Terceira e última parte da análise a Kizuna. Podem ser as partes anteriores aqui e aqui.
1) Spoilers: esta análise vai discutir extensamente os eventos do filme Digimon Last Evolution Kizuna e poderá também revelar detalhes dos enredos das três temporadas do universo de Adventure (Aventure, 02 e Tri). Leia por sua conta e risco.
2) Alguns conceitos próprios de Digimon têm traduções controversas – na língua portuguesa têm mais do que uma possível. Neste texto, vou adotar as traduções com que estou mais familiarizada e/ou que considero mais adequadas.
3) Conforme tinha dito que faria quando terminei as análises a Tri, para esta análise vou usar os nomes japoneses.
Esta agora vai doer.
Como disse antes, fiquei à espera de uma solução milagrosa para a contagem decrescente até ao último minuto. Recusava-me, uma parte de mim ainda se recusa, a aceitar aquele destino. E, em minha defesa, temos o epílogo de 02 na equação, mas falamos sobre isso mais tarde.
Para já, Taichi e Yamato levam separadamente os respectivos Digimon a ver a vista, à hora do pôr-do-sol, quando a contagem decrescente está quase no zero. Yamato comprou, inclusivamente, uma harmónica para a ocasião – gosto de pensar que Taichi e Agumon o ouviram tocar, mesmo à distância.
Finalmente, Agumon e Gabumon perguntam aos parceiros o que vão fazer no dia seguinte. Taichi e Yamato olham para o horizonte, pensando na questão. Vemos duas borboletas voando em direção às nuvens. Quando os dois rapazes – os dois homens – estão preparados para responder e olham para o lado, Agumon e Gabumon já não estão lá. Os dispositivos digitais apodrecem. As mãos que os seguiram tremem e lágrimas caem nos dispositivos.
Éramos três a chorar.
Ainda há tempo para umas últimas imagens de Taichi e Yamato, vários meses mais tarde – como as cerejeiras estão em flor, é capaz de ser a primavera seguinte. Parecem satisfeitos. É um alívio, este final já é suficientemente triste. Já viram como seria se a última imagem que tivesse de heróis que conheço e adoro há duas décadas fosse deles soluçando (de forma bem audível) sobre os seus dispositivos?
Os créditos finais incluem imagens de cada um dos doze protagonistas do universo de Adventure nas respectivas vidas e carreiras. De notar que os da geração de 02 (incluindo Takeru e Hikari) aparecem nas fotografias com os seus Digimon, mas os mais velhos não. A última imagem é a da tese de Taichi, sobre a relação entre a Humanidade e os Digimon.
Não que sirva de grande consolo para mim. Pelo menos não de início.
Bom trabalho, digiguionistas. Kizuna é oficialmente o trabalho ficcional que mais me arrasou emocionalmente. Ainda mais que Kokuhaku e Kyousei na altura em que saíram. Este final fez-me chorar e, como já disse várias vezes aqui no blogue, eu não choro facilmente com estas coisas.
Uma asneira que cometi foi ter visto este filme quando não estava ninguém em casa, nem sequer a minha cadela. Eu escolhi essa altura de propósito, para poder ver o filme em paz, sem interrupções. Mas quando Kizuna terminou desta forma, não tinha ninguém que me consolasse. Foi sobretudo nessa altura que me arrependi de não ter esperado para ver nos cinemas, quiçá com outros fãs de Digimon. Não teria de chorar sozinha.
Isso ou, pura e simplesmente, tinha saudades do pessoal que costuma vir ao Odaiba Memorial Day. Ainda tenho. Maldita pandemia…
Hoje, mais a frio, não sei se ia querer chorar em público. Talvez não fosse assim tão mau se não fosse a única em lágrimas (e acho que não seria). Ainda assim, eu aconselharia as pessoas a não assistirem a Kizuna sozinhas e a terem lencinhos por perto. E uma bebida.
Estive semanas sem coragem para ver o filme segunda vez, para escrever este texto. Se não fosse Adventure 2020, teria cortado com tudo a ver com Digimon – era demasiado doloroso. Deixei de querer ouvir música de Digimon, deixei de querer pensar, tanto em Adventure como em Tamers ou mesmo Frontier.
Talvez esta tenha sido uma reação exagerada a algo que não é real, pelo menos no sentido mais rigoroso da palavra. Adaptando uma frase de Chandler, estava a chorar porque deixaram de desenhar o Agumon e o Gabumon. Mas, pelas Bestas Sagradas, como me tenho fartado de dizer aqui, são duas décadas com este elenco! Mesmo tendo passado dez anos afastada de Digimon enquanto franquia, esse laço não se quebrou. São o meu elenco ficcional preferido!
Não digo que ver (e ouvir) Taichi e Yamato chorando sobre os restos mortais dos seus dispositivos tenha sido a pior coisa que me aconteceu na vida. Claro que não. Nem sequer foi a pior coisa que me aconteceu no ano. Mas no ano da desgraça de 2020 não precisava mais desta!
Só recentemente é que me sinto a voltar ao normal. De uma maneira retorcida, o facto de neste momento estar a decorrer o reboot de Digimon Adventure, que me “obriga” a ver um episódio novo todos os domingos de manhã e a escrever uma breve crítica para a página do Facebook pode ter-me ajudado a ultrapassar esta má fase mais depressa.
Escrever esta análise também ajudou. Costuma ajudar.
Temos então de falar da velhíssima questão do epílogo de 02, em que os Digimon estão todos vivos e de boa saúde, em que, aliás, “toda a gente tem um Digimon”. O que contraria o final de Kizuna, e mesmo a regra definida pelo filme, que dita que nenhum adulto funcional pode ser um Escolhido.
Nesta altura do campeonato, fica claro que a Toei há muito se arrependeu do epílogo. Em 2001 incluíram-no porque queriam colocar um ponto final na história deste universo. Queriam criar outros universos, com regras diferentes. Não imaginavam, se calhar, que o universo de Adventure viesse a ganhar tanta popularidade, que quereriam continuar a ordenhar dessa teta quinze, vinte anos depois. Mas agora as sequelas tinham de se encaixar no epílogo que criaram.
Ou pelo menos deviam.
Do que tenho lido por aí, quase toda a gente considera que o epílogo de 02 continua a ser válido. Um dos produtores do filme confirmou-o, mais ou menos, em entrevista. Eu mesma tenho-o interiorizado, sendo essa uma das razões para hoje me sentir menos triste com o final de Kizuna. Eles hão de recuperar os seus Digimon algures nos dezassete anos seguintes.
O que, no entanto, traz consigo as suas questões. Nomeadamente, como é que isso vai acontecer. Talvez Koshiro arranje uma maneira de travar o processo, mesmo revertê-lo – talvez ainda antes sequer de as contagens decrescentes de Joe, Mimi e os outros chegarem a zero, evitando que Gomamon, Palmon e os outros desapareçam. Ou então, talvez só os consigam recuperar anos mais tarde.
Gosto de uma teoria na Internet que defende que, seguindo a lógica de que os Digimon representam a infância, os Escolhidos recuperarão os seus companheiros quando forem pais. Todos nós temos de crescer e tal, mas quando temos filhos e brincamos com eles, a nossa criança interior desperta de novo. Aí, os Digimon regressariam.
Pelo menos explicava porque é que cada um dos doze Escolhidos resolveu reproduzir-se. Já estou a imaginar a Sora:
– O que estás a dizer, Miyako? O Wormon e o Hawkmon voltaram quando a vossa filha nasceu? Também quero! Hei Yamato, faz-me um filho!
Ainda assim, mesmo que seja uma questão de tempo até Taichi e os outros Escolhidos recuperarem os seus Digimon… não deixa de ser cruel, estarem constantemente a tirar-lhes os Digimon, para depois os devolverem, para depois lhos tirarem outra vez. Kokuhaku já fora suficientemente duro. Havia necessidade de estar a sujeitar, tanto o elenco como a nós, na audiência, à mesma perda vezes e vezes sem conta?
Iremos alguma vez saber as respostas a estas perguntas? Com outro filme, um CD drama, qualquer coisa? Infelizmente duvido que tão cedo a Toei vá por aí – se alguma vez for. Agora está a explorar o efeito Adventure de maneira diferente, com o reboot. Se quiserem fazer alguma coisa com este universo, com este elenco, fá-lo-ão na Adventure nova.
É possível que nunca venhamos a ter a certeza.
Achava eu que o elenco de Tamers era o menos afortunado, com aquela despedida traumática. Agora já não sei quem teve a pior sorte. Ao menos Takato, Ruki e os outros sabem que os seus Digimon estão vivos (ainda que nada seja garantido naquela versão distópica do Mundo Digital) e que a probabilidade de se reencontrarem não é zero.
Já me garantiram, sem dar spoilers, que existem universos no anime em que as personagens têm companheiros Digimon e continuam com eles no fim. A minha sanidade mental agradece.
Mas basta de lamúrias – pelo menos por agora. Kizuna pode ter um final doloroso, o que não é sinónimo de um final mau. Toda a narrativa do filme foi construída de forma sólida conduzindo a este desfecho. O tom sério e melancólico, o facto de mostrarem as dificuldades de ser um Escolhido enquanto adulto, a ideia subjacente em cada diálogo de que “as coisas não podem ficar para sempre na mesma”.
Se Kizuna tivesse arranjado uma solução milagrosa à última hora, uma maneira caída do céu de Agumon e Gabumon sobreviverem, eu teria poupado muitas lágrimas, mas respeitaria muito menos o filme. Seria uma cobardia.
Porque Kizuna em si, no geral, está muito bem feito. É certo que é mais fácil ser-se consistente com um filme de noventa minutos, com apenas dois protagonistas – uma temporada com cinquenta ou sessenta episódios de vinte minutos com um elenco alargado ou uma série de seis filmes são muito mais complicados. Mas não deixa de ser um feito.
Especificando um pouco mais, gosto da animação, do estilo do desenho – mais do que do de Tri. O filme pode só ter dois protagonistas, mas gostei que os outros dez Escolhidos tivessem todos aparecido, mesmo outros fora do grupo. Acho que foram bem utilizados.
Bem, com uma única exceção. Sora. É a única falha que tenho a apontar a Kizuna, mas é uma falha grande. Preparem-se, vem aí “rant”, como dizem os anglo-saxónicos.
Já falámos sobre a curta-metragem focada nela, que justifica a sua ausência da larga maioria do filme: ela quer descobrir quem é fora da vida de Escolhida. Dentro do universo é uma razão perfeitamente legítima para ter ficado no banco, em Kizuna, e é um desenvolvimento interessante para a personagem.
A razão em termos de meta, por sua vez, é muito diferente. Sintam só isto: Sora aparece em Kizuna durante um total inferior a cinco minutos porque os digi-guionistas acharam que os fãs quereriam saber o que se passava entre ela e Taichi e Yamato.
Isto era literalmente a última coisa que queria que fizessem com Sora – recordo, a minha personagem preferida do universo de Adventure. Reduzirem-na ao papel de interesse romântico, assumirem que a audiência só quer saber dela como pretendente de Taichi ou Yamato. É insultuoso em tantos mas tantos níveis!
Eu, por um lado, compreendo em parte a posição deles. 02 emparelhou-a com Yamato, o epílogo oficializou-os ainda que não preto no branco, é claro que as pessoas iam fazer perguntas.
No entanto, na minha opinião, existiam alternativas bem melhores. Deixarem a situação ambígua, como em Tri. Na minha opinião, não funcionou mal – tirando em Soshitsu, em que o esforço dos digiguionistas para não favorecerem nenhum dos rapazes ganhou contornos ridículos. Ou então, opinião impopular: confirmem de passagem que sim, Sora e Yamato namoram e Taichi está feliz por eles! Ninguém morreria por isso!
A entrevista com esta infame declaração surgiu na internet algures em maio do ano passado, vários meses antes de conseguir deitar as mãos a Kizuna. Na altura discuti com outros fãs no Twitter e houve quem ficasse do lado dos digiguionistas. Se não se achavam capazes de explorar essa faceta da história, diziam eles, talvez fosse melhor excluir Sora do filme.
Admito que, na altura, até me deixei convencer um bocadinho. Mas depois de ver Kizuna, depois de conhecer o reduzido papel de Sora nos eventos do filme, voltei atrás. Peço desculpa, mas isto foi cruel.
Em Kizuna, Sora está a passar exatamente pelo mesmo que Taichi e Yamato: com uma contagem decrescente no seu dispositivo digital, prestes a perder a Piyomon. Parece que o dispositivo com uma única barra que aparece muito brevemente durante os créditos iniciais é dela.
No entanto, com Taichi e Yamato vemos o processo todo, praticamente todas as fases do luto, as lágrimas em primeiro plano, os soluços bem audíveis. Com Sora temos apenas uns vislumbres curtíssimos, uma breve cena dela com Piyomon nos braços, outras cenas igualmente breves dela já sozinha, com os restos mortais do seu dispositivo. Não sabemos sequer se alguém lhe explicou o que ia acontecer, porque ia acontecer.
O mais triste de tudo? Sora sendo Sora arranja forças dentro de si mesma para deixar a sua dor de lado e torcer à distância pelos amigos, que estão a lutar na Terra do Nunca. Eles não merecem Sora, ninguém merece.
