Alerta: Este texto contém spoilers para as duas primeiras temporadas de Ted Lasso. Leia por sua conta e risco.
Esta é a parte do meu balanço musical em que escrevo sobre uma única canção, isolada de tudo o resto, marcante por um motivo muito específico. Trata-se de She’s A Rainbow, dos Rolling Stones.
Esta é uma banda que dispensa apresentações. Não tenho nada a dizer sobre eles que não tenha sido dito antes. Dizem que She’s a Rainbow é um exemplo do rock psicadélico dos anos 70 – aquela introdução no piano é icónica e define do mood da música toda. Acho-a muito primaveril. É possível que seja por a ter ouvido muito na primavera do ano passado – mais sobre isso adiante. Mas também a primavera é a estação mais colorida, o que condiz com a letra – e mesmo com o movimento da altura, o “flower power” e tal.
Ora, fiquei a conhecer She’s a Rainbow na série Ted Lasso – a minha série preferida neste momento Uma das melhores coisas de 2022 para mim foi ter tido a oportunidade de ver filmes e séries novas. Várias estavam na minha lista há algum tempo, mas ia adiando-as porque tinha de rever Fronteira para estes textos – por exemplo, Ducktales 2017 e o filme Spiderman: Into the Spiderverse. Outras foram espontâneas, foram capricho – por exemplo, Spy x Family. Já nem me lembro o motivo por que comecei a ver, mas estou a adorar.
É algo que pretendo continuar a fazer em 2023… quando conseguir publicar o balanço de 2022, terminar Scarlet e, no geral, meter a ordem na minha vida.
Regressando a Ted Lasso, esta é uma série que eu já sabia que ia gostar mesmo antes de começar a ver. A internet já despejou todos os elogios a Ted Lasso, não vou estar repeti-los – mas vou abordar um ângulo que, tanto quanto sei, ainda ninguém abordou.
Praticamente toda a gente que fala sobre Ted Lasso diz algo do género:
– Ah e tal, é a história de um treinador de futebol americano que vem treinar uma equipa da Premier League, mas não se preocupem! A série quase não é sobre futebol!
Não vou dizer o contrário, mas a verdade é que uma das coisas que eu gosto em Ted Lasso é da parte do futebol, mesmo que seja relativamente pouco.
Alguns de vocês desse lado já saberão que eu adoro futebol – tenho um segundo blogue dedicado ao meu clube. Devem haver por aí exemplos de ficção desportiva que explorem melhor esse aspeto, mas uma das minhas partes preferidas do futebol foi sempre o lado humano. As interações entre os jogadores (quando são amigáveis, claro), as celebrações dos golos e das vitórias, vídeos e fotografias de bastidores. Momentos como os jogadores desenhando caricaturas uns dos outros, Cristiano Ronaldo consolando Diogo Costa depois da sua quase-asneira, provocações a Gonçalo Ramos após o seu hat-trick perante a Suíça – e isto são apenas os exemplos mais recentes.
O futebol é um dos poucos meios onde homens podem abraçar-se uns aos outros, serem afetuosos uns com os outros, sem que lhes seja questionada a sua masculinidade. Isso é uma das melhores coisas deste desporto.
Ted Lasso também tem exemplos disso, mesmo que a maior parte dos jogadores desempenhe um papel secundário na narrativa. Por exemplo, a fogueira no episódio “Two Aces”, a equipa toda fazendo claque a Sam Obisanya durante o seu namoro online, o Natal na casa dos Higgins.
Também gosto da relação entre a equipa técnica e os jogadores. Ted obviamente fazendo de pai de todos, mas também Roy Kent, a partir de meio da temporada: quando ajudou o capitão Isaac a ultrapassar o seu bloqueio mental e, sobretudo, o abraço a Jamie no final de “Man City”.
Nate, claro, é a exceção.
Aliás, Ted Lasso tem momentos que podiam ter sido escritos por mim quando tinha quinze anos: a coreografia dos jogadores para Bye Bye Bye, o que quer que eles andavam a fazer durante o aquecimento em “Rainbow”. É uma delícia.
Já que falo nisso, confesso que, quando era mais nova, durante uns anos imaginei-me desempenhando um papel semelhante ao de Keeley para a Seleção Portuguesa, o meu clube. Não necessariamente como WAG/mulher-ou-namorada (bem… só mesmo no início), mas como alguém que, não sendo jogadora ou técnica, faz parte da equipa, é colega e amiga de toda a gente.
Ted Lasso celebra, assim, o lado humano do futebol, o romance do futebol. E um dos melhores exemplos disso é precisamente a cena que usa She’s A Rainbow como banda sonora.
Todo o episódio – intitulado Rainbow – é uma homenagem a comédias românticas. Pelo meio, Higgins fala do momento em que conheceu a, agora, esposa – She’s A Rainbow é a música deles – e vemos casais amorosos nas bancadas do Nelson Road. O enredo principal foca-se em Ted tentando conquistar Roy Kent (nesta altura a trabalhar como comentador desportivo) para a equipa técnica do Richmond. É também neste episódio que Roy ajuda Isaac – por sinal, com uma variante a um dos meus lemas de vida, “Lembra-te porque é que começaste”.
Roy, naturalmente, começa por dizer que não. No entanto, acaba por perceber que sente saudades, lá está, do lado humano do futebol, da proximidade com os jogadores. Descobre que é essa a sua vocação.
A cena com She’s a Rainbow é, então, Roy deixando o estúdio televisivo e dirigindo-se a Nelson Road para se reunir à equipa. Lá está, como um protagonista de uma comédia romântica indo atrás do seu amor. Afeiçoei-me a She’s a Rainbow precisamente ao ouvi-la enquanto ia a pé para o trabalho, em passo acelerado, na Primavera. Sentia-me como Roy.
