The Hunger Games/Os Jogos da Fome
Ando para escrever sobre a série de livros da autoria de Suzanne Collins e respetivas adaptações cinematográficas há já algum tempo. É uma das sagas da moda e eu, à semelhança de muita gente, li os livros mais ou menos na altura em que saiu o primeiro filme. Não digo que os livros sejam dos meus preferidos mas, definitivamente, foram dos que mais me marcaram nos últimos anos, de uma maneira perturbadora até.
ALERTA SPOILER: Este texto contém revelações do enredo tanto dos livros como dos filmes da série The Hunger Games/Os Jogos da Fome. A leitura só é aconselhada caso tinham lido os três livros, até para a própria compreensão deste texto.
Vou começar por falar do primeiro livro, que deu o nome à série: The Hunger Games/Os Jogos da Fome. Nesta altura do campeonato, já toda a gente conhece as premissas: o mundo pós-apocalíptico e distópico, o governo opressivo, o contraste entre o luxo obsceno e degradante e a miséria medieval dos distritos mais desfavorecidos, o conceito dos Jogos da Fome. O único aspeto que não me convence em Panem é a ausência de uma qualquer obrigatoriedade de veneração dos líderes. As crianças não são obrigadas a cantar o hino nacional de olhos no presidente e no primeiro-ministro, como em Portugal, nem a expressão "Obrigado, Querido Líder" se encontra entre as suas primeiras palavras. A política de medo, sem nenhuma espécie de paternalismo que a atenuasse, facilitou a adesão do povo à revolta, bastou "uma mão-cheia de bagas" e a esperança revelou-se "mais forte que o medo" Se o povo tivesse sido (melhor) ensinado a venerar o presidente Snow, talvez a revolução não se teria alastrado tão "facilmente".
Mas este é apenas um pormenor.
Na minha opinião, se o primeiro volume é o melhor de trilogia não sei, mas é definitivamente o que se lê com mais facilidade. Tem um enredo mais linear, o ritmo é constante e eu, pelo menos, não conseguia parar de ler, precisava de saber desesperadamente como iria Katniss sobreviver aos Jogos.
Antes de prosseguirmos, quero referir brevemente que todo o conceito da "Girl on Fire/A Rapariga em Chamas" recordou-me, deste início, a obra portuguesa Felizmente Há Luar, de Luís de Sttau Monteiro, que aliás aborda temas semelhantes aos Jogos da Fome. Sempre torna o livro mais apelativo aos alunos do 12º ano, quando o estudam em Portugês - isto se ainda fizer parte do programa.
O segundo volume não é tão sólido como o primeiro. Em Catching Fire/Em Chamas, são abordadas as sequelas dos acontecimentos do livro anterior, em particular da maneira como Katniss e Peeta conseguiram sobreviver aos Jogos da Fome, quando a ideia era só haver um vencedor. O truque que os dois tributos usaram para não terem de matar o outro ou matarem-se a si mesmos é interpretado como um desafio ao poder instituído. São, assim, plantadas as sementes da revolta. Katniss é obrigada a tentar controlar o fogo que ela ateou acidentalmente mas não é bem sucedida, obrigando o Capitólio a tomar medidas.
Quando li o livro pela primeira vez, as hesitações de Katniss em aderir à revolta irritaram-me. Hoje sei que são mais do que justificadas - mais sobre isso adiante. Depois de Katniss, finalmente, aceitar passar do modo de fuga ao modo de luta, aquilo que me parecia ser o fluxo natural da história é interrompido pelo Quarteirão. Apesar de, de certa forma, esta edição especial dos Jogos da Fome fazer sentido - sobretudo depois de o filme dar uma explicação melhor, a mim pareceu-me um bocadinho enfiada a martelo. Além disso, os últimos capítulos estão demasiado confusos, penso que só compreendi verdadeiramente tudo o que tinha acontecido quando vi o filme.
O terceiro volume da trilogia, Mocking Jay/A Revolta, revelou-se algo confuso da primeira vez que o li. A ação decorre um pouco aos solavancos, com Katniss profundamente afetada, tanto física como psicologicamente, pelas duas participações nos Jogos da Fome, indo constantemente parar ao hospital, por motivos variados. Mas, ainda que o ritmo da história saia prejudicado, tudo isto faz sentido se formos a ver que a protagonista foi e continua a ser, ao longo do livro, ferida de todas as maneiras possíveis e imaginárias. Por outro lado, existe, na minha opinião, um excesso de personagens - eu, pelo menos, senti dificuldades em lembrar-me de quem é quem.
Neste volume, Katniss encontra-se a colaborar com o Distrito 13, responsável pela revolução em Panem. Apesar de, aparentemente, estarmos agora com os "bons", notei desde início que estes recorriam exatamente aos mesmos meios do Capitólio, seja pela filosofia "quem não é por nós, está contra nós", pela exploração política e mediática da imagem de Katniss, pela chantagem, pelo derrame de sangue. Daí que a relação entre Katniss e os rebeldes seja sempre pautada pela desconfiança. De certa forma, ajudou a atenuar a revelação no final, ainda que o choque não tenha deixado de existir.
Antes de partir para as alegações finais, quero falar das adaptações cinematográficas dos dois primeiros livros. Ambos os filmes estão bem feitos, de uma maneira geral, muito por causa do excelente desempenho do elenco. Destaco Jennifer Lawrence, uma atriz que tenho vindo a admirar cada vez mais, que corporiza de maneira excelente a complexidade de Katniss, as suas diferentes camadas. Em termos de história, ambos os filmes estão extremamente fiéis aos livros, conseguindo em certas alturas superá-los. Momentos como a Ceifa, no primeiro, e o discurso no Distrito 11 no segundo, são retratados com emoção mais pungente nos filmes.