Lembram-se de quando Sora se queixou, em Soshitsu, de que ela se preocupa com toda a gente mas, quando é Sora quem precisa, ninguém se preocupa com ela? Não que fosse cem por cento verdade, mas agora Kizuna faz-lhe exatamente isso. A sua dor não é relevante. Tudo isto porque os digiguionistas acharam que a audiência ia dizer algo tipo:
– Sim Sora, perderes a Piyomon é muito triste, mas como vai a tua vida amorosa?
Torno a repetir, é uma crueldade. Sora merecia muito melhor. E infelizmente não é a primeira vez que Sora é negligenciada em comparação com outras personagens, no universo de Adventure.
Dito isto… não sei o que faria diferente. Mal por mal, gosto muito da curta-metragem de Sora, tal como escrevi acima. Mantendo a curta, Sora teria de continuar afastada da maior parte dos eventos de Kizuna, não poderia estar entre as vítimas de Eosmon. Pô-la como terceira protagonista, ao lado de Taichi e Yamato, também não bateria certo.
Para mim o ideal teria sido manter Sora fora do epicentro de Kizuna, mas deixá-la conversar com Taichi e/ou Yamato durante o segundo acto, mesmo que fosse apenas por telefone. Talvez ela oferecesse uma perspetiva diferente ao conflito emocional. Ela que, como vimos, quis deixar de ser Escolhida, deseja crescer. Talvez ela aceitasse melhor a perda da sua companheira, quando comparada com os amigos: porque na prática já não tem espaço na sua vida para os Digimon e, lá está, as coisas não podem ficar para sempre na mesma.
Mas seria difícil encaixar essa conversa se tivessem de cumprir o limite dos noventa minutos. Não sei o que cortaria para incluir esta cena.
Além disso, quero acreditar que, lá porque a narrativa de Kizuna ignorou o sofrimento de Sora, isso não quer dizer que o resto do elenco faça o mesmo fora dos ecrãs. Estou certa de que pelo menos Mimi não deixará Sora a chorar sozinha.
Tenho, aliás, um headcannon para as primeiras horas depois de Agumon e Gabumon desaparecerem. Taichi vai passar a noite a casa dos pais, para ser consolado por eles e por Hikari. Por sua vez, Yamato vai ter com Sora e, ao consolarem-se um ao outro, uma coisa há de levar à outra e começam a namorar outra vez.
Mudando de assunto, queria falar sobre as curtas-metragens que foram lançadas após uma campanha de crowdfunding e que detalham histórias sobre os Escolhidos e/ou os seus Digimon que não couberam em Kizuna. Já falámos sobre as duas primeiras. Tirando a que se centrou em Sora, estas curtas só apareceram na Internet há poucas semanas.
A vantagem de ter demorado eternidades a escrever esta análise é ter apanhado este “lançamento” tardio. Agora posso incluir notas sobre essas curtas neste texto.
Estas pequenas histórias têm tons bastante diferentes entre si. Algumas são mais sérias e emotivas, algumas são mais parvas, no melhor sentido da palavra. Algumas são uma mistura de ambos.
Uma dessas é a que se foca em Joe. Gomamon está preocupado porque o seu parceiro em miúdo não gostava de ver sangue. No entanto, agora está em Medicina, ou seja, há de ver sangue todos os dias ou quase.
O que não é necessariamente verdade. Existem especialidades em que não se vê muito sangue. Psiquiatria, por exemplo, oftalmologia (a menos que se fizessem cirurgias e mesmo assim), anatomia patológica (mortos não sangram), investigação…
Em todo o caso, em vez de fazer o que qualquer pessoa ou Digimon com dois dedos de testa fariam – falar com Joe – Gomamon arrasta Agumon para fazerem um teste. Mete ketchup. Tudo muito caricato e tal… até ao momento em que Gomamon leva com um camião em cima.
Falta de juízo dá nisto. E aparentemente os Digimon sangram. As coisas que se aprende…
No fim, Agumon continua na rua, coberto de ketchup, esquecido por todos. Eu pagava para ver a cara de Taichi quando encontrasse o seu Digimon naquela figura.
Noutra curta, que decorre no Mundo Digital, Palmon e Piyomon invejam Silphymon. Como Silphymon se consegue formar sem a intervenção de Hikari e Miyako só as Bestas Sagradas saberão. Palmon e Piyomon tentam fazer a sua própria digievolução ADN. Traduzindo à letra uma expressão anglo-saxónica, segue-se hilaridade.
Aposto que, quando V-mon as viu naquela fatiota, no fim da curta, sentiu pela primeira vez que não era o companheiro Digimon mais totó do universo de Adventure.
Por falar em totó, a última curta diz respeito à épica história de Pumpmon e Gotsumon. Sim, os dois Digimon que supostamente o Vandemon tinha assassinado. Pelos vistos fora tudo a fingir.
Das duas uma: ou os dois ressuscitaram com o Reinício, em Tri, e agora estão a armar-se ou Gabumon e V-mon estavam bêbados e imaginaram a história toda.
Mudando outra vez de assunto, queria falar sobre Digimon Adventure Tri Super Evolution Stage (qualquer coisa como Palco da Super Digievolução). Esta foi uma peça de teatro que decorreu em Tóquio entre 5 e 13 de agosto de 2017, entre as estreias de Soshitsu e Kyousei. Em finais de 2017, a filmagem da peça apareceu na Internet. Na altura, não achei que se justificasse escrever sobre ela aqui no blogue, mas deixei algumas impressões na página do Facebook.
Esta peça decorre algures durante os eventos de Tri, mas não se consegue perceber ao certo quando. Não que importe muito, pois, apesar de decorrer na mesma altura, é uma história independente da série. Não mete Meiko, nem Meicoomon, nem Maki, nem Daigo. Apenas os oito Escolhidos de Adventure e… Etemon. É, aliás – alerta spoiler – uma daquelas histórias em que, no fim, se descobre que foi tudo um sonho.
Em todo o caso, na peça – no sonho – os oito dão por si presos numa realidade alternativa onde é para sempre dia 1 de agosto de 1999. Isto porque, lá está, os miúdos consideram que os eventos de Adventure foram o pico da vida deles e estão cheios de medo de crescer.
Parece-vos familiar?
Curiosamente, a história pinta Joe como o exemplo a seguir. Neste sonho ele não está com dificuldades na escola (é de partir o coração quando regressa à realidade) e está determinado em ir para Medicina. Sabe o que quer ser quando for grande e quer lutar por isso. Não apesar das suas aventuras no Mundo Digital mas graças a elas.
Gostei muito desta peça, recomendo-a. Como já terão concluído, entra em territórios semelhantes a Kizuna. Gosto mais da mensagem final da peça. Para começar, os Escolhidos não têm de se separar dos seus Digimon no fim, mas também pela lição de usar o melhor da infância como base para a vida adulta.
Já que se fala de crescimento, e como esse é um dos temas de Kizuna, uma coisa que me tem feito confusão diz respeito às mensagens contraditórias. Já vinha de Tri. Tanto esses filmes como Kizuna tentam desmontar o conceito de nostalgia, de saudades de tempos que já foram – neste caso, as primeiras temporadas, Adventure e 02, as infâncias do elenco. Em Tri, conhecemos três personagens cujas experiências enquanto Crianças Escolhidas foram menos idílicas que as dos nossos protagonistas. Em Kizuna, vemos as dificuldades de se ser Escolhido enquanto adulto e recordamos uma regra universal: nada dura para sempre.
No entanto, ainda que Tri e Kizuna mostrem as limitações da nostalgia, esta continua a ser a principal razão de eles existirem. Eles não deixam de se aproveitar da nostalgia, o que tem o seu quê de hipócrita. Kizuna diz-nos para seguirmos em frente, mas a Toei não está a fazê-lo. Bem pelo contrário, poucas semanas após lançar Kizuna, estreou um reboot – ou, como gosto de chamar-lhe, “tábua rasa” – de Adventure. Reboot esse que vai a meio e, apesar de uma melhoria nos episódios mais recentes, parece não compreender aquilo que tornou Adventure tão especial, há duas décadas.
Em que é que ficamos, Toei? É para crescer ou não? É para deixar Adventure para trás, ou não?
E depois de tantas palavras sobre Kizuna, sobre a inevitável passagem do tempo, sobre a necessidade de seguir em frente e crescer, tenho uma opinião impopular: crescer não é assim tão mau. Crescer tem sido bom para mim.
Não digo que seja necessariamente mais feliz ou que a minha vida seja mais fácil. Ainda assim, como alguém que cresceu um tudo nada demasiado protegida, uma das coisas de que mais gosto na idade adulta é de ter mais controlo sobre a minha vida e, no geral, ser melhor pessoa, mais confiante, responsável e desenrascada. Estou em constante crescimento, em constante (digi)evolução, e gosto mais de mim mesma enquanto adulta do que enquanto criança ou adolescente.
E se tivesse de salvar o Mundo Digital, estaria mais habilitada para fazê-lo agora e não aos onze anos.
Eu compreendo que uma franquia dirigida a crianças teria, idealmente, um elenco da mesma idade que o seu público-alvo. Mesmo dentro do universo de Adventure, compreendo que Taichi e os amigos sintam que os seus melhores tempos tenham sido aos dez, onze anos – quando fizeram coisas que, se calhar, muitos adultos não seriam capazes, mas sem a autoconsciência de um adulto ou mesmo de um adolescente. Compreendo que tenham medo de crescer e cortar com essa vida.
No entanto, na minha opinião, os Escolhidos deviam orgulhar-se dos jovens adultos em que se transformaram – como eu me orgulho deles. Logo nos primeiros trailers, há pouco mais de um ano, ao ver o elenco na idade adulta, precisei de um momento. Como quem torna a ver um amigo de infância após muitos anos e se surpreende com as mudanças. Ou como quem reencontra um familiar que não via desde que este era criança, que descobre que este já está na faculdade ou que já está a trabalhar, e se orgulha do quão crescidos estão.
Ainda agora sinto esse orgulho. Vendo Joe quase médico, Yamato e os seus “street-smarts”, como comentámos antes, Miyako estudando no estrangeiro, Koshiro com a sua empresa, Taichi mais perto de se tornar um embaixador do Mundo Digital – e admiro-o por ter ido por aí, mesmo depois de ter perdido Agumon. Eu não sei se seria capaz.
Todos eles são melhores versões de si mesmos. Em parte graças a aspetos mundanos do dia-a-dia, mas todos sabemos que foi sobretudo graças aos amigos e às suas experiências com os Digimon. O final da história deles pode não ser o mais feliz, pelo menos não por agora, mas aposto que nenhum dos Escolhidos, nenhum deles, lamenta ou se arrepende de ter embarcado nesta jornada.
E o mesmo se aplica a nós, na audiência.
Como referi acima, o final do filme é triste ao ponto de, da primeira vez que o vi, ter ficado com vontade de renegar tudo que fosse Digimon. Mas mesmo nessa altura, arrependida de ter começado a ver Adventure quando tinha dez ou onze anos? Nunca! Pelas recordações, pelo elenco inigualável, pelas fantasias de ser Criança Escolhida e visitar o Mundo Digital, pelos amigos que fizemos pelo caminho, pelos diretos no YouTube, as discussões no Twitter, os milhares de palavras no blogue, os encontros no Odaiba Memorial Day, pelos passeios na praia ao som de Hirari acústica.
E vamos continuar, incluindo aqui no blogue – com Frontier. O plano é fazer o mesmo que fiz com Tamers. Ver pela primeira vez a versão original da temporada, sem stresses; ver de novo algum tempo depois, dobrada em português, desta feita já tomando notas para a análise.
Pois bem, vi Frontier pela primeira vez no ano passado, quando Adventure 2020 estava em pausa. Como passei várias semanas à volta de Kizuna, agora preciso de uma pausa na escrita sobre Digimon. Assim, só devo ver Frontier pela segunda vez daqui a uns meses. Talvez o faça durante o verão, com o espírito do Odaiba Memorial Day.
Posso desde já adiantar, no entanto, que duvido que a análise seja tão longa como a de Tamers e mesmo que as de Adventure e 02. Frontier não convida a isso.
Falando a um prazo mais curto sobre os meus planos para este blogue – e deixando Digimon de lado por um momento – o meu próximo texto deverá ser sobre Flowers For Vases, o sucessor a Petals For Armor, que Hayley Williams lançou de surpresa na semana passada. Não vou começar a escrever já já sobre o álbum – preciso de passar mais algum tempo com as músicas. Mas em princípio não devo demorar tanto como demorei com o seu antecessor.
Adicionalmente, parece que Avril Lavigne tem um álbum novo prestes a sair do forno. Deverá editá-lo no verão, com o(s) primeiro(s) single(s) saindo daqui a dois ou três meses. No que toca a Avril, eu não conto os pintos até nascerem. Os álbuns dela têm sempre um parto difícil, não me surpreendia se houvesse algum adiamento. Também tenho esperanças de que Lorde decida a qualquer momento sair da sua toca e lançar o seu terceiro álbum.