E depois os outros pormenores. Higgins encontrando-se com a esposa, vestida de azul (“Have you seen her dressed in blue?”). O momento em que Roy entra no relvado – todos os amantes de futebol sabem como é, quando vamos à bola e vemos o campo pela primeira vez. Os adeptos cantando “He’s here, he’s there, he’s every-fuckin-where” ao verem-no – outra coisa que adoro em futebol: os cânticos (quando são favoráveis, claro). As notas dissonantes de She’s a Rainbow quando a câmara se fora na reação de Nate à chegada de Roy – indício trágico para o que acontecerá mais tarde. Por fim, Roy citando Jerry Maguire como forma de aceitar o convite de Ted.
É uma das cenas preferidas de toda a série e o motivo pelo qual She’s a Rainbow é uma das minhas músicas de 2022.
Uma das coisas pelas quais anseio em 2023 é a terceira temporada de Ted Lasso que, por sinal, acabou de ser anunciada para a primavera – mais ou menos um ano depois de ter visto as primeiras duas temporadas. A vantagem de ter chegado tarde ao fenómeno foi não precisar de esperar tanto – o último episódio da segunda temporada saiu há quase um ano e meio. Consta que a demora se deveu a perfeccionismo da parte de Jason Sudeikis e dos outros produtores, o que poderá ser mau sinal – pode ter ficado pior a emenda que o soneto.
Houveram alguns aspetos de que não gostei na reta final da segunda temporada. Alguns foram intencionais, como a descida de Nate à vilania. Outros não sei se eram. A direção que estão a tomar com o relacionamento de Keeley e Roy, ninguém ter reconhecido o assédio de Nate a Keeley.
Mesmo a relação entre Sam e Rebecca deixa-me ambivalente. Por um lado, eles ficam bem juntos. Depois de tudo por que passou, Rebecca merece alguém que lhe mostre uma dose saudável de devoção. Por outro… ela tem o dobro da idade dele, é dona do clube onde ele joga… No mínimo questionável.
Em todo o caso, está tudo em aberto. Como se diz em futebol, ainda há muito campeonato para se jogar. Vou dar o benefício da dúvida. A imagem que eles divulgaram na semana passada parece dizer muito do que acontecerá na terceira temporada. Sinto que há ali uma referência a Star Wars mas, como nunca vi Star Wars… terá de ser outra pessoa a descortinar.
Obrigada pela vossa visita, como sempre. Ficam a faltar dois textos neste balanço musical do ano. Estes deverão ser mais longos. A ver se consigo publicá-los antes do fim de fevereiro. Continuem por aí.
Mais do que nas temporadas anteriores, o grupo de Fronteira é o que melhor se encaixa no tropo da “Five Man Band” – grupo de cinco. Takuya é o líder, Kouji é o “lancer” – o típico segundo na liderança, muitas vezes a antítese do líder. Izumi é a rapariga, geralmente o coração do grupo. Kouichi é o sexto ranger.
Só Tomoki e Junpei é que não se encaixam muito bem na fórmula. Superficialmente, poder-se-á dizer que Junpei é o tanque/músculo, mas apenas porque tem a aparência de um miúdo grande. Na prática, não desempenha um papel particularmente defensivo ou mais físico que os demais. Por outro lado, existem algumas variantes a este tropo que incluem “a criança” – Tomoki encaixa-se perfeitamente neste papel.
A principal categoria que fica por preencher é “o cérebro”/o inteligente. Aliás, este é o primeiro elenco de heróis em Digimon que não possui um “cérebro”: uma personagem com mais inclinação tecnológica e/ou que se destaque pelos seus conhecimentos ou pela sua capacidade de resolver problemas. O mais parecido que temos com isso é o Bokomon.
O que me leva às mascotes de Fronteira. Tenho de dizer, depois do Culumon, que para além de adorável é um herói subvalorizado de Tamers, Bokomon e Neemon foram uma desilusão. O segundo só está lá para tentar ser engraçado (sublinhe-se “tentar”) e para ser maltratado pelo primeiro. Bokomon sempre tem um pouco mais que fazer, não que seja uma grande melhoria: está lá sobretudo para debitar informação. Também passa uma data de episódios grávido com o DigiOvo do Seraphimon. Uma vez mais, suponho que era para ser engraçado – não é. Mesmo que tivesse, acho que ainda faltará uns anos à audiência-alvo para compreender as piadas.
Ao menos é fofinho vê-lo como papá-mamã do Patamon, depois deste nascer.
Por outro lado, admito que, depois do episódio 13 de Ghost Game, custou um bocadinho ver Bokomon quando retomei a maratona de Fronteira.
Mas regressemos aos miúdos humanos. Tenho de dizer que, como elenco, este é o mais fraquinho até ao momento. Não que não goste dos miúdos, mas estes são menos interessantes e, sobretudo, menos desenvolvidos que noutros universos.
Começando com os seus passados – um de vários aspetos em que Fronteira rompe com outras temporadas. Com uma única exceção – ou melhor, duas – os miúdos tiveram todos vidas estáveis e normais, sem grande drama. Tendo em conta que a ficção em geral adora infâncias infelizes e pais imperfeitos – e as outras temporadas de Digimon são infames por isso – isto é uma desvantagem.
É claro que, na vida real, nada disto tem piada. Eu, aliás, gosto de pensar que fãs de Digimon se tornam melhores pais – o anime está cheio de personagens afetadas negativamente pelas suas famílias.
Não sei se isso acontece na prática, no entanto. Não há por aí ninguém disposto a fazer um estudo observacional?
Dito isto, admito que, a partir de certa altura, Digimon tenha exagerado. Não convém esquecer que a audiência-alvo são crianças. Uma coisa é termos mais divorciados e rebeldias (pré)adolescentes. Outra coisa é termos mães ou irmãos mortos. Faz sentido que, numa temporada que se queria mais leve do que Tamers, os digiguionistas tenham decidido diminuir os dramas familiares (com uma notável exceção).
Além disso, como diz Adam Pulver, outro crítico de Digimon, não existirão muitos miúdos identificando-se com uma personagem procurando seguir as pisadas de um irmão que morreu, mas existirão uns quantos identificando-se com personagens com dificuldades em fazer amigos.