Outra vantagem em relação ao texto original diz respeito à inclusão de cenas pontuais não centradas em Katniss, que clarificam o enredo. Cenas que não eram possíveis num livro escrito na primeira pessoa, mas que fazem falta. É por estas e por outras que eu, provavelmente, não conseguiria escrever um livro na primeira pessoa. Gosto demasiado de apresentar a história sob perspectivas diferentes.
Estou com alguns receios relativamente à adaptação do terceiro livro. Primeiro, por estar dividido em dois filmes - uma decisão claramente comercial mas que duvido que seja a mais adequada à história. Outra preocupação prende-se com o substituto de Philip Seymour Hoffman.
Conforme já afirmei no início deste texto, os Jogos da Fome são uma das sagas mais populares da atualidade mas, na minha opinião, são muito mais do que um mero fenómeno infanto-juvenil ou uma série de blockbusters. Aliás, por vezes a intensa mediatização dos filmes irrita-me, pois estes acabam por passar por mais fúteis do que realmente são. Os Jogos da Fome podem ter como público-alvo o infanto-juvenil mas a verdade é que a série aborda questões bem sérias, sendo o tema principal a guerra e tudo o que com ela se relaciona: o conflito entre humanidade e sobrevivência, o combate à violência com violência. Quanto à crítica à cultura dos reality shows, muito referida a propósito destas obras, na minha opinião, assume um carácter secundário. O tema do "pão e do circo" - que de resto inspiraram a história - não está assim tão pouco batido. Outra das grandes falhas do sistema político em Panem é, aliás, o facto de o pão e o circo serem apenas dados à população do Capitólio, uma minoria. Por contraste, a população da larga maioria dos distritos passa fome e os Jogos não lhes servem de entretenimento - pelo contrário, são um pesadelo.
É o que acontece na guerra, na vida real. Tal como alguém diz - não sei se no livro ou no filme - "não há vencedores, apenas sobreviventes". Não há heroísmo, não há glória, apenas se cumprem ordens, se procura sobreviver e, quanto muito, proteger os companheiros - algo que, muitas vezes, implica cometer atrocidades e que, tal como Peeta afirma, "custa tudo o que se é". E os soldados, frequentemente, não passam de peões a quem os líderes recorrem quando não conseguem resolver os seus diferendos de outra maneira. E eu interrogo-me se esses líderes terão, de facto, noção das sequelas que ficam nos soldados, sem nunca desaparecerem por completo.
Nesse aspeto, os Jogos da Fome levam essa realidade até à última escala, na medida em que os soldados, os peões, são crianças.
De igual modo, é abordada a maneira como, na urgência de combater a opressão, a ditadura, se corre o risco de nos transformarmos precisamente naquilo que odiamos, no preço que é necessário pagar. O fogo é muito bonito, mas queima. No final de Mocking Jay, o regime cai, os Jogos da Fome são abolidos, é dado a entender que a democracia é instituída em Panem. Será que isso vale todo o sangue derramado, todo o sofrimento provocado? E, no entanto, teria sido melhor ficar tudo na mesma, com os distritos na miséria, crianças morrendo todos os anos, em direto na televisão?
São perguntas que ficam por responder no fim da história. É também por esta altura que, pelo menos pela parte que me toca, sobe a consideração por Peeta. Por, por entre tantas manifestações do pior da natureza humana, ele ir conseguindo manter a gentileza, algum do seu idealismo, acabando, no fim, por se tornar num símbolo de esperança, de "renascimento em vez de destruição", no fundo, do melhor lado na natureza humana.
Não é possível evitar fazer comparações com a vida real. Pensar no nosso país, no nosso regime ditatorial, na sorte que tivemos por o 25 de abril ter sido relativamente pacífico, com "apenas" quatro mortos e quarenta e cinco feridos - demasiados danos, mesmo assim. Pensar, não apenas nas restrições à liberdade, mas também nos presos políticos, torturados e assassinados pela PIDE por tentarem mudar o regime - ouvi alguns testemunhos no programa "Limite da Dor" da Antena1. Indigno-me quando oiço pessoas comparando o sistema político atual com os anos da ditadura. Ou suspirando por um regresso de Salazar. O nosso regime atual pode ter muitos defeitos mas, entre muitas melhorias, não matamos nem torturamos presos políticos, tanto quanto sei. Demasiadas vezes, dá-me a sensação de que as pessoas tomam a liberdade por garantida - algo que considero perigoso.
Penso também na Coreia do Norte, cujas atrocidades lá cometidas apareceram nas notícias, recentemente. Penso nos confrontos na Ucrânia, atualmente, em como é tão fácil uma simples manifestação resvalar para a violência e tenho sempre medo de que aconteça o mesmo em Portugal.
É por todas estas reflexões que induz que os Jogos da Fome são uma obra que se destaca sobre as demais. E embora eu não deixe de reconhecer o valor de um mero entretenimento - sobretudo para aqueles cujas vidas são já suficientemente difíceis para, no seu tempo livre, irem meterse em ficção igualmente sombria, ou ainda mais - eu preciso de obras que me inspirem desta forma. Os Jogos da Fome tiveram, indubitavelmente, o mérito de me oferecer uma nova perspetiva sobre este género de ficção, depois de anos em contacto com ele, escrevendo sobre ele. Daí que, naturalmente, me sirva de ajuda na escrita. Digo mais: se, como escritora, o meu trabalho for capaz de induzir nem que seja um terço deste tipo de reflexões, considerá-lo-ei um sucesso.