Como sempre, obrigada por lerem o meu testamento. Escrever sobre Digimon tem sempre aquele saborzinho especial. No caso deste texto em particular, escrevê-lo ajudou-me a lidar com todas as emoções em torno deste filme. Espero ter a oportunidade de ver Kizuna nos cinemas em breve, juntamente com outros fãs. Talvez até com dobragem portuguesa.
Torno a repetir: zero arrependimentos no que toca a ter entrado em Digimon. Estamos todos melhores por cá estarmos. Despeço-me com a mensagem final de Kizuna: de uma maneira ou de outra, estaremos sempre juntos.
O filme Digimon Adventure: Last Evolution Kizuna teve um parto difícil. As primeiras pistas apontando para este projeto surgiram ainda antes da estreia da última parte de Digimon Adventure Tri. Pouco depois soube-se que o realizador original do projeto, Hiroyuki Kakudo (que já tinha realizado Digimon Adventure e Digimon 02), alegadamente porque algo sobre o filme entrava em conflito com o que as séries anteriores haviam estabelecido.
Agora que já vi o filme, acho que sei do que é que ele estava a falar.
Nas celebrações do Odaiba Memorial Day seguinte, conforme comentei na altura, foi revelado que o projeto consistia num filme cujos eventos decorreriam quando Taichi e Yamato têm vinte e dois anos. Ao longo do ano seguinte foram saindo mais pormenores sobre o filme. O desenho do elenco, por exemplo. No Odaiba Memorial Day de 2019 foi anunciado que os Escolhidos de 02 participariam no filme, após o cruel tratamento que receberam em Tri. A notícia saiu no dia do nosso encontro do Odaiba Memorial Day – o último que tivemos – e celebrámos adequadamente.
A ideia do filme era assinalar os vinte anos de Digimon Adventure. Ainda assim, Kizuna só se estreou nos cinemas japoneses no início de 2020. Estava previsto estrear-se nos cinemas americanos mais ou menos na mesma altura, mas a pandemia boicotou (mais) esses planos. Mesmo digitalmente o filme só foi lançado vários meses depois, em setembro.
Deste lado do Atlântico, o filme está previsto vir para os cinemas portugueses. Em que salas e em que moldes não se sabe ao certo. A primeira data avançada foi para novembro. Nós estávamos entusiasmados... até a estreia ter sido adiada em finais de outubro, quando a pandemia se agravou. Chegaram a avançar outras datas, como 21 de janeiro e 18 de fevereiro. No entanto, com este novo confinamento, à hora desta publicação, não existe data marcada para a estreia. Mas estamos com esperanças de que, quando for possível, se marque de novo.
De qualquer forma, em inícios de novembro, cansei-me de esperar. Ainda quero ver o filme nos cinemas portugueses, quando for possível, mas já tinha passado tempo suficiente sem ver Kizuna. Por isso vi-o.
E arrependi-me amargamente.
Antes de começarmos, algumas notas:
1) Spoilers: esta análise vai discutir extensamente os eventos do filme Digimon Last Evolution Kizuna e poderá também revelar detalhes dos enredos das três temporadas do universo de Adventure (Aventure, 02 e Tri). Leia por sua conta e risco.
2) Alguns conceitos próprios de Digimon têm traduções controversas – na língua portuguesa têm mais do que uma possível. Neste texto, vou adotar as traduções com que estou mais familiarizada e/ou que considero mais adequadas.
3) Conforme tinha dito que faria quando terminei as análises a Tri, para esta análise vou usar os nomes japoneses.
Adicionalmente, como o costume, tenho muito a escrever sobre este filme, por isso, esta análise virá em três partes. Esta é a primeira, vou tentar publicar a segunda amanhã e a terceira no dia a seguir.
Queria também deixar algumas questões arrumadas antes de falarmos sobre Kizuna em si. Como referi acima, os primeiros anúncios relacionados com este filme saíram no dia em que Bokura no Mirai se estreou. Na altura, pensei que as minhas pontas soltas deixadas por Tri – quem era o Dark Gennai e o que lhe aconteceu, o que aconteceu a Maki, quem eram as outras primeiras Crianças Escolhidas, o que aconteceu ao Yggdrasil, quem era o Alphamon e o que é que lhe aconteceu, etc.
Bem, Kizuna não aborda nada disso, é uma história independente. Decorre na mesma cronologia que Tri – os produtores tomaram o cuidado de confirmá-lo no ecrã, como veremos mais tarde – mas os eventos não têm nada a ver com essa série. Não é sequer necessário ter visto Tri para apreciar Kizuna.
O que foi uma decisão sensata – sobretudo tendo em conta as opiniões mistas em relação a Tri.
Eu mesma nunca mais voltei a ver os seis filmes desde que publiquei a minha análise a Bokura No Mirai. Tenho-me perguntado se agora, que já lá vão dois anos e meio, se a minha opinião será tão favorável como foi na altura.
Um dia hei de rever Tri. Um dia hei de rever todo o universo de Adventure: os filmes, a primeira temporada, 02, Tri. Mas esse dia ainda vem longe. Não tenho assim tanto tempo livre e, quando o tenho, prefiro ver temporadas de Digimon que nunca vi antes.
Enfim. Chega de delongas. Vamos a Kizuna.
Depois de uma mensagem algo críptica sobre aceitar o futuro e isto ser uma nova aventura dos Escolhidos e dos seus Digimon, Kizuna começa com notas familiares. Literalmente: ouve-se o tema Bolero, de Ravel – recorrente em Adventure, sobretudo nos filmes – enquanto mostra imagens de uma aurora nos céus, algo que não devia ocorrer longe dos pólos.
A ação de Kizuna decorre em 2010, se bem que um 2010 um pouco mais avançado tecnologicamente. Em Kizuna, o uso do smartphone está mais vulgarizado que na altura equivalente na vida real. Consta que os japoneses demoraram mais alguns anos a adotá-lo – mesmo entre nós, portugueses, foi mais a partir de 2012, 2013, certo? Os digiguionistas explicaram em entrevista que, no universo de Adventure, o contacto com o Mundo Digital permitiu à humanidade avançar um pouco mais depressa no que toca a tecnologia.
Sempre explica porque é que em Tri, aparentemente, já existem mensagens de grupo e emojis nos telemóveis.
Nos anos entre os eventos de Tri e de Kizuna, Koshiro arranjou maneira de integrar as funcionalidades dos dispositivos digitais em smartphones. O que faz sentido em termos práticos, mas eu não gosto muito. Acho demasiado… mundano.
É claro que sou enviesada pois os dispositivos originais de Adventure têm valor sentimental para mim, à semelhança dos cartões. Mas também, no que toca a este filme, o sentimentalismo só serviu para dar cabo de mim.
E estou a adiantar-me.
Da primeira vez que vemos os Escolhidos, estes estão a ter um dia normal no escritório – o status quo que será, mais tarde, perturbado. Um Parrotmon (óbvio piscar de olhos ao primeiro filme de Adventure é óbvio) materializa-se no Mundo Real (deveria escrever “realiza-se”, como em Tamers? Isto no fundo é um “selvagem”) e os Escolhidos têm de lidar com ele, encaminhá-lo de volta ao Mundo Digital. O Parrotmon ainda faz uns quantos estragos – espero que as companhias de seguros neste universo já tenham apólices para danos provcados por Digimon.
Taichi, Hikari e Takeru acorrem ao local, sob a orientação de Koshiro, através do seu escritório. Yamato chega um pouco depois, de mota. O último entra logo com uma picardia a Taichi, que paga na mesma moeda – de outra forma, não saberíamos que eram eles. Koshiro orienta-os à distância, a partir do seu escritório.
Ao contrário do que aconteceu em Tri, para esta cena, Kizuna recria as sequências de digievolução de Adventure, só que com animação contemporânea. Temos também uma nova versão de Brave Heart – à semelhança das sequências de digievolução, em vez de procurar um carácter próprio, esta é uma versão mais eletrónica do tema original.
Não que isso seja exatamente uma falha. Faz sentido fazerem isso num filme que comemora os vinte anos de Adventure. Mas nesse aspeto respeito um pouco mais a versão de Tri, por ter feito algo diferente.
Por outro lado… percebo. Estas sequências de digievolução, esta versão de Brave Heart, só aparecem no início do filme. Antes do início do enredo propriamente dito, ainda antes dos créditos de abertura. Não entram na história em si. Calculo que tenha sido deliberado: estes elementos fazem parte do status quo que tinha de ser quebrado.
Porque o status quo tinha de ser quebrado. Não apenas em termos de meta, das regras das histórias, da ideia que o protagonista deve deixar o familiar, o confortável e partir para o desconhecido. É um dos temas do filme: as coisas não podem ficar sempre na mesma, todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades.
Eu vejo esta cena inicial com o Parrotmon, vejo o quão adoro estes miúdos e os seus Digimon, pergunto-me porque não podiam tê-los deixado assim. No entanto, deixando de lado o meu sentimentalismo, sendo sincera comigo mesma, esta está longe de ser uma situação idílica.
Estes quatro (cinco se contarmos com Koshiro) são os únicos disponíveis para lidar com o problema do Parrotmon. Nesta altura, Sora já se reformara oficialmente como Escolhida, conforme revelado na sua curta-metragem (mais sobre isso adiante). Joe e Mimi também não vieram e é dado a entender que têm vindo muito menos nos últimos tempos.
Mesmo Taichi e Yamato não podem ficar para o pequeno-almoço com os irmãos mais novos e os Digimon. Taichi está no quarto ano da faculdade, mas já vive sozinho, combina os estudos com um emprego em part-time num casino. Ao que parece, já não vai à casa dos pais há algum tempo. Sobre Yamato não sabemos tanto, mas a narrativa dá a entender que também estará a viver sozinho e a conjugar os estudos com um emprego.
Suponho que Agumon e Gabumon estejam a viver com os irmãos mais novos dos parceiros. As curtas-metragens lançadas em paralelo com o filme dão a entender que os parceiros Digimon dividem o tempo entre o Mundo Digital e o Real, poderão mesmo alternar entre as casas uns dos outros. Mas, como veremos mais à frente, Agumon nunca esteve no apartamento de Taichi, o que é um bocadinho triste.
Na verdade, no início de Kizuna, Taichi encontra-se numa situação muito semelhante àquela em que se encontrava no início de Saikai: numa fase da sua vida académica em que precisa de definir o seu futuro. Pensa que a sua verdadeira vocação é ser Escolhido, mas essa ocupação não paga salário nem faz descontos para a segurança social.
Devia, por acaso. Afinal de contas, eles estão a prestar um serviço à comunidade, com grande risco pessoal. Alguém devia pagar-lhes.
Tal como acontece em Tri, Taichi resiste à mudança. Debate-se com incertezas em relação ao que quer fazer com a sua vida, com amigos de infância com quem não consegue conviver tanto como antes, com a sensação de que toda a gente está a seguir em frente com as suas vidas menos ele.
E Yamato. Eis uma diferença importante em relação a Tri: em Kizuna, Yamato está na mesma situação. Gosto em particular das cenas com a banda de rua e o menino tocando harmónica numa loja de instrumentos – um belo exemplo de "show, don’t tell”.
No que toca aos outros do grupo de Adventure, como já tinha dito antes, Sora demitira-se como Escolhida e estava a seguir as pisadas da mãe no negócio de arranjos florais. Mimi tem andado a vender acessórios de moda online e Joe está em Medicina, já começando a estagiar em hospital. Koshiro tem a sua própria empresa onde gere as relações com o Mundo Digital e os Escolhidos por todo o mundo. Mesmo Hikari e Takeru, que ainda estão do primeiro ano da faculdade, já têm ideias claras sobre o que querem fazer com a vida deles – Takeru já estará a escrever o livro relatando os eventos de Adventure e 02 (e mesmo depois disso?).
Yamato e Taichi são mesmo os únicos do grupo de Adventure com os futuros mais incertos.
A intriga do filme arranca quando Taichi e Yamato estão num bar bebendo cerveja e partilhando crises existenciais, como todos fazemos a certa altura nas nossas vidas adultas. Na mesa ao lado, uma rapariga perde os sentidos. De notar a prontidão com que Taichi e Yamato reagem a imprevistos como este – não surpreende, pois não?
A explicação só surge no dia seguinte, quando os dois são convocados ao escritório de Koshiro. Não sem antes receberem uma mensagem em vídeo de Miyako, que está a estudar em Espanha. Faz ela muito bem – aproveitar a vida antes de ter de passar os seus dias em casa a mudar fraldas.
Eu digo isto mas também, com base naquilo que tenho vindo a descobrir acerca do inferno por que as mulheres japonesas passam em contexto laboral, não posso criticar Miyako por preferir ficar em casa.
A mensagem de Miyako não faz praticamente nada para avançar o enredo – ela recebera uma mensagem e já a reencaminhara para Koshiro. Mas depois da negligência de que Miyako e os restantes Escolhidos de 02 foram vítimas em Tri, a presença deles em Kizuna é muito bem vinda. Aliás, num filme tão introspetivo e melancólico como este, as cenas com o elenco de 02 são uma lufada de ar fresco. Não são alívio cómico, são alívio de alegria.