Esse, aliás, é o denominador comum a quase todos os Escolhidos. Temos uma miúda filha de emigrantes com dificuldade em integrar-se. Temos um miúdo um bocadinho mimado demais e vítima de bullying. Um rapaz que prefere agir sozinho. Temos… o Junpei. Kouichi é mais difícil de avaliar, mas ele parece ser tímido. Só Takuya é que não revela tendências anti-sociais – pelo contrário, como vimos acima, encaixa-se no estereótipo do líder extrovertido e impaciente.
Ainda assim, esse podia ter sido um dos temas desta temporada: um grupo de misfits, de anti-sociais, que têm de aprender a lidar uns com os outros para poderem sobreviver. Infelizmente não exploram muito esse aspeto, tirando no arco do Sephirotmon.
Chegou a altura de falarmos sobre o óbvio: é a primeira (e única vez) que o elenco humano não tem companheiros Digimon. São as próprias Crianças Escolhidas a digievoluir e a lutar.
Ora, apesar de isto poder ser considerado um sacrilégio, não é necessariamente uma coisa má por si só. Pode-se argumentar que os miúdos de Fronteira fazem mais que os heróis de outras temporadas – meros treinadores de bancada. Sobretudo os do universo de Adventure, cuja única intervenção nos combates é desbloquear as digievoluções – os Digimon é que fazem o trabalho sujo.
Universos como Tamers e Ghost Game tentam contrariar esta limitação pondo os miúdos a orientar os ataques dos seus Digimon, de uma forma ou de outra. E depois temos o Reboot de Adventure, em que os miúdos estão quase sempre montados nos seus Digimon durante os combates. O que é fixe… até ao momento em que os miúdos, inevitavelmente, levam com ataques em cima mas raramente sofrem danos. Assim não vale!
Por seu lado, Takuya e os outros não têm ninguém que os proteja. O que não lhes serve de impedimento. Por muitas falhas que possamos apontar ao grupo de Fronteira, há que dar-lhes crédito: eles dão o corpo ao manifesto. Logo desde o primeiro episódio, por um mundo que, dez minutos antes, não sabiam que existia. E como vimos antes, eles perdem muitos combates – fisicamente. Usando palavras mais brejeiras: eles levam porrada. Repetidamente. E mesmo assim levantam-se de novo, continuam a lutar.
Além disso, não sei se alguém alimentava alguma fantasia de se tornar e lutar como um Digimon mas, se existia, pode vê-lo em Fronteira.
Dito isto, tenho algumas críticas a fazer ao conceito. Nomeadamente à natureza das digievoluções.
Até aqui, noutros universos, as digievoluções estavam associadas sobretudo a fatores internos, psicológicos e/ou afetivos. Em Adventure, era crescimento pessoal, ligado às virtudes dos Cartões. Em 02, eram as ligações entre as Crianças Escolhidas. Em Tamers, eram as ligações entre humano e Digimon.
Em Fronteira, no entanto, os fatores são externos. Os miúdos herdam os espíritos dos Dez Guerreiros Lendários, que representam um elemento ou, possivelmente, uma zona do Mundo Digital. Os miúdos só precisam de encontrar os respetivos espíritos, Humanos e Animais. Mais tarde, os espíritos Híbridos são obtidos via DigiOvo do Seraphimon Ex Machina; o KaiserGreymon e o MagnaGarurumon são obtidos via sacrifício da Ophanimon; o Susanoomon é obtido via sacrifício de Kouichi.
É como se os miúdos estivessem apenas a vestir um fato com super-poderes (como o Tony Stark/Homem de Ferro(?) ou Devi Morris e a sua Lady Gray) ou, quanto muito, a ser possuídos por uma entidade externa. Quase naada é exigido aos miúdos em termos de introspeção. As únicas exceções são as digievoluções de Kouichi e, se quisermos ser generosos, a última aparição de Susanoomon. Isto torna-se um problema ainda mais grave para mim porque digievoluções catalisadas por desenvolvimento das personagens foi sempre uma das minhas partes preferidas de Digimon. E como os miúdos não precisam de crescer como pessoas para digievoluir, o desenvolvimento deles em Fronteira é reduzido, sobretudo quando comparado com as temporadas anteriores.
Além disso, praticamente todas as vantagens de miúdos digievoluindo eles mesmos são anuladas na última grande parte da temporada – quando Izumi, Junpei, Tomoki e Kouichi têm de abdicar dos seus espíritos para que Takuya e Kouji desbloqueiem o nível Extremo. Kouichi, ainda por cima, tinha acabado de conseguir as suas digievoluções não corrompidas – quase não teve oportunidade de usá-las.
É um tropo recorrente em Digimon os níveis Extremos estarem reservados para os dois rapazes “protagonistas” do grupo. Nunca gostei muito disso. Ainda assim, as outras personagens continuavam a contribuir para os combates, por pouco que fosse, mesmo com digievoluções de nível inferior. Mas impedi-los completamente de digievoluir? Demasiado mau.
Ainda se tolerava se estivéssemos a falar apenas dos combates importantes com o Cherubimon e o Lucemon. Mas a situação arrasta-se por todo o arco dos Cavaleiros Reais. É possível que os miúdos tivessem conseguido derrotá-los mais cedo se Izumi e os outros tivessem podido lutar também. Uma pessoa pergunta-se porque é que os outros quatro sequer permanecem no Mundo Digital.
Dito isto tudo, o grupo de Fronteira tem uma qualidade redentora – e eu só me apercebi dela ao trabalhar neste preciso texto. Durante muito tempo desvalorizei estes miúdos, pelas razões listadas acima e também pelas motivações deles ao responderem ao apelo da Ophanimon. Com as devidas exceções, estas vão de “não tinha mais nada que fazer” a “eh, pode ser giro”. Nem sequer tínhamos lugares-comuns como curiosidade, insatisfação com a vida atual, desejo de aventura. Motivações como estas não chegavam, nem de longe nem de perto, para sustentar uma temporada inteira levando porrada.
