Digimon Tamers #10 – As segundas linhas, o Gary Stu e a mascote
Nesta parte da análise vamos, então, analisar personagens do lado dos bons que, na minha opinião, não justificam uma publicação individual dedicada a eles. Começando por Hirokazu e Kenta, duas adições tardias à equipa dos Treinadores.
Mesmo só se juntando oficialmente ao grupo na segunda metade da narrativa, Hirokazu e Kenta estão lá desde o início. São, ao que parece, os dois melhores amigos de Takato e partilham com ele a paixão por Digimon enquanto franquia. Dos três, aliás, Hirokazu parece ser o melhor no jogo de cartas – pelo menos, vêmo-lo sempre ganhando, quando joga contra Kenta.
Os dois funcionam com um muito bem-vindo alívio cómico, numa temporada tão sombria como esta. No entanto, na minha opinião, não é essa a melhor utilidade deles. Conforme referi antes, os protagonistas, sobretudo Takato, possuem um grupo de apoio de crianças da sua idade. Hirokazu e Kenta acabam por funcionar como representantes desse grupo. Estão lá para apoiar. Não são a primeira linha de ataque, mas em momentos-chave fazem a diferença.
Falemos de cada um individualmente. Hirokazu usa uma t-shirt estampada com um símbolo que faz lembrar o Cartão da Lealdade/Confiabilidade do universo de Adventure – e de facto acho que este seria adequado para Hirokazu.
Para começar, o jovem obteve o seu Digimon ficando para trás, a cuidar dos seus ferimentos. Como referi acima, é leal aos seus amigos, está lá para ajudar no que pode. É certo que ele e Kenta cometeram um par de asneiras que deixaram Ruki à beira de um ataque de nervos. No entanto, em momentos de aperto, foi fundamental. Nomeadamente, quando ele mesmo desenhou uma Carta Azul, para ser usada por Takato, Ruki e Jian, e quando um ataque de Guardromon na altura certa, distrai Beelzebumon, salvando a vida a Dukemon.
O jovem demonstra mesmo um altruísmo raro para a idade quando se oferece para ficar a tomar conta de Shaochung, enquanto o trio de protagonistas, juntamente com Lopmon, tenta penetrar no castelo do Zhuqiaomon. Isto sem deixar de admitir que até queria ir com eles.
Quantas crianças de dez anos são capazes disso? De pôr de parte os seus desejos em nome do bem comum?
Por outro lado, por muito boas que fossem as intenções de Hirokazu, na prática pouca diferença fez. O jovem instruíra o Guardromon para “ficar de olho” em Shaochung. A menina, no entanto, acaba por ser transportada pelo ar até ao castelo do Zhuqiaomon (mais sobre isso adiante). Quando Hirokazu ralha com o seu Digimon por não ter feito nada, Guardromon defende-se dizendo que fez exatamente o que o Treinador lhe pedira: não tirara os olhos de Shaochung.
‘Tadinho...
Hirokazu no fundo desempenha um papel semelhante ao de Joe em Adventure. Não pertence à primeira linha de combate, atua mais na retaguarda, como apoio, como cuidador – uma contribuição mais discreta para a causa, mas não menos importante. É interessante reparar que Joe demorou quase toda a temporada original de Adventure a conformar-se com esse papel, mas Hirokazu assume-o praticamente desde que descobriu que os Digimon eram verdadeiros.
Na minha opinião, merecia mais crédito.
Kenta cumpre um papel semelhante, se bem que contribua um bocadinho menos. É o último a arranjar um Digimon – Shaochung, que vem para o Mundo Digital depois dele, recebe o seu primeiro; Juri recebe, perde o seu e é substituída pela Juri-Type antes de MarinAngemon se juntar oficialmente à equipa. A sagração, aliás, dá-se mesmo à última hora, literalmente durante a viagem de regresso ao Mundo Real.
O MarinAngemon tinha aparecido aquando da Digievolução Brilhante catalisada pelo Culumon e brincara um bocadinho com Kenta. Mais tarde, já na Arca de regresso, o pequenote surge literalmente no bolso do miúdo, juntamente com o seu recém-criado D-arco.
