substituem o psicólogo.

 

E, como a própria Hayley disse, concertos devem ser um escapismo, um lugar seguro, das melhores experiências da nossa vida (mais sobre isso adiante). Sobretudo depois de dois anos de pandemia e de muitas outras desgraças. Para quê estar a passar por tantos obstáculos para arranjar bilhetes para, depois, estragar a noite a si mesmo e aos outros andando à porrada?

 

Além de que os ralhetes de Hayley chegam a ter piada. Por exemplo, um em que ela disse mesmo “Momma’s pissed, y’all” e outra em que ela ameaçou os desordeiros com uns chutos no rabo com os seus “sapatinhos de bailarina”.

 

Se bem que ameaçar pessoas violentas com violência contraria ligeiramente a mensagem do sermão. 

 

Por outro lado, a propósito de outra zaragata, Hayley acabou por pedir desculpa nas redes sociais após ter expulso um casal do concerto. Achou que o ralhete se transformou em humilhação pública. Vendo este vídeo, ela de facto soa um bocadinho cruel sem necessidade. Hayley também pediu desculpa por andar a dizer coisas como “se voltarem no Partido Republicano, estão mortos para mim”. Como se isso convertesse alguém. Até remete para a “cancel culture” que a própria Hayley critica em This is Why: “You’re either with us or you can keep it to yourself”

 

Também eu gosto de pensar em mim mesma como uma boa pessoa, mas tenho os meus momentos. Tenho um lado egoísta, egocêntrico e arrogante. Irrito-me facilmente com outras pessoas, impaciento-me no trabalho com a ignorância e a exigência de certos utentes – quando eu mesma também não sei tudo, também cometo erros e passo por estúpida de vez em quando. Quando devia praticar a máxima do Ted Lasso e ser curiosa antes de tecer juízos de valor. 

 

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É um dos temas deste álbum: a dualidade de tudo, de herói e de vilão todos temos um pouco. Havemos de regressar a esse assunto. 

 

Depois de You First, temos Figure 8 – que, em linha com o que acabámos de dizer, explora o lado mais vilanesco. A letra é, se calhar, um pouco vaga demais, demasiado abstrata. Pelo que consigo deduzir da entrevista da banda a Zane Lowe, a letra falará da indústria musical, do próprio estilo de vida dos Paramore em digressão ou quando lançam um álbum. A maneira como essa vida os explora até ao tutano e os transformam em algo de que Hayley não gosta. 

 

Não digo que eles não tenham razão de queixa, mas esta mensagem pode cair mal. Pode parecer que eles estão a cuspir no prato que os alimenta – ainda por cima quando Hayley se põe a dizer “all for your sake”. Sim, a indústria musical não é meiga, mas existem por aí muitos músicos que não têm nem metade dos benefícios de que os Paramore gozam. 

 

Para ser justa, não se pode dizer que eles não reconhecem os seus próprios privilégios. E, de qualquer forma, quando Hayley canta “all for your sake”, pode estar a dirigir-se à comunicação social. Esses sim, fartam-se de lucrar à custa de músicos como os Paramore. Hayley de vez em quando refere as entrevistas agressivas que teve de dar durante a era de After Laughter, quando ela se encontrava numa situação particularmente vulnerável.

 

A expressão “figure 8” refere-se ao número 8 que, na horizontal, é também símbolo do infinito – representando o ciclo vicioso em que os três entram quando entram em modo Paramore. 

 

 

No Genius, no entanto, descobriram referências a um episódio de Schoolhouse Rock, um programa educacional americano dos anos 70 e 80. A expressão “spinning in an endless figure 8” parece ter inspirada pela cena da criança a patinar no gelo. De facto, na terceira estância, Hayley compara-se a si mesma a gelo fino, o que pode significar duas coisas. Ou que ela, lá está, se encontra numa posição vulnerável e pode ser magoada facilmente. Ou, ao contrário, Hayley é uma armadilha e, se a outra pessoa não tiver cuidado, pode sair magoada.

 

Não surpreende que Figure 8 esteja entre as mais populares neste álbum.

 

E ficamos por aqui hoje. Amanhã vem o resto. Como sempre, obrigada pela vossa visita. Espreitem a página de Facebook deste blogue. Até amanhã!

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