No entanto, olhando mais de perto… estes podem ser os motivos para eles terem embarcado nos Trailmon, mas não são os motivos para se terem envolvido nas lutas e encontrado os espíritos digitais. Takuya desbloqueia o Agnimon enquanto tenta proteger um Tomoki em descontrolo emocional – um miúdo que acabara de conhecer. Kouji desbloqueia o Wolfmon enquanto tenta proteger Tomoki e Junpei – Kouji, que prefere agir sozinho e, uma vez mais, mal conhecia aqueles dois bacanos. Tomoki desbloqueia o Chackmon para ajudar Agnimon num combate. Por fim, vários episódios mais tarde, Takuya regressa brevemente ao Mundo dos Humanos, mas escolhe voltar para o Mundo Digital precisamente por causa dos amigos.
Eu podia continuar. Estes miúdos podem deixar muito a desejar em termos de passado, desenvolvimento e mesmo personalidade em geral, mas merecem crédito por isto: desde muito cedo começam a proteger-se uns aos outros e, sobretudo, sai-lhes tudo do pêlo. Pelo menos em termos da luta em si.
E ficamos por aqui hoje. Na próxima parte, começamos a falar sobre cada miúdo individualmente. Desta vez, não garanto que cada miúdo tenha um texto só para si. Nem todos têm pano para tanta manga – e aqueles que têm não será necessariamente por bons motivos.
Em todo o caso, obrigada pela vossa visita. Continuem por aí.
Um dos aspetos mais interessantes de Fronteira diz respeito à História do Mundo Digital: mais desenvolvida e rica que qualquer outra até agora. Com a exceção dos Cavaleiros Reais, todos os vilões em Fronteira foram figuras importantes em termos políticos no passado do Mundo Digital. Power Players, como dizem os anglo-saxónicos (não existe uma boa tradução para este termo). Mesmo os Power Players que consideramos bons da fita tomam algumas decisões questionáveis.
Não é possível falar dos vilões de Fronteira sem falarmos do passado do Mundo Digital e não é possível falarmos do passado do Mundo Digital sem falarmos dos vilões.
Assim, no início, existiam duas facções em guerra no Mundo Digital. De um lado tínhamos Digimon de tipo Humano, com características mais humanóides. Do outro, tínhamos Digimon de tipo Animal, com características mais animalescas e/ou monstruosas. Não falo apenas de características físicas – é dado a entender que os Digimon de tipo Humano são mais “civilizados”. De tal maneira que, quando os miúdos desbloqueiam as formas Animais, quase todos têm dificuldades em controlar os instintos mais violentos destas formas.
A tradução literal do termo devia ser Digimon tipo Besta. No entanto, como esta palavra é usada como um insulto em português, não admira que tenham preferido dizer Animal.
Consta que este era um conceito planeado para 02, mais especificamente para as Armodigievoluções. Por exemplo, o Flamedramon seria a forma Humana do Veemon, o Raidramon seria a forma Animal e o Sagittarimon seria a forma Híbrida. A ideia, no entanto, foi rejeitada – tendo sido usada dois anos mais tarde, em Fronteira.
Durante os eventos de Frontier, no entanto, não vemos nenhum vestígio desta rivalidade. A única exeção é o filme Revival of the Ancient Digimon (Ressurreição do Digimon Antigo?). É possível que as tensões se tenham desvanecido com o tempo – só as vemos no filme porque este se passa numa ilha isolada do resto do Mundo Digital.
Não é realista, infelizmente. Como todos sabemos, na vida real este tipo de preconceitos têm a mania de permanecer mais tempo do que deviam.
Por um lado, tenho pena que o tema não tenha sido explorado mais a fundo. Por outro, admito que, a menos que fosse escrito com muito cuidado, poderíamos entrar em territórios… “problemáticos”, como se diz hoje. É o que por vezes acontece com outros casos de racismo fantástico, quando se começam a tecer comparações com a vida real.
No meio desta guerra civil, surgiu Lucemon, que pôs termo ao conflito e assumiu o governo do Mundo Digital. Este no entanto acabou por descambar para a tirania. Nisto surgiram os Dez Guerreiros Lendários, quais Capitães de Abril, que derrubaram a ditadora e a prenderam na zona da Escuridão.
A política dos Guerreiros Lendários é fascinante. A narrativa dos Guerreiros Lendários não o refere explicitamente, mas assumo que cada um deles tem uma forma Humana e uma forma Animal (e, no caso de Agnimon e Wolfmon, uma forma Híbrida) precisamente para agradarem a ambas as facções.
Da mesma forma, calculo que cada Guerreiro representa, não apenas um elemento, mas também uma determinada zona do Mundo Digital. O Agnimon representa a zona do Fogo, a Ranamon representa a zona da Água e por aí fora. Mais ou menos como nós elegemos deputados representantes de cada distrito.
Após a queda de Lucemon, três grandes anjos assumiram o poder: Seraphimon, Ophanimon e Cherubimon. Seraphimon fica encarregue da lei e ordem, Ophanimon da vida e do amor e Cherubimon do conhecimento e da verdade. Pelo meio, Cherubimon ficou com os Espíritos da Terra, da Água, da Madeira, do Metal e da Escuridão – e mais tarde ressuscitá-los-ia como vilões. Mas não nos adiantemos.
Nesta santíssima trindade (quase literal, pois são três anjos) governativa, temos dois Digimon de tipo Humano e apenas um de tipo Animal. Mesmo nas melhores circunstâncias, dificilmente resultaria – e custa a acreditar que ninguém se tenha apercebido disso, dentro do universo.
Além disso, tanto as linhas do Ophanimon como do Seraphimon têm formas Extremas de tipo Animal: a Holydramon e o Goddramon. Elas não podiam ter sido usadas para equilibrar um pouco o sistema?
Cherubimon, como Digimon de tipo Animal, não se revê nos valores Humanos defendidos pelos outros dois. Talvez Cherubimon devesse ter tido uma mente mais aberta aos pontos de vista dos outros, mas estes dois também não lidam com o problema da melhor maneira. Ophanimon diz que ela e Seraphimon conversavam a sós para tentarem compreender a perspetiva de Cherubimon. Não acredito nela. Se queriam compreendê-lo, não deviam, sei lá, falar com Cherubimon diretamente, ouvir as opiniões dele?