À primeira vista, ninguém suspeitaria que aquela coisinha adorável é de nível Extremo. Mal passaria por Infantil, quanto mais Extremo! Em teoria, um Digimon que se consegue manter no nível Extremo em repouso daria a Kenta uma enorme vantagem em relação aos colegas – o safadinho nem sequer precisava de se fundir com o seu Digimon! Na prática, o MarinAngemon não gosta de lutar, prefere recorrer a ataques não-violentos – e Kenta não parece ver problemas nisso.
Pergunto-me se o objetivo de atribuir este Digimon a um dos miúdos era dar outra perspetiva a um dos principais conflitos em Tamers: o MarinAngemon como exemplo de um Digimon sem instintos violentos. É possível que fosse essa a ideia inicial mas que não tenha havido tempo para executá-la. É pena.
Em todo o caso, MarinAngemon tem direito ao seu momento de glória com a intervenção que salva Takato das garras da Juri Type. Mais uma vez, uma ajuda muito bem-vinda, que poderá ter evitado que Takato se juntasse a Juri como refém do D-Reaper. Nos últimos episódios também foi capaz de criar uma bolha de proteção no interior do D-Reaper, permitindo que Juri fosse finalmente resgatada.
Em suma, não sendo as minhas personagens preferidas, longe disso, gosto bastante de Hirokazu e Kenta. Mais do que a maior das pessoas, calculo.
Falemos então sobre Ryo, uma personagem que, segundo consta, chegou a Tamers ainda antes de Konaka. Antes de aparecer neste universo, Ryo era o protagonista dos videojogos WonderSwann, que só foram lançados no Japão. Estes decorrem no universo de Adventure (pelo menos os primeiros, penso eu). No entanto, visto estarem a ter um tremendo sucesso em terras nipónicas, os produtores decidiram que Ryo teria de aparecer em Tamers – mesmo que tal criasse uma série de inconsistências, sobretudo para quem não estivesse familiarizado com os jogos.
Podem ler aqui um resumo da história dos jogos. Como poderão ler, estes cruzam os universos de Adventure e de Tamers e não se encaixa muito bem na narrativa da série de anime: nomeadamente o facto de Ryo, aparentemente, ter nascido no universo de Adventure mas ter um pai no universo de Tamers. Para evitar ficar com o cérebro em nós, prefiro esquecer que os jogos existem e considerar apenas o que decorre nesta série.
Assim, Ryo era o antigo campeão do jogo de cartas, o único a derrotar Ruki (embora ninguém tenha tido a delicadeza de nos informar antes, ou de pelo menos deixar pistas). Um ano antes dos eventos de Tamers, tornara-se Treinador do Cyberdramon e emigrara para o Mundo Digital.
Conforme referi antes, Ryo e Cyberdramon oferecem um exemplo de Treinador-e-Digimon em que o primeiro está mais próximo da definição de domador que qualquer outra personagem. Tirando isso… eu sinceramente dispensava-o.
A história trata-o como um Gary Stu (a versão masculina de uma Mary Sue), o que não surpreende tendo em conta os motivos pelos quais ele aparece em Tamers. A história pinta-o como o Lendário Digitreinador, o melhor Treinador de todos os tempos. No entanto, tirando o seu companheiro Digimon particularmente violento e a sua maior experiência com o Mundo Digital, Ryo é um daqueles casos em que é o melhor porque tem acesso a cartas raras, que nenhum dos outros tem. Além de que consegue desbloquear o nível Extremo, com fusão com o seu Digimon e tudo, mas não o vemos e não sabemos quando ocorreu ao certo, nem como nem porquê.
Depois temos a parte de ser um potencial interesse amoroso para Ruki… o que me irrita um bocadinho. Não porque ache que não são compatíveis, porque até acho – tirando os quatro anos de diferença nas idades (eles que esperem até Ruki ter dezoito anos antes de as coisas se tornarem demasiado sérias). Mais porque não havia necessidade. Tamers já tem Juri com um papel proeminente como interesse amoroso de Takato. A outra protagonista feminina também precisava de um potencial apaixonado?
Por fim, o final de Tamers introduz uma complicação que fica por resolver: o Cyberdramon fica sem Ryo. É possível que, nesta altura, esteja menos violento, mas quanto tempo aguentará antes de reverter para os hábitos antigos? O que acontecerá quando Cyberdramon começar de novo à procura de adversários, sem Ryo para o refrear, num Mundo Digimon em cacos após a destruição causada pelo D-Reaper?