É neste momento que conhecemos Menoa Bellucci. Uma jovem da mesma idade de Taichi e Yamato, mas que já é uma prestigiada investigadora de Digimon. A realização do filme destaca a borboleta azul que decora a ponta da sua trança – mais sobre isso adiante. Menoa vem acompanhada do seu assistente, Kyotaro Imura.
De notar que Taichi, Yamato e Koshiro encaram os convidados com alguma desconfiança. Não surpreende – são homens feitos, já andam nestas andanças há mais de uma década. Depois do que aconteceu com Maki, então…
Menoa e Imura explicam aos quatro Escolhidos (Takeru também veio à reunião) que aquilo que acontecera na véspera, com a rapariga no bar, estava a acontecer um pouco por todo o mundo: pessoas entrando em coma sem motivo aparente. O denominador comum é o facto de serem todos Escolhidos – e na altura em que estes perdem a consciência, os seus Digimon desaparecem sem deixar rasto.
Menoa e Imura já conseguiram identificar o Digimon responsável e dar-lhe um nome: Eosmon, inspirado por Eos, a deusa do amanhecer segundo a mitologia grega. Eosmon tem roubado as consciências dos Escolhidos, digitalizado-as e guardado-as no ciberespaço (que já servira de cenário a War Game e a Diaboromon Strikes Back). Os dois investigadores já têm um plano desenhado para lidarem com Eosmon (o que é um bocadinho suspeito) e pedem ajuda aos Escolhidos. Os quatro vão para o ciberespaço para enfrentarem Eosmon e tentarem recuperar as consciências das vítimas.
De início corre tudo como o previsto – uma vez mais, como se fosse mais um dia no escritório. Mesmo quando Eosmon digievolui, os outros Escolhidos não se deixam perturbar. Surge o Omegamon, que luta contra Eosmon. No entanto, quando o Omegamon se prepara para dar o golpe final, congela de forma bizarra e desfaz-se. Eosmon escapa.
Quando o grupo regressa ao Mundo Real, tentam naturalmente perceber o que acabara de acontecer. Menoa revela que tem a ver com o motivo pelo qual, alegadamente, não existem Escolhidos adultos.
Parece que o Mundo Digital – por outras palavras, a Homeostase – Escolhe crianças por causa do seu futuro ainda indefinido, do seu potencial para mudarem, para escolherem, para crescerem. Essas escolhas, esse crescimento, era o que catalisava a digievolução. À medida que os Escolhidos vão envelhecendo, vão perdendo esse potencial. O poder para os seus parceiros digievoluírem vai diminuindo até ao dia em que chega a zero.
Nesta fase, Menoa apenas refere que Digimon e Escolhido seguem caminhos diferentes. Kizuna mais tarde colocará os pontos nos is no que toca a essa questão. No entanto, mesmo nesta altura do filme, para bom entendedor meia palavra basta: os Digimon desaparecem.
Pois… falemos sobre isso.
Essa ideia da digievolução baseada no potencial, que diminui com o tempo, tem uns quantos buracos. Não podia ser de outra maneira, se me vão introduzir novas regras para a digievolução ao fim de três temporadas e múltiplos filmes.
Sim, regra geral, a digievolução sempre foi catalisada pelo processo de os Escolhidos se tornarem melhores versões de si mesmos. No caso de Adventure e Tri, isso dizia mais respeito ao crescimento individual. No caso de 02, eram as relações entre os Escolhidos. Pode-se argumentar que os laços entre Escolhido e Digimon também entravam nessas contas, se bem que não tanto como em Tamers.
Mas agora dizem-me que esse potencial desaparece com o tempo? Não faz sentido. Mimi, Joe, Sora e Koshiro só conseguiram desbloquear os níveis Extremos dos seus Digimon quando já eram adolescentes (Takeru e Hikari são um caso à parte por causa de Hurricane Touchdown). Joe já era maior de idade! Isto para não falar, claro, do Omegamon Merciful Mode.
Pode haver quem questione o peso de Hurricane Touchdown e mesmo de Tri no cânone deste universo (se bem que Kizuna legitimize ambos). Mas, mesmo só considerando Kizuna nesta equação, a lógica não é consistente. Ao escolherem um caminho, uma vida para si, os Escolhidos estão essencialmente a roubá-la aos seus Digimon. Mais à frente na narrativa, Menoa revelará que perdeu a sua companheira Digimon aos catorze anos (ou seja, durante os eventos de 02) quando entrou na faculdade, saltando vários anos escolares. Por essa lógica, Taichi e Yamato deviam ser os últimos a perder os seus Digimon, não os primeiros – já que, como observámos antes, são os únicos do grupo com um futuro incerto.
Bem, na verdade, não foram eles os primeiros, foi Sora. O que pode ser explicado pela sua decisão de abdicar dos seus deveres como Escolhida, antes dos eventos de Kizuna (com uma ressalva de que falaremos já a seguir). Ainda assim, Joe é o mais velho dos Escolhidos, está de pedra e cal em Medicina, devia ter sido o primeiro. No entanto, ainda não quis cortar em definitivo com a vida de Escolhido – será essa a diferença?
Por outro lado, Menoa refere que as digievoluções diminuem o tempo de vida dos Digimon. Nesse aspeto, faz sentido Taichi e Yamato estarem à frente porque Omegamon.
Estas são as únicas explicações que me ocorrem.
Deixando de lado as inconsistências, não concordo com essa ideia de que as crianças perdem potencial e poder de escolha à medida que envelhecem. Da minha experiência, acontece o contrário: sobretudo nos tempos que correm, as crianças têm muito pouco controlo sobre as suas vidas. Os pais e outros adultos escolhem quase tudo por elas: o que comem, o que bebem, o que vestem, a que horas se deitam, em que escola estudam, onde vivem e com quem.
É à medida que crescem que ganham controlo sobre a sua vida. Decidem se querem ir para um curso profissional ou para o Secundário – e para que área – decidem se querem ir para a faculdade – e que curso querem tirar – ou se vão já para o mercado de trabalho.
E, mais importante, eles podem mudar de ideias! Podem mudar de percurso! Kizuna trata tais escolhas como irreversíveis, mas não é isso que acontece na vida real. Alunos podem mudar de área durante o Secundário, podem repetir os exames e concorrer a outro curso, podem só conseguir ir para a faculdade (ou lá regressar) aos trinta, quarenta, cinquenta anos, mesmo mais tarde. Todos nós conhecemos histórias de pessoas que mudaram de carreira numa altura menos convencional das suas vidas.
Até mesmo dentro do universo de Adventure! Para começar, tendo em conta o epílogo de 02, sabemos que Mimi irá, a certa altura, seguir uma carreira em culinária. Mas Sora é um excelente exemplo daquilo que falei nos parágrafos anteriores, conforme provado na curta-metragem lançada há coisa de um ano, poucas semanas antes da estreia de Kizuna nos cinemas japoneses.
Até aos eventos dessa curta, Sora definia-se essencialmente por dois aspetos: por ser Escolhida e por ser filha de uma mestre em arranjos florais. Na curta, a jovem angustia-se por não saber quem é fora desses rótulos que, lá está, lhe foram impostos na infância – um deles pela Homeostase, outro pela mãe (mesmo com alguma turbulência, como vimos no episódio 26 de Adventure).
Tanto Mimi como Piyomon lhe fazem ver que existem muitas outras possibilidades para a sua vida, múltiplos trajetos por onde voar no céu. Assim, Sora decide oficialmente desistir da vida de Escolhida. Acredito que, mais tarde, irá também desistir dos arranjos florais (e eventualmente trabalhar na área da moda) pelo mesmo motivo.
É um grande passo para ela, que sempre se caracterizou pelo seu altruísmo. Finalmente, Sora está a colocar-se a si mesma em primeiro lugar. Aposto que se Mimi não lhe tivesse dito que ela e os amigos a apoiariam sempre, independentemente da decisão de tomasse, Sora ainda não teria desistido de ser Escolhida. Na mesma linha, acho que só desistirá dos arranjos florais se a sua mãe concordar.
Não se pode argumentar que é agora que Sora dispõe de todo o seu potencial? Agora que se está a libertar de escolhas que não fez, que quer descobrir quem é fora dessas escolhas e trilhar o seu próprio caminho?
É interessante, aliás, comparar Sora com Taichi e Yamato. Os três nasceram no mesmo ano, têm a mesma idade, mas possuem visões opostas em relação ao futuro. Taichi e Yamato angustiam-se com a mudança, com os caminhos de que tiveram de abdicar no passado e que terão de abdicar num futuro próximo. Sora, por sua vez, está ansiosa por mudar, por crescer, por arranjar uma vida diferente para si.
A questão que se coloca é se ela ainda pensará assim quando essas escolhas lhe custarem Piyomon. Havemos de falar sobre isso.
Isto tudo para dizer que não concordo com a ideia defendida por Kizuna, sobre a perda de potencial com o crescimento. É uma discordância, não é uma falha.
Se nestes últimos parágrafos pareço defensiva… é porque estou. Ainda estou um pouco em negação, a revoltar-me contra o destino traçado por Kizuna, contra a impossibilidade de os Digimon permanecerem com os seus parceiros humanos.
Enfim, paremos por aqui. Amanhã regressamos ao escritório de Koshiro para falarmos sobre as reações de Taichi e Yamato a estas notícias.
Não estava nos meus planos escrever um texto sobre o filme Detetive Pikachu. Ou melhor, só sobre este filme. A minha ideia era deixar algumas impressões sobre ele no meu balanço musical de 2019, a propósito de Carry On e Holding Out for a Hero. As frases, no entanto, transformaram-se em parágrafos, os parágrafos em páginas do meu caderno, fazendo um grande desvio ao assunto do texto. Era evidente que tinha muito a dizer sobre este filme. Fazia mais sentido dedicar-lhe a sua própria publicação, que as pessoas pudessem encontrar com maior ou menos facilidade pesquisando no Google, em vez que enterrá-lo no meio de outro texto.
Escolhi publicá-lo hoje, que se assinala o vigésimo-quarto aniversário de Pokémon enquanto franquia (tenho vindo a celebrar estes aniversários desde o inesquecível vigésimo, em 2016). Parece-me adequado dedicar uma publicação à melhor coisa que, a meu ver, aconteceu no último ano (talvez esperassem que eu referisse Sword&Shield, mas os jogos têm estado envolvidos em tanta polémica, começando desde uns meses antes do seu lançamento e continuando até hoje, que me têm alienado da comunidade de fãs).
Um alerta importante: este texto está cheio de spoilers. Leiam-no por vossa conta e risco. Assim, sem mais delongas…
À semelhança do que aconteceu com Pokémon Go, um filme live-action era algo que eu sempre desejei, mas só o descobri quando saiu o primeiro trailer. Não vou dizer que nunca tenha pensado nisso… mas nunca o encarei como uma ideia viável.
Em parte porque, tradicionalmente, filmes baseados em videojogos não prestam. Mesmo os baseados em anime não costumam ser grande coisa, tanto quanto sei. Por exemplo, tanto quanto me lembro, ninguém gostou do filme baseado no Dragon Ball há coisa de dez anos. Também ninguém gostou da adaptação de Death Note do Netflix.
Por fim, quando víamos na Internet imagens “realistas” de Pokémon, era quase tudo monstruosidades (veja-se a imagem acima). Não havia nada do charme dos desenhos no anime e dos jogos (bem, tirando os daprimeira geração).
Tudo mudou quando vi o primeiro trailer. Confesso que demorei um bocadinho a habituar-me a estes Pokémon mais “realistas”. À semelhança da maior parte das pessoas, suponho eu – ninguém se tinha apercebido antes que os Pokémon tinham tanto… pêlo. Suponho que faça sentido, no entanto. Mas depois de nos habituarmos, a maior parte dos modelos são bons. Alguns melhores do que outros, claro, mas no geral acho que conseguiram combinar os aspetos mais realistas dos Pokémon (um dos colaboradores foi precisamente o autor das tais fanarts realistas que circulavam pela Internet) com os aspetos mais apelativos dos bonecos que tão bem conhecemos.
À medida que o tempo passava e mais trailers iam saindo, o meu entusiasmo crescia. No entanto, tentava ser cautelosa, mantendo as minhas expectativas no mínimo. Pela parte que me tocava, Detetive Pikachu não precisava de ser um filme extraordinário (e não o é). Só precisava de ser um típico filme de Hollywood… mas com Pokémon. Só precisava de não ser uma porcaria.
E o filme não é uma porcaria, longe disso. Foi uma jogada inteligente terem baseado o filme num spin-off menos conhecido, em vez de basearem nos jogos principais ou no anime. Na minha opinião, criarem uma típica história de um treinador de Pokémon não traria nada de novo aos fãs da franquia e poderia ser alienante para as pessoas de fora.
Em vez disso, Detetive Pikachu colhe inspirações em filmes de detetives noir. É mais sombrio que o anime e que a maior parte dos jogos, mas acho que não ao ponto de traumatizar criancinhas. Eu pelo menos há anos que desejava uma história em Pokémon que não tivesse o tom paternalista e ultra-infantil do anime.