Não surpreende que, a partir de certa altura, Cherubimon tenha começado a desconfiar dos companheiros. Eu simpatizei com a solidão e isolamento dele (Alexa, toca Conspiracy, dos Paramore) – a posição ideal para ser corrompido por Lucemon. Nada nos garante que Cherubimon seja cem por cento inocente nesta história: acredito que uma parte de si quisesse vingança. Aquando dos eventos de Frontier, já estava perdido. O seu único aspeto redentor é o facto de ter evitado ao máximo matar tanto Seraphimon como Ophanimon.
Ao mesmo tempo, uma vez mais, a resposta de Ophanimon ao problema – enviar um apelo a crianças no Mundo dos Humanos, que ainda não foi influenciado por Cherubimon – é questionável. Seraphimon não concorda, como é revelado no episódio 13. Para começar, entregar o destino de um mundo inteiro a crianças é daquelas coisas que nunca aconteceriam na vida real – mas, lá está, isto é uma história para crianças, elas têm de ser as protagonistas.
Ophanimon diz que só crianças com “coração puro” é que responderiam ao apelo – mas, como descobrimos mais à frente na temporada, os antigos bullies de Tomoki também vieram para o Mundo Digital. Mesmo as motivações iniciais dos nossos protagonistas não são propriamente nobres, como veremos na próxima parte da análise.
Além disso, independentemente das intenções deles… o grupo que incluiu os bullies de Tomoki não recebeu nenhum espírito, andaram pura e simplesmente a passar pelo Mundo Digital, obrigando um Angemon a fazer de guarda-costas/ama-seca. Quem nos garante que não houveram outras crianças para além destes – crianças que, se calhar, não tiveram a proteção? Ou que ainda estavam no Mundo Digital quando os Cavaleiros Reais o destruíram por completo? Podem não ter conseguido regressar ao Mundo dos Humanos a tempo. Podem ter acontecido tragédias.
Por fim, não foi bonito Ophanimon tentando apelar ao lado bom de Cherubimon… apenas para recuperar os dispositivos e os espíritos digitais que este roubara. Foi necessário, admito, e talvez ela até estive a ser sincera quando pediu desculpa ao antigo amigo. Mas vendo-a apunhalando Cherubimon pelas costas, ainda suspeito mais que não terá sido a primeira vez que o faz. Ophanimon pode ser um anjo, mas está longe de ser uma santinha.
Recuemos um pouco na cronologia e falemos sobre os Guerreiros Lendários corrompidos pelo Cherubimon. Este até é um grupo relativamente interessante de vilões. Para começar, estes chegam a roubar os dispositivos e/ou os espíritos digitais aos protagonistas, impedindo-os de digievoluírem. É estranho que isto só se tenha tornado prática na quarta temporada de Digimon enquanto anime. Antes disto só o Apocalymon – e mesmo assim, os Escolhidos de Adventure contornaram o problema com relativa facilidade.
Falando individualmente, o Grottemon não é dos mais interessantes. O Arbormon passa a vida a debitar provérbios e lições para as criancinhas da audiência – o que, OK, é uma cena, suponho eu.
A Ranamon é essencialmente a femme fatale para Izumi, a menina boazinha. Ela até mostra alguma astúcia ao usar o seu sex appeal para convencer os seus minions a fazerem o seu trabalho sujo. No entanto, toda a gente, incluindo ela própria, só se interessa pela sua beleza – ou falta dela, quando está sob a forma de Calamaramon. Na mesma linha, Ranamon fixa-se em Izumi apenas porque acha que esta é mais bonita do que ela. Ao ponto de, a certa altura, lhe dar literalmente uma maçã envenenada.
Pontos para a subtileza.
O Mercuremon é dos mais competentes do grupo, ainda que com uma queda para o dramático. Afinal de contas, ele é a mão por detrás de um dos arcos mais psicológicos em Fronteira. Além disso, devo admitir que achei o episódio em que ele se transforma em BlackSeraphimon bastante assustador, da primeira vez que o vi. Nada como um órgão e uma igreja sinistra para causar arrepios. Por fim, mesmo depois de perder o espírito humano do metal, os miúdos são obrigados a pensar fora da caixa – e Takuya é obrigado a usar as suas capacidades de liderança – para derrotá-lo sob a forma de Sephirotmon.
Sobra o Duskmon… mas sobre ele falamos noutra ocasião.
Passando aos Cavaleiros Reais, não tenho muito a dizer sobre o Dynasmon, mas o LordKnightmon é um caso… curioso. Ele é aquilo a que os anglo-saxónicos chamam um “queer-coded villain” – um vilão com características estereotipicamente não cis/hetero. Este vídeo – e os outros, citados no fim – explica melhor o conceito, as suas origens, a forma como, a partir de certa altura, teve o efeito oposto ao desejado inicialmente, entre outros aspetos.
LordKnightmon encaixa-se no perfil. Um Digimon cor-de-rosa, que de vez em quando aparece com uma rosa na mão, basicamente o arquétipo de um homossexual. Não sei se em 2002 isso corrompeu a inocência de muitas criancinhas, mas a mim não me aqueceu nem arrefeceu. Eu na verdade nem falaria muito sobre ele se não tivesse sabido que, na dobragem americana, ele aparece como fêmea. Não lhe chamam LordKnightmon, claro, chamam-lhe Crusadermon. Infelizmente não fico surpreendida.
Para sermos justos, falar de sexos e géneros em Digimon daria azo a um texto por si só – e eu não seria a melhor pessoa para escrevê-lo. Oficialmente, os Digimon não têm sexo pois não se reproduzem de forma sexuada – o género é uma história diferente. Como a língua japonesa tem termos de género neutro, os digiguionistas não precisam de atribuir género a todos os Digimon. No entanto, na hora de traduzir para línguas como o português, em que usamos o “o” e o “a” para tudo, a coisa complica-se. E aparecem casos como a Renamon, com uma voz claramente masculina na dobragem alemã. Ou a Tailmon, que, nas dobragens portuguesas, ora é referida como “ele”, ora é referida como “ela”, tanto quanto me recordo.