Ryo acaba por ser, infelizmente, o elo mais fraco do elenco de Tamers. Podia ter sido um bocadinho melhor escrito ou então excluído por completo. Enfim, nada que estrague demasiado Tamers.
Falta, então, falar sobre Shaochung, a irmãzinha de Jian (bem, tecnicamente ainda sobram Ai e Makoto, mas eles ficam para o próximo texto). Quando escrevemos sobre o jovem, referimos que, durante muito tempo, a menina trata Terriermon como um peluche, sem suspeitar que é um Digimon verdadeiro.
Se me permitem o aparte, uma dúvida: os Digimon em Tamers têm sinais vitais visíveis? Estou a pensar se Shaochung não deveria ter reparado que o seu peluche tinha batimento cardíaco, que ele respirava. Talvez os Digimon não apresentem esses sinais – ou talvez Shaochung seja demasiado nova para reconhecê-los.
Enfim, passemos à frente.
Nem sempre é divertido para Terriermon ser o brinquedo de Shaochung – suponho que não o seja para qualquer brinquedo de criança daquela idade (vide Toy Story 3) – mas este acaba por se afeiçoar à irmãzinha do seu Treinador. Acho mesmo que Terriermon gosta tanto de Shaochung como do irmão dela – da mesma forma, mesmo depois de a menina arranjar um companheiro Digimon para si, Terriermon não fica para trás no seu coração.
Quando o elenco se prepara para a viagem ao Mundo Digital, ele e Jian contam a verdade a Shaochung – que é suficientemente nova para aceitar que o seu boneco preferido sempre esteve vivo.
Como referimos antes, aliás, são as saudades de Terriermon que fazem com que os Digignomos tragam Shaochung para o Mundo Digital. Devo dizer que achei as cenas de Shaochung sozinha, no Mundo Digimon, muito stressantes: uma menina de sete anos, sozinha, desprotegida, num mundo recheado de criaturas com instintos violentos, algumas delas com instruções claras para matar humanos.
Foi uma sorte Shaochung ter encontrado Antylamon, um membro dos Deva, e este ter engraçado com ela o suficiente para trair o seu grupo e protegê-la do Makuramon. É assim que adota Shaochung como sua Treinadora. Como castigo por se ter aliado aos humanos, Antylamon regride ao seu nível Infantil, Lopmon, que é essencialmente o Terriermon versão Shiny (coincidência? Ninguém acredita).
Como vimos antes, o irmão de início opõe-se a que Shaochung se torne Treinadora e adote Lopmon (e de facto, o Digimon demora algum tempo a perder os instintos de Deva). O que só torna as coisas ainda mais difíceis para a menina que, ao contrário de Takeru e Hikari em Adventure, reage às coisas da maneira normal para a idade dela.
Chorando que nem uma desalmada.
E sinceramente? A primeira experiência de Shaochung no Mundo Digital, logo depois de receber Lopmon, é o combate com Beelzebumon. Até eu choraria que nem uma desalmada naquelas circunstâncias!
Depois de derrotado Beelzebumon, a jogada seguinte é invadir o castelo de Zhuqiamon, onde os Treinadores pensam que o Culumon está aprisionado. Como Lopmon conhece o castelo, já que servira como guarda do mesmo enquanto Deva, o Digimon é presença obrigatória no grupo de invasão. Quando Jian ordena à irmã que fique para trás, ela chora – outra vez.
Ora, é certo que há muito de birra de criança nos protestos de Shaochung, na sua determinação em ir com o irmão e com Lopmon, mas acho que ninguém quereria ficar para trás enquanto o seu companheiro Digimon vai para uma situação perigosa. Sobretudo tão pouco tempo depois da perda de Leomon.
Da mesma forma, Jian exagera na rispidez, mas lá está, não está errado em considerar que a situação é demasiado perigosa para a irmã.
A discussão acaba por não fazer grande diferença, pois Shaochung é transportada para o castelo assim que percebe que Lopmon corre perigo. O facto de a menina ser capaz de usar o seu D-arco para ver através dos olhos do seu Digimon é altamente conveniente. A presença de Shaochung no terreno de batalha acaba por servir de motivação extra para Jian e, sobretudo, Terriermon desbloquearem o MegaloGrowmon.