(Talvez devesse ler Pokémon Adventures…)
Algo de que só me apercebi há relativamente pouco tempo diz respeito às semelhanças entre Detetive Pikachu e Zootopia (um filme de que gosto muito). Em primeiro lugar, centra-se numa cidade aparentemente utópica, onde em teoria criaturas fofinhas podem viver em paz. Na prática é uma fachada. Durante o decurso do filme a máscara acaba por cair mas, no fim, o elenco compromete-se a honrar o espírito da cidade.
Em segundo, ambos são filmes de detetives/”buddy cops”. Um dos protagonistas nasceu numa terra pequena e vem de comboio para a tal cidade. Um dos protagonistas é um cínico, que em criança até tinha crenças que coadunavam mais ou menos com o espírito da cidade, mas a vida encarregou-se de destruí-las (o flashback da infância de Nick ainda hoje me parte o coração).
O enredo centra-se no desaparecimento de um pai. Um dos elementos importantes do caso é uma substância que desperta os instintos selvagens e violentos das tais criaturas fofinhas. Existe um primeiro falso vilão mas, no fim, descobre-se que o verdadeiro vilão é uma figura de autoridade que os protagonistas consideravam um aliado.
Para ser sincera, a história é capaz de ser o aspeto mais fraquinho do fime. Pelo menos a parte relacionada com o vilão. Que o Presidente Howard Clifford quisesse transportar-se para o corpo do Mewtwo até faz sentido – quem nunca? Mas qual é a vantagem de obrigar o resto do povo a fazer o mesmo com os seus Pokémon? Não se percebe.
A força do filme está nos outros aspetos. O Detetive Pikachu em si é irresístivel: uma versão do Deadpool adequada a menores de 16, com toda a fofura que sempre caracterizou a mascote, captada na perfeição pelo filme. Justice Smith fez um bom trabalho dando vida a todas as facetas de Tim – e para nós, fãs, é bom saber que o ator gosta de Pokémon, à semelhança de Kathryn Newton, que dá vida a Lucy.
Esta, aliás, é adorável e merecia mais tempo de antena. Tem um par de cenas, como a acima, em que se esforça, de forma hilariante, por passar a imagem de jornalista intrépida. No entanto, na segunda metade do filme, tirando um momento ou outro, existe apenas para dar apoio a Tim.
Outra das falhas do filme, aliás, é ter pouquíssimas personagens femininas. Mal passa o teste de Bechdel. O que é uma pena quando Pokémon sempre fez por apelar tanto a rapazes como a raparigas.
Outro ponto forte do filme, talvez a maior força do mesmo, é o respeito, mesmo o carinho com que trata a franquia. Um fã de Pokémon encontrará inúmeras referências e pormenores fantásticos – basta pesquisarem “Detective Pikachu Easter Eggs” no Google ou no YouTube para saberem do que estou a falar.
Por outro lado, o filme não mostra demasiada reverência para com a franquia. Pelo contrário, Detetive Pikachu teve imaginação para explorar lados menos convencionais de Pokémon que conhecemos tão bem (não sei se isso veio do jogo Detetive Pikachu ou se dos próprios guionistas do filme). Um exemplo disso é o que fizeram com o Mr. Mime – que, segundo o que consta, esteve muito perto de não aparecer em Detetive Pikachu.
Mr. Mime é um Pokémon com uma reputação… estranha na comunidade de fãs. Há muita gente que não se sente muito à vontade com Pokémon humanóides. Somando isso a doses variáveis de coulrofobia e não admira que Mr. Mime tenha fama de palhaço assustador. (E depois há toda aquela teoria de que Mr. Mime seria o pai de Ash. O que é estúpido. A mãe dele só conheceu o seu Mr. Mime no episódio 64 do anime, já Ash tinha pelo menos dez anos. Este pessoal nunca estudou Biologia?)
Eu nunca adorei o Mr. Mime, mas nunca o achei assim tão desconcertante. Não quando temos o Drowzee e o Hypno na mesma geração. Mas compreendo que algumas pessoas adorem odiá-lo.
Consta que, de início, a Pokémon Company não estava muito entusiasmada com a ideia de um Mr. Mime “realista” – porque, lá está, o resultado final poderia causar pesadelos. O realizador Rob Letterman teve de pedir autorização diretamente a Tsunekazu Ishihara, o presidente atual da empresa, para que o Pokémon aparecesse no filme.
Felizmente acabaram por aceitar. Ainda bem. Não sei como foi com vocês, mas a cena do interrogatório ao Mr. Mime fez-me gostar mais do Pokémon. Mantiveram as características desconcertantes, mas carregaram na parte de palhaço mimo. O resultado final foi uma das cenas mais engraçadas de todo Detetive Pikachu.
De mãos dadas com o carinho pela franquia está o facto de o filme ter coração e não se envergonhar disso (estou a olhar para ti, primeira metade de Bokura No Mirai!). Falo sobretudo na jornada emocional de Tim para fazer as pazes com o seu pai.
O que me leva à grande reviravolta e fonte de confusão do filme: o facto de a personalidade do Detetive Pikachu ser na verdade um híbrido das mentes de Harry e do seu Pikachu. Eu sinto-me dividida em relação a este desenvolvimento. Por um lado, faz algum sentido. E é certamente comovente, à sua maneira, que o pai de Tim tenha estado lá desde o início.
Por outro lado… é esquisito. É muito esquisito.
A pergunta que se coloca é com é que Tim não reconheceu a voz do pai saindo do Pikachu. Eu até consigo arranjar uma explicação, mais ou menos. No anime sempre existiram Pokémon com a habilidade de falar telepaticamente com humanos. Muitas vezes era explicado com “poderes psíquicos” (ex: Mewtwo) ou com aura (ex: Lucario). Talvez Tim soubesse disso e pensasse que o seu subconsciente estava a associar o seu pai com o seu Pikachu. Afinal de contas, ele de início pensou que a voz do Detetive Pikachu era uma alucinação.
Enfim, é só uma teoria, um bocadinho rebuscada. Na prática, se Tim tivesse perguntado logo desde início porque é que o Detetive Pikachu estava a falar com a voz do pai, a audiência adivinhava logo o twist final.
O maior problema deste twist é que, agora, será quase impossível fazerem uma sequela com o Detetive Pikachu. Segundo o que percebi (e posso estar enganada), a personalidade do Detetive Pikachu era um híbrido das personalidades de Harry e do seu Pikachu, juntamente com amnésia. Depois de conhecermos a verdade, não dá para voltar atrás.
Mesmo que, por um motivo ou outro (e não consigo pensar em nenhum motivo plausível), a mente de Harry fosse de novo inserida no corpo do Pikachu, com amnésia e tudo, Tim saberia a verdade e as interações entre ambos seriam completamente diferentes. Mesmo que Tim também fosse afetado por amnésia ou a história envolvesse personagens que não soubessem a verdade… a audiência saberia. Não seria a mesma coisa.
É por este motivo que me sinto dividida com este twist de Harry ter estado desde o início no corpo do Detetive Pikachu. Por esse motivo e porque, na minha opinião, tira um bocadinho de piada à personagem.
Um dos atrativos da língua atrevida do Detetive Pikachu era o facto de ser um Pokémon, um Pikachu – uma figura adorável, símbolo de uma franquia, herói das nossas infâncias – metendo-se com Tim por causa da sua tentativa falhada de namoriscar com Lucy. saber que, afinal, existia uma mente humana pelo menos em parte por detrás daquelas palavras tira algum impacto.
Acho que a jornada emocional do filme também poderia ter resultado se o Detetive Pikachu fosse apenas o companheiro Pokémon de Harry. Pai e filho fazendo as pazes através do Pikachu do primeiro… Até porque exploraria sobre o qual tenho tido curiosidade nos últimos anos: como é que um Pokémon reage quando o seu treinador/parceiro humano tem filhos. Ficam com ciúmes? Veem a criança como um irmão? Ou como uma espécie de sobrinho ou irmão mais novo que ajudam a criar?
Ainda assim, não tenho razões de queixas da forma como o filme explora a relação entre Tim e o seu pai. Uma das coisas de que me tenho vindo a aperceber nos últimos anos é que daddy ou mommy issues dão pano para mangas em termos de drama em ficção. Detetive Pikachu não foge à regra.
O filme, aliás, traça um paralelismo curioso, ainda que algo forçado, entre a relação de Tim com Harry e a relação de Tim com os Pokémon em geral. O jovem sente que o pai o trocou pelos Pokémon – o que faria sentido se Harry o tivesse deixado para se tornar um treinador ou um líder de ginásio. Harry no entanto é detetive, o seu trabalho não parece assim tão relacionado com Pokémon – tirando o facto de exercer em Rhyme City, com a sua política menos convencional em relação às criaturas.
Pode ter mais a ver com o facto de a mãe ter morrido no dia em que, segundo o que o filme dá a entender, Tim iria receber o seu primeiro Pokémon. Não sei, podia ter sido explicado um bocadinho melhor.
A cena acima em que Tim e o Pikachu pensam que Harry morreu mesmo é uma das minhas preferidas em todo o filme. Tim arrependido por não ter vindo viver com o pai anos antes, quando este pediu. O Pikachu consolando-o com palavras que, sem sombra de dúvidas, vêm de Harry.
E, claro, a cena final já com Harry, em que Tim decide ficar em Rhyme City, em vez de regressar a casa. A atuação de Justice e sobretudo de Ryan transmitem as emoções do momento na perfeição. Tão pouco tempo depois de Deadpool, acho que ninguém estava à espera de ver Ryan Reynolds no papel de pai.
É uma história bonita, de amor familiar e de perdão. Está longe de ser original, claro, mas foi bem executada, tornando este filme, como alguns têm dito nas internetes, “melhor do que tem direito a ser”. E como o próprio Ryan Reynolds disse, são temas universais, “wholesome”, que sabem bem de vez em quando nos dias conturbados de hoje.
Queria falar agora sobre aspetos mais secundários do filme de que gostei. Sei que vai contra o espírito de Rhyme City, mas eu gostei da cena na arena de combate.
Que querem? Um dos maiores apelos de Pokémon para mim continuam a ser as batalhas. #Sorrynotsorry. Embora, claro, não tenha nada contra Rhyme City para os Pokémon e humanos que não gostem desta vertente.
Sebastian, que gere (?) esta arena e que dará a pista seguinte é o típico durão deste género de filmes, com os músculos, as tatuagens, o histórico de Internet questionável, mas depois salta para a arena quando sente que o seu Charizard corre perigo, chamando-lhe “my baby”. Preocupa-se muito com o seu “baby” mas usa-o em combates ilegais... Gostei desse pormenor, dando alguma profundidade a uma personagem secundária, quando um guionista mais preguiçoso não teria ido além do estereótipo.
De referir também que, apesar de, tanto quanto se sabe, Tim nunca ter chegado a ser treinador, ele não é nenhum ignorante no que toca a Pokémon. Os conselhos que dá ao Pikachu antes do combate com o Charizard são um exemplo disso – e é bonito quando, mais à frente no filme, o Pikachu recorda-se desses conselhos (já aí vamos).
Por outro lado, quando Sebastian liberta acidentalmente quantidades industriais do gás R, forma-se um caos com pormenores hilariantes. Começando com os Loudred tocando dubstep, acabando com o Pikachu evoluindo um Magikarp com um pontapé (pontos para a referência).
Por fim, a cara de “Oh crap!” do Charizard só por si valeu o preço dos dois bilhetes.
Outra parte muito bem sacada foi o jardim dos Torterra – os Torterra gigantescos que acabaram por se fundir (e confundir) com a paisagem. Detetive Pikachu levou as inspirações da tartaruga continental quase à letra e foi espetacular. O Torterra é um dos meus Pokémon preferidos de Sinnoh precisamente por causa desse conceito.
Apesar das minhas reservas em relação às motivações de Howard Clifford enquanto vilão, gostei da interpretação de Bill Nighy – que, segundo consta, tornou-se um fã de Pokémon ao entrar neste filme. Gostei também do papel do Mewtwo na história: dos paralelismos com o primeiro filme do anime e ainda mais do facto de não ser o vilão.
Outro dos destaques do filme é o combate entre o Mewtwo-possuído-por-Howard e o Detetive Pikachu. Em particular o facto de o último ter usado o Volt Tackle – tanto por seguir o conselho de Tim como porque, dos ataques característicos do Pikachu, é o meu preferido, sobretudo no anime.
Queria deixar uma palavra rápida para a banda sonora do filme. Não sendo nada por aí além, gosto das notas eletrónicas em temas como este que me recordam a banda sonora dos jogos. E, claro, a deliciosa sequência dos créditos, com desenhos de Ken Sugimori de todo o elenco no estilo do anime e das artes oficiais dos jogos, com um remix do tema principal da franquia com o estilo da banda sonora do filme.
Valha-me Hélix, já não bastava o Ryan Reynolds cantando Gotta Catch’em All. Eles sabem exatamente como fazer-me comer da mão deles…
Em suma, como podem calcular, gosto mesmo muito deste filme. Tanto quanto sei, a maior parte da comunidade de fãs também gostou. Agora que penso isso, é capaz de ter sido o último momento relativamente pacífico na comunidade. Cerca de um mês depois descobriu-se acerca da remoção da National Dex em Pokémon Sword&Shield e caiu Kanto e a Trindade… mas não quero falar sobre isso hoje.