Tudo isto para dizer que, por princípio, estas alterações no género não terão necessariamente intenções duvidosas. Mesmo o próprio LordKnightmon aparece como macho nas versões originais de Fronteira e, segundo o que vi na Internet, em Savers/Data Squad, mas em Cyber Sleuth/Hackers Memory aparece como fêmea. Mas falando deste LordKnightmon em específico, acho que isto foi um ato de censura da parte dos dobradores americanos. Claro que foi. Eles ainda hoje têm horror a falar de homossexualidade às crianças.
Não que nós estejamos muito melhor nesse aspeto. Vejam os papás que não deixam os filhinhos inocentes frequentar as aulas de Cidadania e Desenvolvimento.
Pode-se debater se, em termos de expressões de género e sexualidade não cis/hetero, é preferível representação vilanesca ou nenhuma representação. Não faço parte da comunidade LGBTQ+, logo, a minha opinião vale o que vale, estão à vontade para discordar. No entanto, tendo em conta que, como dizem no vídeo que referi acima, vários queer-coded villains, sobretudo dos filmes da Disney dos anos 90, são hoje personagens muito populares – quer por pessoas da comunidade LGBTQ+, quer por pessoas cis/hetero – a escolha é óbvia. Vilões ou não, as pessoas da comunidade LGBTQ+, como quaisquer outras, têm o direito a existir, a serem elas mesmas, a verem pessoas como elas no ecrã!
Havemos de regressar a este tema. Para já, à parte o que acabámos de discutir, os Cavaleiros Reais não são particularmente memoráveis – tirando o facto de estarem associados ao pior arco da temporada. No entanto, têm alguns aspetos curiosos.
Para começar, são bons lutadores e estrategas – pudera. À primeira vista são meros paus mandados da Lucemon, que lhes prometeu uma viagem até ao Mundo dos Humanos. Quando Lucemon regressa à vida, no entanto, esta dá a entender que não pretende cumprir a sua parte do acordo. A lealdade deles vacila e isso leva a que sejam derrotados por Takuya e Kouji – que, ainda por cima, estavam em crescendo. Um twist interessante.
Eu digo que Takuya e Kouji os derrotam, mas, na verdade, Lucemon mete-se à última hora para dar o golpe final e absorver os dados dos dois Cavaleiros Reais. É com esses dados que digievolui para Lucemon Falldown Mode.
Hão de reparar que tenho usado o género feminino para me referir a Lucemon. Isto deve-se ao facto de, na dobragem portuguesa, Lucemon aparecer como fêmea. Daquilo que consegui averiguar, na maior parte das dobragens isso não acontece. Geralmente é uma mulher quem lhe dá a voz quando está na forma normal, com a aparência de uma criança, mas depois de digievoluir passa a ter dobrada por um homem. E é sempre referida como “ele”. A nossa dobragem (e possivelmente a espanhola, na qual a nossa se baseia?) é a exceção, com uma mulher – Patrícia Andrade, segundoesta wiki – dobrando ambas as formas (possivelmente por falta de orçamento) e referindo-se a Lucemon como “ela”.
Sinto-me hipócrita, admito. Critico a dobragem americana por ter mudado o género a LordKnightmon, mas gostei de ver (e ouvir) Lucemon como fêmea na dobragem portuguesa. Sobretudo porque Patrícia Andrade fez um excelente trabalho com a voz de Lucemon – uma voz de bruxa, que funciona surpreendentemente bem.
Reforço que vocês estão à vontade para discordar do que digo. Mas acho que estes dois casos são diferentes. É certo que, em Cyber Sleuth, existe uma LordKnightmon fêmea mas, na dobragem japonesa, este tem uma voz masculina. Além disso, tem “Lord” no nome, que significa “senhor” e é usado como título nobre masculino. Tudo isto me dá a entender que, pelo menos em Fronteira, a intenção original era que este fosse um Digimon macho.
No que toca a Lucemon, no entanto, existe mais ambiguidade . O “Luce” em Lucemon vem muito provavelmente de Lúcifer, um anjo caído que eventualmente se tornou no Diabo. Canonicamente anjos não têm sexo – é daí que vem a expressão “discutir o sexo dos anjos” – mas pelo menos os anjos mais conhecidos parecem ser do género masculino: Miguel, Gabriel, Lúcifer… No modo normal, Lucemon parece uma criança pré-pubescente, sem características sexuais secundárias. Pode ser um menino, pode ser uma menina. Não é preto no branco. Funcionaria bem com qualquer género, mesmo género não binário.
Mas lá está, talvez eu esteja errada – tanto em relação a Lucemon como a LordKnightmon. Talvez não existam respostas cem por cento certas nem cem por cento erradas aqui. Isto é, tirando aquelas que negam direitos a pessoas com base na sua orientação sexual e expressão de género, claro. Em todo o caso, acho importante irmos continuando a falar sobre esta questão.
Tirando isto tudo de que falei, como principal vilã da temporada… Lucemon não é nada de extraordinário. Não tem grande profundidade. Não tenho muito a dizer sobre ela.
Como puderam ver ao longo deste texto, Fronteira até tem vilões interessantes. No entanto, na prática, na realidade micro de cada episódio, todos os confrontos são típicos conflitos “bons contra os maus” – como qualquer desenho animado do Canal Panda. Descobrir o passado do Cherubimon não altera nada na narrativa. Os miúdos queriam derrotá-lo antes de ouvirem a história dele. Depois de a ouvirem, continuam a querer derrotá-lo – e assim fazem. A única exceção é o que acontece com o Duskmon – mas sobre ele falamos noutra altura.
Esta é uma das minhas maiores frustrações com Fronteira. Na próxima parte da análise vamos começar a falar de outro aspeto que gera frustrações: o elenco de heróis.
Esta foi a tricentésima publicação deste blogue. Talvez devesse ter feito algo de especial, mas não deu. Não me importo que o número redondo tenha sido atingido com este texto, que me deu um bocadinho mais gozo a escrever do que o costume. Guardo a celebração para o décimo aniversário deste blogue, em julho.
Para já, deixo um agradecimento pelas vossas visitas. Continuem por aí.