Shaochung e Lopmon fazem um par engraçado. Por um lado, temos uma típica menina de seis anos, alegre, relativamente despreocupada. Do outro, temos um Digimon com a maturidade bem superior à de uma criança, falando com o tom formal de quem passou muito tempo – talvez a vida toda – a servir figuras divinas. Na minha opinião, o par funciona e é interessante.
A inocência de Shaochung permite-lhe sobreviver à guerra com o D-Reaper sem grandes traumas. Isso e o facto de não estar no terreno tantas vezes como os outros Treinadores, devido à sua idade. Uma vez mais, a menina vale-se da visão de Antylamon via D-arco para contribuir para a luta – é assim que descobre, por exemplo, que Beelzebumon e Culumon se tinham infiltrado no interior o D-Reaper.
Mesmo sem a sua Treinadora por perto, Antylamon ajuda os outros Digimon nos combates contra o D-Reaper. Ryo a certa altura oferece uma carta a Shaochung, em recompensa pela sua ajuda, e quando a menina a usa, a sua sequência de Carta Escolhida é pura e simplesmente adorável!
É uma pena ela e Antylamon terem ficado de fora da batalha final contra o D-Reaper. De qualquer forma, Shaochung merece crédito pois a sua atitude alegre e inocente dá alguma leveza a uma temporada tão sombria como esta.
Ainda assim, o maior contribuinte nesse capítulo não é ela, é Culumon. O Digimon que serve de mascote a Tamers e que me roubou o coração desde o primeiro minuto. Durante muitos anos, o Togepi foi a criatura mais fofa que alguma vez vi em animação. Mas a verdade é que não tem olhos grandes, orelhas que se encolhem e esticam não termina a suas frases com “culu” (ou “calu”, na dobragem portuguesa).
Durante o episódio em que Takato anda à procura de um Treinador para ele, eu só dizia:
– Escolhe-me a mim! Escolhe-me a mim! Eu tomo bem conta do Culumon! Jogo futebol com ele e tudo!
Mas a verdade é que o Culumon nunca adota ninguém como Treinador. Acaba por ser o companheiro Digimon de toda a gente e de ninguém em particular.
Isto porque Culumon não é um Digimon como os outros – há quem não o considere um Digimon sequer. Nunca o vemos a lutar, mas está sempre lá quando ocorrem digievoluções (bem, quase sempre). Takato é o primeiro a somar dois e dois – mas quando o faz, já o Makuramon lhe tinha deitado as mãos e levado-o para o Mundo Digital.
Culumon é o catalisador da digievolução no universo de Tamers. É a luz da digievolução feita carne pelo Qinglongmon, uma das Bestas Sagradas. Este permite que Culumon fuja para o Mundo Real, para que escape às garras do D-Reaper, evitando que este o use para acelerar o seu crescimento… e no entanto Zhuqiaomon, outra das Bestas Sagradas, envia agentes ao Mundo Real para raptar Culumon. A ideia é que o pequenote use os seus poderes para ajudar vários Digimon a digievoluírem, para poderem enfrentar o D-Reaper.
Confusos? Eu também. Havemos de regressar a esse assunto noutro texto desta análise.
Tal como Shaochung, mesmo perante todos os eventos de Tamers, mesmo depois de raptado, Culumon nunca perde os seus modos inocentes e amigáveis. E o pequenote é irresistível para qualquer um – é um dos que ajuda Ruki a abrir o seu coração, torna-se BFF de Guilmon, Terriermon, aguenta o bullying de Impmon e até o diabrete acaba por se tornar amigo dele. Sobretudo quando emparceiram no resgate a Juri.
Aliás, o maior contributo de Culumon para a luta contra o D-Reaper foi ter ficado ao lado de Juri e, como vimos no texto anterior, ter-lhe salvo a vida.
Eu na verdade fico surpreendida por tão pouca gente falar do Culumon quando se fala sobre Tamers. O pequenote é subvalorizado, na minha opinião.
No próximo texto, por outro lado, vamos falar sobre uma personagem que definitivamente não é subvalorizada. Pelo contrário, é capaz de ser a melhor personagem de Tamers (se não for de todo Digimon enquanto franquia). Fiquem por aí...