Detetive Pikachu foi o único filme até agora que vi duas vezes no cinema. Primeiro com pessoas do meu grupo de Raids de Pokémon Go, depois com a minha irmã e um amigo dela. E agora comprei-o no YouTube – em parte para poder escrever este texto, mas sobretudo porque quero apoiar este filme dentro das minhas possibilidades. Porque não quero que seja o único.
Pois é, já se falam em sequelas – ou pelo menos em outros filmes neste universo. Uma sequela direta com o próprio Detetive Pikachu será difícil, como vimos acima. Mas não faltam ideias.
O que se lê nas internetes é que existem planos para fazer um filme baseado na jornada de Red, em Pokémon Red e Blue… mas a ideia não me entusiasma. Afinal de contas, esta é uma história que já foi contada ad nauseaum, em dois remakes dos jogos da primeira geração (um deles há menos de dois anos) e em Pokémon Origins (de que não gosto por aí além).
É certo que o mainstream ainda não conhece a história. Talvez o público até aprecie… mas eu não queria mesmo.
Não quando existem melhores ideias, na minha opinião. Outras histórias baseadas nos jogos: a história de N, por exemplo, ou Zinnia. Ou então, se quiserem continuar na onda dos filmes noir, podiam colocar Lucy como protagonista. Lucy investigando uma história para uma reportagem, acompanhada pelo seu Psyduck. Tim e Harry podiam aparecer, mas num papel mais secundário. Looker podia entrar na história!
Em alternativa, podiam pegar em qualquer outro conceito típico de Hollywood e desenvolvê-lo no universo de Pokémon. Um filme de espionagem, por exemplo, estilo Missão Impossível ou James Bond. Uma comédia romântica – centrada em dois treinadores rivais mas apaixonados. O próprio Ryan Reynolds deu uma excelente ideia numa entrevista: um filme tipo Indiana Jones. Não falta mitologia e Pokémon Lendários para servir de inspiração.
Há esperanças de que daqui nasça um universo cinemático inteiro. Talvez um dos poucos ainda não monopolizado pela Disney. E espero que ninguém os deixe deitar as garras a Pokémon. A acontecer, não será de um dia para o outro, demorará meia dúzia de anos… mas acho que valerá a pena esperar.
Com tudo isto, se vos apetece celebrar o aniversário de Pokémon enquanto franquia, verem o filme Detetive Pikachu é uma boa forma de o fazerem. De resto, ficam votos de que Pokémon continue a crescer, a criar conteúdo de qualidade, que os Dexxers vão dar banho a um Skunktank arranjem formas mais produtivas de passar o seu tempo. A mais vinte e quatro anos!
Terceira parte da análise a Kyousei. Podem ler as partes anteriores aqui e aqui.
Chegamos à parte que dói a sério. Começando pelo momento em que Meiko atinge o seu limite e pede aos amigos que matem Meicoomon.
Quando vi o filme pela primeira vez, este pedido atingiu-me como um murro no estômago. Em parte porque, na minha opinião, é um sacrilégio. Não se mata um Digimon ligado a um Escolhido, não se faz. Mas sobretudo porque sofria do mesmo viés dos veteranos: acreditava que o elo entre Meiko e Meicoomon acabaria por salvá-la.
Mas, conforme temos assinalado ao longo deste texto, os sinais estão todos lá. Os veteranos insistindo que Meiko deve acreditar na sua parceira, Meiko alienando-se cada vez mais. Tudo o que tinham feito até ao momento só piorara a situação. Naquela fase, estavam apenas a prolongar o sofrimento, não apenas de Meicoomon, também de Meiko.
Tai é o primeiro a compreender e a aceitar a decisão. Compromete-se a eliminar Meicoomon por misericórdia, segundo os termos dos Escolhidos – não os da Homeostase ou de Yggdrasil. Porque este género de decisões também faz parte dos deveres de um Escolhido.
Os outros veteranos têm mais dificuldade em aceitar a decisão. Há que recordar que, na cronologia de Tri, os eventos de Kokuhaku ocorreram poucos dias antes. O Reinício e as suas consequências ainda estavam frescas na memória. Ninguém pode censurá-los por estarem reticentes em matar um companheiro Digimon.
No entanto, ficam-se pelas intenções. Começa agora um dos momentos mais dolorosos que vi até ao momento, em Digimon. Depois de os amigos acederem ao pedido de Meiko, esta desata a correrem em direção ao confronto entre os Digimon. Não se sabe ao certo porquê – talvez para estar ao lado de Meicoomon nos seus últimos momentos, talvez para morrer com ela. Em todo o caso, Tai e Matt vão atrás dela. Daigo também, depois de instruir os outros para se manterem afastados.
Jesmon escolhe este momento para lançar o seu ataque especial, Un Pour Tous. Este deixa Raguelmon fora de combate, mas também abre fissuras no solo. Uma delas deixa Tai de um lado, Meiko e Matt do outro. Quando o solo começa a colapsar, Tai ordena silenciosamente a Omegamon que salve Matt e Meiko.
Eis o motivo para a derrota fácil dos outros Digimon, antes: se algum deles estivesse ainda apto, poderia ter salvo Tai.
Assim, Daigo é o único em condições de tentar socorrer o jovem. O seu grito, “Yagami!”, ficou-me nos ouvidos durante dias depois de ver o filme pela primeira vez. No entanto, nem ele nem Tai são suficientemente rápidos. O chão colapsa debaixo dos pés de ambos, rochas caem sobre eles.
Depois de a poeira assentar, apenas sobra uma fissura fina e os óculos de Tai.
Choque. Silêncio.
Da primeira vez que vi o filme, nem sequer reparei que Daigo também tinha caído. Só no dia seguinte, enquanto tomava as primeiras notas para esta análise e me pus a pensar no efeito que a “morte” de Tai teria em Daigo, é que me apercebi que não me lembrava de ver o agente depois de o jovem cair.
E só há relativamente pouco tempo é que me apercebi que Jesmon e Alphamon desaparecem depois da queda de Tai.
No rescaldo imediato da queda, a maior parte dos Escolhidos olha, especada, incapaz de processar o que acabou de acontecer. Kari, por sua vez, avança em direção à fissura, em estado catatónico, balbuciando pelo seu onii-chan. Apenas Nyaromon se apercebe de que algo se passa.
A desorientação de Nyaromon atingiu-me particularmente (o que sentirão os Digimon quando sobre uma digievolução negra?). Recordemo-nos que ela foi Reiniciada. Não sabe acerca das capacidades sobrenaturais da sua companheira humana. A Nyaromon não-amnésica podia, se calhar, ter percebido o que estava a acontecer e tentado travá-lo. Com o Reinício, no entanto, não pôde fazer nada para impedir que Kari fosse possuída pela Escuridão. E possuída a sério!
A possessão de Kari catalisa, não só a digievolução de Nyaromon para Ophanimon Fall Down Mode, também a sua fusão com Raguelmon. O resultado final é Ordenimon – uma coisa monstruosa, que faz antigos vilões, como as diferentes formas do Myotismon, os Mestres das Trevas, Apocalymon, parecerem o Avô Cantigas. (Quem precisa de histórias de terror depois disto?) A aparição de Ordenimon quebra a simbiose e o Mundio Digital começa a verter para o Mundo Real.
Em suma, começou o Apocalipse. E os Escolhidos perderam o seu líder, perderam o Omegamon (a sua melhor arma), perderam a Angewomon, poderão ter pedido a sanidade mental de um deles, perderam até o seu protetor adulto. Não têm aliados absolutamente nenhuns, nem entre os humanos, nem entre os Digimon e as entidades sobrenaturais que os governam.
É de surpreender que eu tenha precisado de uma bebida depois de ver Kyousei pela primeira vez?
O filme tira uns minutos, antes dos créditos finais, para mostrar a reação dos Escolhidos ao que acabou de acontecer – ao som da mesma banda sonora do prólogo de Soshitsu.
A cena em que Matt pendura os óculos de Tai ao seu pescoço ficou retido na minha retina durante vários dias (juntamente com o grito de Daigo). É, em simultâneo, um momento lindíssimo e dilacerante. Por tudo o que simboliza: uma passagem de testemunho involuntária; a adoção da liderança; um talismã de um ente querido perdido; uma homenagem a esse ente querido; uma lembrete do que lhe aconteceu. E também porque não deixa de parecer profundamente errado ser Matt e não Tai a usar os óculos.
Matt ordena aos amigos que sequem as lágrimas e se levantem para lutar. Com o mundo colapsando à volta deles, não há tempo para lutos.
De notar que, em Adventure, esta atitude por parte de Tai foi um dos catalisadores para o exílio voluntário de Matt, durante o último arco. Só prova quanto os dois jovens evoluíram desde essa altura.
Um último destaque para Koromon, ainda sentindo o imperativo de proteger o seu Escolhido, ao que parece (um dos primeiros sinais de que Tai sobreviveu?). Acaba por ser consolado, talvez mesmo adotado, por Meiko.
Conforme já dei a entender, este filme afetou-me profundamente. Já Kokuhaku tinha afetado, um ano antes, mas de maneira diferente. Kokuhaku teve um final triste, sim, mas agridoce, com uma nota de esperança. O final de Kyousei, por sua vez, não é apenas triste: é sombrio. Pelos motivos que listámos acima.
Não que fosse de esperar outra coisa. Este é o penúltimo filme da série. O seu objetivo era mesmo tornar a situação o mais complicada e desesperante possível – para depois ser resolvida no capítulo final. É uma das regras da ficção: fazer as personagens sofrer, desafiá-las, levá-las aos limites, obrigá-las a mostrar o que valem para sobreviver. Facilidades dão péssimas histórias. E este, de facto, é o maior desafio que os Escolhidos alguma vez tiveram de enfrentar.
Eu sabia que seria assim, antes de ver Kyousei. Devia ter estado preparada. Mas não estava.
A melhor forma que encontro para descrever o efeito que este filme teve em mim é com The Sound Of Silence: “Hello darkness, my old friend…”. Cheguei mesmo a compilar numa playlist no Spotify refletindo o meu estado de espírito pós-Kyousei. Músicas como Everything Burns (que representa bem o que aconteceu com Kari), Frozen, dos Within Temptation (que representa o ponto de vista de Tai em relação ao seu sacrifício), We Are Broken, dos Paramore (que descreve a situação dos Escolhidos no fim do filme), entre muitas outras.
Emoções à parte, há que dar crédito a um trabalho ficcional quando este consegue mexer com a sua audiência desta forma. É certo que Tri tem a vantagem de trabalhar com um elenco amado há muitos anos pela larga maioria da audiência. Isso apenas significa, no entanto, que o trabalho foi bem feito desde o início.
Eu, pelo menos, consumo bastante ficção desde pequena e, antes de Tri, foram pouquíssimas as ocasiões em que uma história me afetou tanto. Recordo, também, que não tive nenhum contacto com este universo durante dez anos.
Como tal, na minha opinião, Kyousei é o segundo melhor filme de Tri até agora. Kokuhaku continua à frente porque explora melhor a parte dramática e emocional e não se arrasta tanto a meio.
Está mais ou menos empatado com Saikai, contudo. Os dois filmes têm tons completamente diferentes, é difícil comparar.
Não que esteja cem por cento satisfeita com o modo como a narrativa está a decorrer. Entre outras coisas (coff coff, 02), estamos quase no fim de Tri e ainda sabemos muito pouco sobre o grande vilão da história (supostamente).
É possível que os digi-guionistas estejam a fiar-se no facto de uma boa parte da audiência conhecer Yggdrasil de outros universos de Digimon. Mesmo assim, o universo de Adventure já tinha estabelecido (mais ou menos) a Homeostase como a principal divindade do Mundo Digimon. Onde é que Yggdrasil se encaixa nesta equação? É uma divindade com poder equivalente à Homeostase? É uma divindade menor? É uma força que surgiu no Mundo Digimon após 02?
Tudo o que sabemos sobre a sua motivação aprendemos no monólogo do Dark Gennai, em Soshitsu. Ao que parece, Yggdrasil opõe-se à interferência de humanos no Mundo Digimon. Kyousei não aprofunda o assunto. O que é uma pena, porque esta motivação encaixa-se bem no tema recorrente de Tri: a desconstrução do conceito de Crianças Escolhidas.
Por essa lógica, o disfarce adotado por Gennai, de Imperador Digimon, faria muito mais sentido: se formos a ver, o Imperador Digimon foi o pior exemplo da interferência de humanos no Mundo Digital.
Esse conflito, além disso, liga-se bem com o que se passa na atualidade, com a crise dos refugiados, as políticas anti-imigração, os movimentos ultra-nacionalistas.
Uma das minhas seguidoras no Twitter, aliás, fez-me reparar nas semelhanças entre o Dark Gennai e Donald Trump. Não apenas porque Gennai vilaniza humanos, tal como Trump vilaniza qualquer um que não seja um homem branco heterossexual, também porque… vêmo-lo assediando raparigas. E eu, pelo menos, sinto repugnância física por ambos.
Também é possível que isto seja apenas uma ideologia de que se aproveita para recrutar peões. Ou uma desculpa para, quiçá, Yggdrasil usurpar o lugar da Homeostase e atacar o Mundo Real.