Hoje completam-se vinte anos desde a estreia do primeiro episódio de Digimon Frontier – ou Digimon Fronteira, como é conhecido em terras portuguesas – no Japão. Vou aproveitar a ocasião para, finalmente, analisar esta temporada.
Quem conheça o nosso grupo do Digimon PT/Odaiba Memorial Day PT saberá que o facto de ninguém gostar de Fronteira já é um meme entre nós. Não que não compreendesse, pelo menos em parte. Praticamente a única coisa que sabia sobre Fronteira antes era que o elenco não incluía companheiros Digimon. Havemos de falar sobre isso, claro, mas esta é uma queixa legítima. Até agora (assumo eu, que ainda não vi Savers, nem Xros Wars, nem Appmon), as parcerias entre humanos e Digimon eram a imagem de marca do anime. Sobretudo em Tamers, a temporada imediatamente anterior. Cortar com isso foi uma decisão arrojada que nunca iria agradar a toda a gente.
Ainda assim, quando me sentei para ver Fronteira pela primeira vez há quase dois anos, fi-lo com a mente aberta. Tentei dar uma hipótese a esta temporada para provar que merece sentar-se sem vergonha entre Adventure, 02 e Tamers.
No entanto… bem, é melhor mostrá-lo em vez de explicá-lo.
A minha primeira maratona de Fronteira – a versão original – às cegas, foi relativamente rápida. Cerca de um mês e meio, encaixada confortavelmente na pausa do reboot de Adventure. A minha segunda maratona – dobrada em português, já tomando notas para a análise – só começou mais de um ano mais tarde, sobretudo porque precisei de tempo para digerir Kizuna. Comecei durante o verão de 2021, mas só terminei em fevereiro deste ano, mais de seis meses depois. Cheguei a estar dois meses sem progredir nessa maratona.
Por comparação, quando foi com Tamers, a minha segunda maratona demorou muito menos. Cerca de um mês, mais coisa menos coisa. O que é que isto vos diz?
Pois é, tenho de concordar com a opinião popular, pelo menos na minha tribo. Não gosto muito de Fronteira. Pelo menos não tanto como de Adventure, Tamers, mesmo Tri e 02. No que toca ao reboot de Adventure, ainda não tenho opinião formada.
Dito isto, tal não significa que Fronteira seja completamente má. Pelo contrário, tem vários aspetos que a redimem. Nos próximos tempos aqui no blogue iremos, então, discutir o que resultou e o que não resultou nesta temporada.
Esta análise irá estender-se por várias partes, seguindo uma estrutura semelhante ao que fiz com as temporadas anteriores. Não deverá ser tão longa como a de Tamers – Fronteira não tem material para tanto. Irei usar os nomes japoneses e, como deverá ser óbvio, spoilers em todo o lado. A primeira parte da análise virá ainda hoje. No entanto, ainda estou a trabalhar nas partes seguintes. Para ter tempo de terminá-las, vou publicar apenas uma por semana.
Como o costume, obrigada pela vossa visita. Fãs de Fronteira, tenham um feliz vigésimo aniversário. Se gostarem do que escrevo, podem pagar-me um café na minha conta do Ko-fi, se quiserem.Continuem desse lado.
Nas minhas análises, esta é a parte em que olhamos para o enredo da temporada. Dividimo-lo em partes e deixamos algumas impressões sobre as mesmas.
Antes de partirmos para isso, no entanto, queria ir um pouco ao pormenor antes de olharmos para o quadro geral.
Os episódios de Tamers possuem uma estrutura diferente que, confesso, demorei algum tempo a entranhar. Em Adventure e 02 era tudo muito mais simples: com as devidas exceções, os episódios possuíam um determinado problema como premissa inicial e esta, na maior parte dos casos, era resolvida no mesmo episódio. Em praticamente todos os episódios, os protagonistas deparavam-se com um Digimon adversário e pelo menos um dos companheiros dos miúdos digievoluía para derrotá-lo.
Tamers tem alguns episódios assim, mas muitos deles fogem a essa fórmula. No primeiro episódio, por exemplo, só no minuto final é que o chamado gogglehead da temporada – Takato – conhece o seu companheiro, Guilmon. Vários capítulos terminam em cliffhangers, há linhas narrativas que se prolongam por mais do que um episódio. O combate com Beelzebumon, então, dura três episódios.
Estranha-se, sim, mas acaba por funcionar bem. Torna a história menos previsível e formulaica.
Se olharmos bem para a trama de Tamers em geral, esta acaba por ser o oposto da de Adventure. A primeira temporada de Digimon passa-se quase toda no Mundo Digital, com uma parte no Mundo Real. Tamers decorre quase todo no Mundo Real, com uma parte do Mundo Digital. Em ambos os casos, a mudança de cenário deve-se a um MacGuffin que funciona como encarnação da luz – Hikari no caso de Adventure, Culumon neste caso.
Eu digo que é um MacGuffin, mas não se pode dizer que a audiência não se rale com o Culumon. Bem pelo contrário – o pequenote é uma coisinha extremamente adorável, é preciso ter um coração de pedra para não se importar que ele esteja em perigo.
Assim, o enredo de Tamers pode, na minha opinião, ser dividido em cinco partes.
A primeira parte, que vai do primeiro episódio ao décimo-quarto, funciona como introdução. Vendo Tamers pela primeira vez, parecerá demasiado lenta – tal como Tri pareceu, na verdade – mas, vendo segunda vez, é mais fácil reparar nas sementes que vão sendo plantadas, na evolução lenta mas segura das personagens e da história. Esta parte serve para sermos apresentados às personagens, ao conceito de Treinadores, para preparar os três protagonistas para o papel que terão de desempenhar mais à frente, na história.
Conforme vimos antes, os Treinadores começaram sem propósito específico. Nem sequer se assumem logo como equipa, nem sequer se assumem logo como amigos. Nesta parte, vemos Takato aprendendo o “bê-á-bá” de ser Treinador; Jiangliang aprendendo que, por muito que não goste, às vezes lutar é necessário; Ruki descobrindo as consequências de lutar por motivos egoístas. Vemos os três protagonistas habituando-se uns aos outros e também à digievolução. Mesmo os secundários, futuros Treinadores – Hirokazu, Kenta e Juri – são apresentados aos Digimon no final desta parte.
Nesta altura do campeonato, os Digimon que se realizam no Mundo Real são meros “selvagens”, pouco mais que espécies infestantes. Tirando um caso ou outro, servem mais para aprendizagem dos Treinadores do que para outra coisa qualquer.
É também nesta parte que nos é apresentada a organização Hypnos, pouco a pouco. Durante vários episódios só vemos breves cenas de Yamaki brincando com o seu isqueiro e de Reika e Megumi anunciando o aparecimento de Digimon no Mundo Real (sou capaz de apostar que eles reutilizam a mesma cena uma meia dúzia de vezes).
Este arco termina com o Hypnos assumindo-se como uma força que quer erradicar os Digimon do Mundo Real – ou seja, funcionando como antagonistas dos Treinadores. Para esse fim, ativam o programa Shaggai… que acaba por causar mais problemas do que aqueles que resolve, ao permitir a aparição do primeiro Deva.
Conforme comentaremos mais à frente, isto é mesmo a cena do Hypnos, pelo menos na primeira metade de Tamers: causar mais problemas do que aqueles que resolvem. Este é apenas um dos primeiros exemplos.
Por outro lado, a luta com o primeiro Deva, Mihiramon, durante este episódio de transição, sempre desbloqueia o MegaloGrowlmon, a forma perfeita de Guilmon.
Não estava habituada a termos formas Perfeitas tão cedo na temporada. Por esta altura, em Adventure, só agora é que Takeru tinha desbloqueado o Angemon, de forma traumática, diga-se. Em 02, estávamos a começar a segunda ronda de armodigievoluções. Nalgumas coisas o início de Tamers é lendo, mas neste aspeto é surpreendentemente rápido.
A segunda parte – que vai do episódio 15 ao 23, inclusive – caracteriza-se pela invasão dos Deva. Se na primeira parte, a digievolução para nível Adulto só ocorre em circunstâncias especiais, na segunda parte esta está normalizada (sendo ativada por carta). Desta feita, é a digievolução para nível Perfeito que ocorre em circunstâncias especiais.
Pelo meio, Leomon aparece no Mundo Real. Juri persegue-o durante um episódio, mas só no fim da segunda parte é que a parceria é oficializada.
Nesta fase, é revelada a história de origem dos Digimon, o Grupo Selvagem e o papel que Jiang-yu, pai de Jianliang, desempenhou no processo. Esse mesmo grupo começa a colaborar com o Hypnos, embora com intenções meramente académicas da parte dos cientistas – as de Yamaki não são bem assim.
No fim da segunda parte, Vikaralmon – o Deva-porco, uma criatura gigantesca – invade Shinjuku, destruindo uma parte da cidade. Numa tentativa de travá-lo, Yamaki tenta ativar o Shaggai. Torna a correr bem: não só Vikaralmon não é travado como a sede do Hypnos colapsa.
É também nesta altura que o Deva-macaco, Makuramon, deita as mãos a Culumon e leva-o para o Mundo Digital. A segunda parte termina com os Treinadores decidindo ir atrás deles, para o Mundo Digimon.
A terceira parte, do episódio 24 ao 34, decorre toda no Mundo Digital. Os Treinadores exploram este mundo diferente enquanto procuram Culumon. O grupo divide-se, encontra Culumon, reúne-se, perde novamente Culumon, divide-se outra vez. Há uma altura em que Ruki decide venturar-se a sós com Renamon, outra em que Shaochung, a irmãzinha de Jianliang, é trazida ao Mundo Digital pelos Digignomos. Pelo meio, é-nos apresentado Ryo que, no entanto, acaba por se afastar sozinho, antes do fim deste arco. Por fim, Impmon faz um pacto quase literal com o diabo, que lhe permite digievoluir para Beelzebumon.
É inevitável colocar uma quebra no episódio em que o Leomon morre. É um claríssimo ponto de viragem na narrativa. Até este momento, Tamers tivera um tom razoavelmente descontraído. Não exatamente ao nível de um vulgar produto dirigido ao público infantil, mas normal para Digimon.
Depois da morte de Leomon, no entanto… bem, a coisa fica preta. E de que maneira!
A partir daqui é mais difícil dividir a narrativa, mas eu acho que faz sentido colocar uma divisória no episódio 41. A quarta parte de Tamers decorre ainda no Mundo Digital. Concluí-se o combate com Beelzebumon – onde ocorre uma digievolução negra para nível Extremo, uma digievolução correta para nível Extremo e, no fim, deixam Beelzebumon sair vivo, a pedido de Juri.
Depois desta, também Jian e Ruki desbloqueiam as formas Extremas dos seus Digimon, enfrentam as Bestas Sagradas, descobrem que o inimigo não são as Bestas Sagradas e sim o D-Reaper. Encontram o Culumon e este usa os seus poderes para catalisar inúmeras digievoluções para nível Extremo, para poderem enfrentar o D-Reaper. Os miúdos são autorizados a regressar a casa.
No universo de Adventure, a reta final das temporadas é sempre mais sombria – no caso de Tri, tanto no sentido figurativo como no literal. Tamers segue pelo mesmo caminho, mas o tom sombrio nem se compara – sobretudo quando se descobre que o D-Reaper está a usar o corpo e a mente de Juri. São precisas várias tentativas para resolver o imbróglio – existem ocasiões em que tanto os Treinadores como o Hypnos e as forças militares não têm outra hipótese senão bater em retirada. Mesmo que isso implique deixar uma menina de dez anos presa naquela monstruosidade.
Se Tamers possui um final feliz é questionável. A situação do D-Reaper resolve-se, sim, mas o preço a pagar é elevado. A cena em que esse preço é cobrado é traumática… mas isso é conversa para mais adiante nesta análise.
Para já, na próxima publicação, vamos passar àquela que tem sido sempre a minha parte preferida em Tamers: as personagens. Fiquem por aí!