O problema de Tri (um de vários) é ser tão vago que uma pessoa como eu, que gosta de analisar estas coisas ao pormenor, a partir de certa altura, não consegue distinguir o que acontece de facto nos filmes e as nossas próprias teorias. Ou as de outros fãs, na Internet.
Outro reparo a Kyousei (mais ou menos) diz respeito ao papel de Kari. Ela aparece no poster, este devia ser o filme dela, pela lógica de Tri. No entanto, não é isso que acontece. Meiko, que também aparece no poster, tem tempo de antena de sobra. Mas, em vez de dividir o protagonismo com Kari, divide-o com o irmão desta. Tri está a imitar Adventure no sentido em que Tai é das personagens mais desenvolvidas, por vezes em detrimento das outras.
Dito isto, não posso dizer que não esteja de todo satisfeita com o papel de Kari em Kyousei. É certo que, com o reduzidíssimo desenvolvimento de Kari em termporada e meia e quatro filmes, tudo o que vem à rede é peixe. Mesmo assim, os digi-guionistas conseguiram evitar algumas das armadilhas em que costumam cair, no que toca à jovem. Como o uso dela como mero veículo de exposição, de Deus Ex-Machina ou de donzela indefesa.
Já falámos sobre o momento em que se rebela contra a Homeostase. Por sua vez, a sua possessão por parte das trevas não foi um evento ao calhas – foi uma consequência direta da perda de alguém que ama. Se formos a ver, foi mais ou menos o mesmo que aconteceu com Ken e Oikawa, em 02 – apenas mais rápido.
Tínhamos visto nessa temporada, aliás, que Kari sempre fora mais vulnerável do que o normal à influência das trevas – tal como, segundo as minhas teorias, alguns de nós são mais suscetíveis do que outros a depressões. A jovem ia conseguindo resistir graças àqueles que ama. 02 tirou um par de episódios para estabelecer T.K.e Yolei como pilares para a sanidade mental de Kari, mas ficou bem claro, desde o início desse arco, que Tai fora sempre um dos pilares mais importantes. Acho que todos sabíamos que, se Kari perdesse o seu onii-chan, o dique colapsaria e a Escurdão invalida-ia a jorros.
Gostava, no entanto, que Tri tivesse recordado a audiência acerca desta característica instabilidade de Kari, antes. Assim, a possessão de Kari parece um pouco repentina – sobretudo para quem não se lembre tão bem de 02.
Não deu para perceber ao certo em que estado ficou Kari, no final de Kyousei. Só a vemos amparada por T.K. Estará ainda sob a influência da Escuridão? Voltará a si, apercebendo-se do que desencadeou? E os outros Escolhidos, que se calhar não sabiam que Kari tinha estes poderes?
O que é certo é que, agora que Kari perdeu o irmão e a sua companheira Digimon, será muito difícil ela não ser desenvolvida no próximo filme. Finalmente. Espero, por exemplo, que se aproveite a oportunidade para descontruir a relação entre os dois irmãos, que nunca foi muito saudável: ele pela culpa de quase a ter matado, ela por se ter tornado demasiado dependente dele. (Por favor, digi-guionistas, não estraguem isto!!)
Estou, também, curiosa relativamente à maneira como os Escolhidos lidarão com Ordenimon. Continuarão decididos a matar Meicoomon ou, agora, que esta se fundiu com Gatomon, mudarão de ideias? Afinal de contas, Gatomon não está corrompida (pelo menos não da mesma maneira que Meicoomon) e, sinceramente, Kari acabou de perder o irmão, não precisa de mais.
Isto se forem, sequer, capazes de fazer mossa a Ordenimon – sem o Omegamon, será muito difícil.
Outra incógnita diz respeito à liderança de Matt. Da última vez que Tai despareceu e os miúdos não sabiam se ele estava vivo – na transição do segundo para o terceiro arco de Adventure – o grupo acabou por se desintegrar. Teve de ser o próprio Tai a reuni-los de novo.
As circunstâncias, agora, são muito diferentes: os miúdos estão mais velhos, têm mais experiência nestas lides. Matt, em particular, é uma pessoa completamente diferente, mais parecida com o Tai de Adventure – sobretudo na filosofia de “lutar primeiro, chorar depois”. Por fim, naquela altura em Adventure, não havia nenhum vilão a precisar de ser derrotado – tanto quanto sabiam. Agora passa-se o completo oposto.
Também temos a questão do luto por Tai. Matt vai obrigar toda a gente a engolir as lágrimas, como acabámos de ver. Mas é possível que pelo menos alguns dos Escolhidos não consigam aguentar por muito tempo.
É o que eu espero, pelo menos. De que serve Tai “morrer” se a única reação a que teremos direito for a possessão de Kari? Será um desperdício se o jovem voltar para junto dos amigos antes de ter havido choradeira a sério.
Toda a gente sabe que o Tai não morreu. Porque epílogo de 02 e porque ele e Omegamon aparecem no poster do próximo filme. Mesmo que não tivéssemos estes “spoilers”, acho que alguns de nós não acreditariam que Tai estivesse mesmo morto.
Daigo, por sua vez, não tem nenhuma garantia. É possível que ele tenha morrido a sério. Não me parece, no entanto. A sua história individual ainda não terminou – pelo contrário, está apenas a começar a sério. Se houver alguma personagem a morrer em Tri, acho mais provável ver Maki. Ou Meiko.
Em todo o caso, se tanto Tai como Daigo sobreviveram, hão de ter ido parar a algum sítio. É uma das maiores perguntas a que o próximo filme terá de responder.
A minha hipótese preferida é Tai e Daigo irem parar ao mesmo sítio aonde o elenco de 02 foi parar, no início de Saikai – talvez como prisioneiros de Alphamon e/ou Yggdrasil, no Mar Negro ou no Mundo dos Sonhos ou, pura e simplesmente, numa parte desconhecida do Mundo Digimon. Seria uma boa maneira de trazer Davis e os outros para a história e compensaria pela maneira fraquinha como têm ligado com esta questão até agora.
Bem, quase.
Não me atrevo, no entanto, a alimentar demasiadas esperanças. As minhas expectativas estão tão baixas que quase me contento com uma ou duas linhas de diálogo dando uma explicação, mesmo que seja má. É um bocadinho triste, na verdade.
É por estas e por outras que, mais do que com os filmes anteriores, estou ansiosa pela sinopse do próximo. Esta, infelizmente, ainda deverá demorar.
Mas falemos, então, sobre o último filme de Tri. Este chamar-se-á, Bokura No Mirai, que significa “O Nosso Futuro”. Foge da regra de Tri, até agora, dos títulos de uma palavra só e… aqui entre nós, isso chateia-me um bocadinho. Mais por motivos práticos: os títulos simples dão jeito nestas análises. Vai ser um bocadinho chato estar sempre a escrever Bokura No Mirai.
À parte isso, este título não diz muito – apenas que parece adequado a um final de série e que possa ser uma referência ao tema Bokura No Digital World, do final de 02.
Nesse aspeto, o poster é mais últil: com o elenco principal de humanos e Digimon, Meiko e Meicoomon caindo. A minha primeira interpretação foi que ambas morreriam nesse filme – um bom reflexo do meu estado de espírito pós-Kyousei. Agora, acredito que signifique, apenas, que os Escolhidos vão continuar à procura de uma maneira de salvar Meicoomon.
O desfecho mais provável para esta história será Meicoomon morrer, de uma forma ou de outra, e renascer completamente saudável, sem o tal fragmento de Apocalymon.
Por outro lado, o detalhe do poster que tem deixado os fãs em polvorosa é o suposto chapéu do Wizardmon, como mostra a imagem abaixo. Faria sentido. Um dos efeitos do Reinício é a ressurreição de Digimon falecidos no Mundo Real. Ninguém se admiraria se o Wizardmon ajudasse Kari e/ou Gatomon a voltarem a si. Ou se ajudasse Gatomon a desbloquear a sua verdadeira forma Hiper Campeã.
Só espero que ele não morra outra vez. Não precisamos de outro Leomon.
Entre isto, o destino de Tai e Daigo, o destino de Maki e todas as pontas por atar em Tri, Bokura No Mirai tem muito com que lidar. Por esse motivo, entre outros, vários fãs (eu incluída) estão à espera que este filme tenha cinco episódios, à semelhança de Kokuhaku. Mesmo assim, quatro episódios até podem chegar – se os digi-guionistas forem capazes de acelerar o ritmo da história e de cortar nos fillers.
A estreia de Bokura No Mirai está marcada para 5 de maio de 2018. Esta data só foi anunciada há cerca de duas semanas – antes disso, a única previsão que tínhamos para a estreia era para o verão. Muitos fãs, na altura, ficaram desanimados mas, aqui entre nós, eu não me importaria de esperar. Ainda não me sinto preparada para me despedir de Tri e muito menos das nossas eternas Crianças Escolidas. Não me queixava se tivéssemos mais uns meses de especulação e teorias – afinal de contas, estas acabam com o último filme.
Estou, no entanto, aliviada por a estreia do filme não coincidir com o Mundial 2018 – altura em que estarei ocupada com o meu outro blogue.Já foi difícil com Kyousei, que saiu no dia a seguir à Convocatória para os últimos jogos da Seleção. Tinha de escrever um texto entusiástico, motivador, no pós-Kyousei, quando tudo o que me apetecia era deitar-me no chão, ouvindo Pieces, dos Sum 41, em loop. Acabei por conseguir escrever esse texto, mas demorou-me mais tempo do que o costume.
Com uma estreia em princípios de maio, terei tempo de sobra para processar o filme antes de me virar para o meu outro blogue. O pior que pode acontecer é atrasar-me na escrita da análise… ainda mais do que o costume, isto é. Porque, por mais que me esforce, estes testamentos levam-me semanas.
Como é o último filme, no entanto, não haverá grande pressa. Pelo contrário, sei que vou ter saudades de escrever sobre Tri.
Em parte para mitigar essas eventuais saudades, estou a pensar começar a ver as outras temporadas de Digimon – Tamers, Frontier e por aí fora – depois de publicar essa última análise. Talvez mesmo escrever sobre elas aqui no blogue, como fiz com Adventure e 02, há dois anos. Com a diferença de estas não serão influenciadas pela nostalgia de tê-las visto na infância – serão as opiniões de uma mulher adulta, contactado com esses universos pela primeira vez.
O motivo principal, contudo, é por não querer perder o contacto com Digimon depois de Tri. Estive dez anos fora, voltei há dois. Desde então, fiz várias amizades online graças à franquia – incluindo durante o encontro do Odaiba Memorial Day. Agora que aqui estou, não quero voltar a sair tão cedo.
Obrigada a todos os que se deram ao trabalho de ler este testamento.
Segunda parte da minha análise a Kyousei. Podem ler a primeira parte aqui.
Como as casas dos miúdos estão cercadas de jornalistas, Daigo leva-os para a escola – vazia em tempo de férias de verão. Aqui, coloca-os ao corrente da destruição provocada por Meicrackmon, bem como da decisão da Homeostase em eliminá-la.
Não se percebe se Daigo lhes conta a parte de Meicoomon ter nascido com uma partícula de Apocalymon ou de Meiko ter sido Escolhida para, essencialmente, lhe servir de Alprazolam. É possível que lhe tenha omitido este segundo aspeto porque, pelas Bestas Sagradas, a miúda não precisa de mais sentimentos de culpa por algo que lhe foi imposto aos onze anos.
De notar que, quando os miúdos querem partir para a luta, Tai obriga-os a parar e a pensarem antes de agir. Matt pensa logo que Tai está a regressar à apatia dos primeiros filmes de Tri – ou isso ou ele, pura e simplesmente, tem como primeiro instinto partir para a discussão no que toca a Tai (chega a ser caricato, às vezes). Tai diz apenas que eles têm de abordar as coisas com cuidado para evitar danos colaterais desnecessários. Garante, no entanto, que está do lado dos seus Digimon e lutará por eles.
Meiko, por sua vez, continua a sentir-se culpada pelo caos que o seu Digimon está a provocar e a questionar o seu propósito como Escolhida. Dá para reparar mesmo que, à medida que o tempo passa, Meiko vai ficando cada vez mais alheada dos outros, mais fechada sobre si mesma.
Os amigos repetem a conversa da gruta, insistem que Meicoomon precisa da sua companheira, que Meiko não pode desistir dela. Nesta fase, isto começa a soar repetitivo, sobretudo quando vemos o filme pela primeira vez. Mas acho que é intencional: para mostrar que os oito veteranos estão agarrados, com unhas e dentes, à fé que os ajudou a sobreviver a seis anos como Escolhidos. Não conseguem, nem por um momento, conceber um cenário diferente. Nem mesmo quando percebem que Meicoomon está a ser manipulada por Yggdrasil e que a posição da Homesostase neste conflito é incerta.
Nesse aspeto, a frase dita por Kari mais tarde, um pouco vinda do nada – “Não é possível compreender a gravidade de algo até este acontecer perto de nós” – descreve bem o conflito entre Meiko e os amigos. Pode até mesmo ser aplicável a Tri em geral. Os Escolhidos veteranos não se apercebem que a história deles com os Digimon é diferente da de Meiko. Eles receberam os seus companheiros digitais para os ajudar a resolver um problema, ou vários. Por sua vez, o Digimon de Meiko era o problema que ela tinha de resolver.
Também faz parte do crescimento: nem sempre existem soluções ou caminhos universalmente certos.
Com o grupo em risco de cair no desânimo, T.K. desafia toda a gente para uma sessão de histórias de terror – mesmo no espírito de uma noite de acampamento ou de uma festa do pijama.
Esta parte é um filler, não há como negá-lo. Ninguém espera ver os heróis em amena cavaqueira em vésperas do Apocalipse. Dito isto, estas cenas proporcionam algum alívio cómico – que também é importante tendo em conta o que aconteceu até agora, no filme, e sobretudo o que acontecerá a seguir. E, sejamos sinceros, é um dos momentos mais engraçados até agora em Tri. Ainda mais que a invasão dos balneários, em Ketsui.
Um dos principais motivos para esta cena resultar tão bem é o facto de maior alvo da piada ser o Matt. Personagens que se levam demasiado a sério são ótimos alvos para comédia. Em Adventure, esse papel era desempenhado por Joe. Uma parte da sua evolução como personagem, contudo, consistiu em aprender a não levar a vida tão a sério.
Assim, o alvo das brincadeiras passou a ser Matt – quase sempre de mau humor, que leva tudo a peito, que precisa de doses exatas de pimenta nos seus noodles. É uma delícia vê-lo com medo de histórias de terror (o Matt, de todas as pessoas…) e os amigos a rirem-se dele – em particular o seu irmãozinho. O pormenor de Matt tocando baixo no ar, durante a história, foi bem sacado.
Por outro lado, depois de tudo por que os miúdos passaram nos últimos seis anos… como é que algum deles tem medo deste género de histórias? Isto para não dizer que história de terror a sério será o que acontece na manhã seguinte…
Mas não nos adiantemos.
Outro momento bonito foi quando os miúdos ligaram aos pais – um toque de realismo que não se prolonga demasiado e até contribui para alguma caracterização. Como Sora e Mimi consolando-se uma à outra e Matt recusando-se a falar com a sua mãe (hum…).
A única conversa que ouvirmos é a de Tai com a sua mãe. Já a tínhamos visto antes, no filme, acompanhando a situação através dos noticiários. O seu papel como representante das famílias dos Escolhidos (dos oito veteranos, pelo menos) não terá sido atribuído por acaso. Pelo contrário, parte o coração, tendo em conta o que acontecerá a seguir. Sobretudo quando ela pede a Tai que tome conta da irmã e dos Digimon.
Podia escrever um testamento à parte deste sobre as possíveis implicações por detrás deste pedido inocente e a sua influência na relação entre Tai e Kari. Já irei dizer algumas coisas mais à frente e poderei dizer ainda mais, na análise ao próximo filme de Tri. Mas, para já, passemos à frente.
Depois dos telefonemas aos pais, Tai encontra Meiko sozinha, no exterior (no pátio da escola?) – outro sinal de que está cada vez menos em sintonia com os outros Escolhidos. Tai ouve-a pensando em voz alta. Quando Meiko dá pela presença dele, os dois conversam.
Sempre gostei de momentos assim em ficção. Duas personagens (interesses românticos ou não) a sós, trocando confidências e/ou tendo conversas profundas debaixo das estrelas, enquanto o resto do elenco dorme. Às vezes com tempo para comentários sobre as constelações ou para a ocasional estrela cadente. Por sinal, em Kyousei, a sequência dos créditos e a música – a lindíssima Aikotoba – captam bem o espírito intimista e pacífico desses momentos.
Esta cena encaixa-se bem nesse modelo. Tai ouvira Meiko refletindo sobre a sua relação com Meicoomon, questionando a filosofia com que os amigos andavam a martelá-la. Todos lhe diziam que havia um laço inquebrável, quase sagrado, entre Escolhido e companheiro Digimon. No entanto, tudo o que Meiko fizera de acordo com esse princípio só piorara a situação.
Tai tenta consolar Meiko à sua maneira. Reflete sobre as diferenças entre a maneira como uma criança vê as coisas e a maneira como um adulto as vê – um dos temas recorrentes em Tri e com o qual quase toda a audiência se identifica. Afinal de contas, quase todos nós vimos Adventure pela primeira vez quando éramos pequenos – há quase vinte anos, nalguns casos. Nenhum de nós vê o mundo da mesma maneira. Eu não vejo, pelo menos.
Tai, no entanto, comente o mesmo erro que ele e os outros veteranos têm cometido neste filme: não consegue ver além dos seus próprios vieses, não percebe que a experiência de Meiko com o cargo de Escolhido é diferente. A jovem começa mesmo a assumir que o Dark Gennai estava a falar dela quando dizia: “Não devias ter nascido” – ao que Tai responde com brusquidão. Arrependido, dá a conversa por terminada – não sem antes dizer a Meiko para não ir por esses caminhos.
Depois disto, ambos ficam a ruminar sobre a conversa – e ambos são ouvidos por Agumon, por sinal. Mais uma vez, a unidimensionalidade do Digimon acaba por resultar bem.
Meiko confessa, para a surpresa de absolutamente ninguém, que tem inveja dos outros Escolhidos – cada um com um companheiro Digimon, com todas as vantagens, sem o medo constante que eles de repente se passem e destruam tudo à sua volta. Agumon, por sua vez, diz acreditar que Meicoomon ama a sua companheira humana, tal como qualquer outro companheiro Digimon. Isso sempre consola Meiko um bocadinho.
Tai, por sua vez, torna a refletir sobre a sua condição de quase-adulto – em que já não consegue deixar de se preocupar com as coisas, com as consequências das suas palavras e ações.
Sinto a tentação de perguntar se Tai deseja mesmo voltar a ser o miúdo impulsivo e irresponsável de Adventure. Eu não quereria. Tenho saudades da minha infância de vez em quando, sim. Isso não significa que queria voltar a ser a pessoa que era na altura – uma miúda mimada, egoísta, ainda mais bicho-do-mato que sou agora.
Mas estou a desviar-me.
Agumon, na sua inocência, diz que, tal como ele come quando tem fome, quando Tai se preocupa, deve fazer alguma coisa em relação a isso. Procurar resolver os problemas que o atormentam.
A oportunidade para isso surge na manhã seguinte, quando Meicoomon reaparece. Esta parte do filme dá-me um dejá-vu de Kokuhaku: voltámos a passar três episódios (OK, um bocadinho menos) com Meicoomon fugida, causando confusão pelo Mundo Real e os miúdos basicamente à espera que ela regresse, para o confronto.
E a verdade é que, em Kokuhaku, essa espera foi melhor. Não que não tenha acontecido nada de interessante até agora – pelo contrário, gastámos cerca de quatro mil palavras a falar sobre isso. Mas nada disto teve um impacto emocional que se compare à infeção de Patamon e os Digimon passando bons momentos com os seus companheiros humanos antes do Reinício.
As próprias personagens fazem referências aos eventos de Kokuhaku – nomeadamente quando Izzy impede os Digimon de partirem imediatamente para o combate com Meicrackmon, receando que estes sejam infetados de novo. Os Digimon, no entanto, insistem em lutar e os miúdos aceitam.
Por fim, tal como aconteceu em Kokuhaku, este confronto acaba horrivelmente mal. Eu diria mesmo que agora foi pior.
Antes de partirem para a luta, Meiko tenta, pela milionésima vez, apelar a Meicoomon e ao laço que as une – se é que este ainda existe. Chega mesmo a pedir à sua companheira que a castigue por ter falhado enquanto Escolhida.
Meicrackmon não reage. Os miúdos não têm escolha senão partirem para o confronto físico. Os Digimon passam logo ao nível Perfeito – desta vez não se perdeu demasiado tempo com sequências de digievolução infinitas. Dividiu-se o ecrã e está a andar. Uma mudança bem-vinda após a confusão que foi o final de Soshitsu.
Entretanto, os miúdos e Daigo apercebem-se que o medo sentido por Meicoomon torna-a virulenta e catalisa a distorção. Faz sentido com o que temos visto até agora – nomeadamente o assassinato de Leomon, após se ter recordado dele na forma infetada.
Os miúdos não têm tempo para mudar de abordagem – uma vez que este é o momento escolhido por Jesmon para entrar em cena. Ainda não foi confirmado oficialmente, mas é quase certo que este Jesmon é o Huckmon digievoluído, enviado pela Homeostase para eliminar Meicrackmon.
É neste momento que os miúdos sentem na pele a traição da Homeostase. Ela (ela?) usara os miúdos a seu bel-prazer durante seis anos para resolver aquilo que, pelo que se via agora (e, de certa forma, se viu com as Primeiras Crianças Escolhidas), até podia ter resolvido sozinha. Agora que os Escolhidos questionavam os métodos dela, descartava-os. Conforme Tai diz, os Escolhidos já não sabem em quem confiar, já não sabem quem é o verdadeiro inimigo nesta equação.
Outro sinal de que o público-alvo de Tri já não é o infantil: o Bem e o Mal não se distinguem facilmente, nenhuma das partes está cem por cento certa. Nem mesmo os Escolhidos.
Além de atirar os miúdos aos lobos, a aparição de Jesmon desencadeia a digievolução de Meicrackmon para Raguelmon. Pelas palavras do Dark Gennai, que observa a cena à distância, isto ajuda a causa de Yggdrasil.
De facto, se virmos bem as coisas, as ações da Homeostase para resolver o problema Meicoomon só têm piorado uma situação já de si má. Desde a expulsão de Meicoomon para o Mundo Real, passando pelo Reinício, acabando no que acontece a seguir, em Kyousei. E esta ainda tem a lata de culpar os Escolhidos pelo que está a acontecer, conforme veremos já de seguida.
Os miúdos têm uma oportunidade de falar diretamente com a Homeostase quanto esta toma posse de Kari. Através dos lábios da jovem, a Homeostase ordena aos Escolhidos que não interfiram, que deixem Jesmon eliminar Raguelmon. Chega mesmo a acusá-los de terem falhado – tal como Hackmon fizera com Daigo – e mesmo a ameaçar matá-los também.
Tal como já acontecera com o envio de Jesmon, hostilizar os Escolhidos tem o efeito contrário ao desejado. Só torna os miúdos mais casmurros, mais empenhados em proteger Raguelmon – que, ainda por cima, poucos minutos, protegera Meiko. Os miúdos interpretam-no como um sinal de que o laço entre o Digimon e Meiko ainda não despareceu e nem querem ouvir falar em matar Meicoomon.
Daigo é dos que mais protesta. Tanto por raiva pelo que aconteceu com Maki como por genuína afeição aos miúdos, tal como vimos antes. Chega mesmo a gritar:
– Estas crianças não são teus peões!
Os maiores protestos, contudo, partem de Kari, que se rebela contra a possessão da Homeostase. Da primeira vez que vi esta cena, cheguei a festejar, como um golo num jogo de futebol. Já estava na altura de Kari deixar de aceitar, passivamente, o papel de marioneta de entidades sobrenaturais. Esperámos anos pelo momento em que Kari se defendesse a si mesma, quer da Homeostase quer da Escuridão, sem ser amparada por outros. Eu, pelo menos. Como se diz em inglês, you go, girl!
O reverso da medalha, no entanto, virá mais tarde.
Numa coisa a Homeostase tem razão, no entanto: as emoções estão a toldar a visão dos Escolhidos. E nem sequer se pode dizer que a Homeostase esteja errada. Pelo contrário, ela está a dar prioridade ao bem coletivo – e, sejamos honestos, este nunca teve mais ameaçado. Mas ainda faltava até os miúdos estarem em condições de enfrentarem a verdade.
Por sinal, a pessoa que, em teoria, tinha mais motivos para protestar mantém-se alheada do conflito. Tomem nota, que isto é importante.
Para já, a revolta dos miúdos catalisa o regresso do Omegamon – nesta fase, já tinham surgido todas as formas Extremas disponíveis. A luta muda-se para o Mundo Digimon (aparentemente) via distorções.
É também nesta altura que Alphamon decide juntar-se à festa – porque a situação não estava preta que chegue. Ao que que parece, este está do lado de Yggdrasil e luta com Jesmon para impedir que este mate Raguelmon.
Não dá para ter certezas absolutas, no entanto. É um dos problemas de Tri: continua a haver muito por explicar. Há coisas que nós, na audiência, assumimos como certas, mas que os filmes não confirmam preto no branco. Mas isso é conversa para as alegações finais.
Para já, dizer apenas que Alphamon consegue, com um só golpe, reduzir os Digimon (tirando Omegamon) dos miúdos às formas Bebés. O que, sinceramente, é uma desilusão. Estivemos anos e anos à espera destas formas Extremas e estas não se aguentam perante um dos primeiros adversários a sério que encontram?
Acho, no entanto, que isto se deveu a motivos de enredo, mais do que a verdadeira inaptidão dos Digimon. Não me admirava se, no próximo filme, eles fizessem melhor figura.
Hoje ficamos por aqui – agora que começa a custar escrever sobre Kyousei. Acho melhor tirarmos uma publicação para falar sobre os eventos da reta final do filme e as suas consequências. Continuamos amanhã.